As Mãos De Sinha Tonha


Sinha Tonha varria à porta de casa. A vassoura de talos secos, artífice de suas mãos concebido, levantava uma nuvenzinha de pó azulado. Um São Benedito de saias - a ajuntar os despojos da festa de São João - era no que se assemelhava a preta velha. Ainda um fio de fumaça, a meio metro do chão, se dispersava das cinzas da fogueira. Num dia nublado como aquele, a ausência do astro-rei enganava a gente, fazia-nos pensar que cedo seria. Perguntei-lhe se tinha ido assistir a apresentação da quadrilha naquela noite. Responderia negativamente, alegando que os festejos joaninos traziam-lhe recordações muito tristes.
Encostado ao umbral da porta, passaria a olhar pras mãos de sinha Tonha. A princípio inconscientemente, depois com exclusividade. Sem saber determinar exatamente o que nelas chamava-me a atenção.  Ágeis e vigorosas pinças negras, envolvendo o cabo de madeira, vincadas de profundos sulcos nas articulações. Unhazinhas róseas, enterradas nas gordas e curtas falanges. Trágica constatação nos acorria naquele momento: Sinha Tonha, a vida inteira, jamais teria passado de um par de mãos. Mãos que pegava-nos ao colo quando chorávamos. Mãos que trazia junto com o morno do corpo, o cheiro de alho e cebola engendrado. Da lavagem de suas roupas, o azinhavre do sabão da terra no par de mãos negras. Buscavam-nos a temperatura, a ver se tínhamos febre. Cuidava-nos num curativo, se ganhávamos uma raladura. Dava-nos de comer; banhava-nos e punha-nos pra dormir. Mãos que limpava-nos o rosto de lágrimas de criança, e de catarro escorrido do nariz. Penteava-nos os cabelos na nossa infância. Jamais esqueceria aquelas mãos em qualquer lugar que as visse, mesmo se as encontrasse somente a elas, alienadas do restante do corpo de sua dona.
Sem se apartar da labuta, daria de iniciar uma história, do tempo dos seus avós. Permanecíamos na análise. Cicatrizes havia muitas. Algumas testemunhamos. Aos sábados, meu pai vendia carne de porco no mercado de carne de Santana do Ipanema. Sinha Tonha ajudava no trato dos paquidermes abatidos. Ganharia entre o polegar e o indicador da destra, um retalho de tecido necrosado, da vez que um tacho de água fervendo encostou por cima. Um sulco profundo entre o anular e o médio da mão esquerda, do dia que descamava peixes que tio José trouxe de uma pescaria, no açude da Barra do Tigre. Havia duas idênticas fissuras cicatrizadas, uma de cada lado do mínimo.
Contava que numa noite de São João, morrera sua mãe, num incêndio. Um balão caiu sobre o casebre que moravam próximo a comunidade quilombola São Jorge, município de Poço das Trincheiras. Logo o fogo tomaria a tudo. Sua mãe conseguiria tirar a ela e seus irmãos pequenos. Ao tentar salvar alguns pertences, pobre mãezinha, veio a baixo o barraco em chamas. Dizia que tudo parecia uma espécie de maldição, seus antepassados brigaram pela liderança da tribo. Um chefe da linhagem dos Bantus, chamado Jorge lutou e derrotou o antigo líder de nome João da descendência nagô. Desde aquele dia, todo ano uma desgraça por ocasião da festa daquele santo ocorria. O sortilégio, a seu ver, parecia perseguir cada um dos descendentes daquela tribo, onde quer que se encontrasse. Contaria que em determinada festa Joanina, de nossa infância, viu o pesadelo repetir-se, desta vez ali em nossa casa. Meu irmão caçula teria acordado de madrugada, pra ir ao banheiro aliviar a bexiga, ou talvez tomar água. E voltaria ao quarto com um candeeiro aceso, ao passar perto do mosquiteiro, este pegou fogo. Dormíamos dentro do berço em chamas. Sinha Tonha salvou-nos, naquela noite.
Perguntar-lhe-ia sobre as duas cicatrizes semelhantes na parte externa dos mínimos. Diria que, jamais contou a alguém como havia adquirido aquelas. Contaria somente a minha pessoa. No tempo de sua bisavó, um chefe dos negros da sua aldeia, apaixonou-se por uma mulher branca, filha de um fazendeiro, dono de terras da capitania de Pernambuco. Colonos do tempo das invasões holandesas. Raptou aquela mulher de origem batava e a introduziu no seio da nação negra do quilombo de São Jorge, antes chamado São João. Esta mulher branca teria trazido mais desgraças pra dentro da aldeia. Algumas mulheres negras deram de conceber filhos albinos, que eram rejeitados. O curandeiro queimava-os vivo em rituais de magia negra. Outras anomalias começaram a aparecer, além dessa. Diria a preta bá, que a desgraça não pouparia também sua família. Sinha Tonha teria nascido com seis dedos nas mãos. Sua mãe pensou em cortar os membros excedentes, ainda a criança recém-nascida. Não o fez, pois sabia que não resistiria. Deixou pra depois que crescesse, faria quando completasse seis anos de idade. Teria sido mantida longe do contato com os demais membros da aldeia. Por tempos viveu calçada em luvas de couro. Chegada a idade esperada, teve a amputação concretizada a fio de faca. Com o rosto banhado em lágrimas, ficamos em silêncio. Entendíamos que nada mais tínhamos a ouvir ou contar um ao outro.


Somente naquela ocasião eu compreendia porque, no dia de São João, nossa querida mãe preta, ficava tão triste. E ainda cedo se recolhia. A maior fogueira de São João que Santana do Ipanema já vira, era queimada todos os anos à Avenida Martins Vieira. À porta da casa de Seu Abílio Pereira, pra ser mais exato. O pecuarista, também comerciante, erguia - praquela noite - uma pilha de lenha de mais de seis metros de altura. Impossível atravessar a rua quando incendiado o facheiro. Por aqueles dias, não tinha quem fizesse Sinha Tonha ir pegar o leite de gado, que comprávamos a Dona Gracira, naquela mesma casa.

Tonho Neguinho Não Era Digital!

A semana começou pra lá de importante: Com O Dia Mundial da Comunicação Social. Comemorou-se neste 05 de junho, O 45º Dia Internacional da Comunicação Social. De iniciativa da igreja católica o evento tem como tema: ‘Era Digital: Revolução na cultura e na Sociedade’. Mas será que não estivemos desde sempre na Era Digital?
A mão estendida por sobre o nada, realizou Deus prodígios da criação. Como é narrado também em Gênesis que do barro da terra foi moldado o homem. No teto da Capela Cistina em Roma, a bela arte de Michelangelo, entre outras maravilhas, vê-se ali o momento da criação Adão é tocado na ponta do dedo pelo indicador de Deus. Selando assim nossa eterna união a Ele.
A Era Digital, já o é, desde sempre. Podemos identificá-la no homem fazendo desenhos nas cavernas, na Idade da Pedra. No polegar hirto de Neil Amstrong dizendo ao mundo que estava “tudo bem!” em solo lunar. No “vê” da vitória, nos dedos anular e indicador, de Airton Senna, no seu último grande prêmio. Na mão direita de João Paulo II estendida a desejar a paz ao mundo. No indicador apontado do Tio Sam, convocando os americanos pra se alistarem nas Forças Armadas. No indicador elevado de Lenin discursando na praça vermelha em Moscou. Na mãozinha de seda da rainha Elizabeth, acenando pra seus súditos. No “não!” dito pelo retesado indicador cheio de cólera, de Fernando Collor dizendo que não sairia do palácio do planalto no empiechement. Nos dedos cheios de anéis de Virgulino Ferreira “o Lampião”. Na mão direita do metalúrgico que se tornou presidente, Luiz Inácio “Lula” da Silva faltando o dedo mínimo.
A Era Digital já o é, desde quando o homem consegue se comunicar com um simples gesto dos dedos das mãos. Se acaso, com o polegar e o indicador fizermos um círculo, e mostrarmos pra alguém, podemos estar mandando uma mensagem: na América significa: “OK! Está tudo bem!” Já no Brasil, pode ser interpretado como um gesto obsceno. O anular apontado pra cima, e os demais dedos recolhidos, me parece que é universal significa mesmo mandar alguém pra PQP!
O dedo anular não é totalmente imoral, afinal é nele que vai se ostentar o anel de formatura, e a aliança de casamento. Estão realizando teste para que a próxima eleição já seja com a tecnologia digital. O cidadão voltará a ser identificado pelo polegar. Como ocorria no passado e ainda hoje é adotado em alguns casos, a assinatura digital.
Essa história da Era Digital me fez recordar meu velho amigo Tonho Neguinho, lá de Senador Rui Palmeira. Convidados que foram, ele e Creuza sua digníssima esposa, pra serem padrinhos de um casamento. Na hora de assinar os documentos, Tonho todo envergonhado, pois não sabia ler nem escrever. Aproveitou o descuido do povo, meteu o polegar numa almofadinha com tinta, e tacou o dedão cheio de tinta no documento. O sacristão, coitado, ao ver aquela presepada: enorme mancha de tinta do dedo de Tonho, indignado reclamou:
-Meu senhor! Só podia assinar por extenso!
Tonho Neguinho não se fez de rogado. Caprichou de novo na almofadinha e passou o dedão melado dum canto a outro do risco no papel.

Fabio Campos

Mês De Junho: Viva São Paulo?

Mês de junho é mês abençoado. Celebram-se no decorrer desta quadra de semanas, importantes festas sacrossantas. A tradição popular já o consagrou como mês dos festejos juninos. A alegria, a vivacidade do interior do sertão estampada na cara, nos trajes, na música, na fala, nas comidas típicas. Tudo isso faz o povo sentir que esse, é mês atípico.
Usos e costumes juninos, aos poucos vão entrando na era digital, esta semana surpreendi-me ao ver minha filha Adla Juliana, que é professora, reproduzindo em CD, uma música do rei do baião Luiz Gonzaga, remixada, transformada num forró “hi tec”. Hoje em dia existe por aí, uma diversidade enorme de forrós: Forró Universitário, Forró Pé-de-serra, Forró Eletrônico, etc. Eu na minha santa e junina ignorância, só conheço um tipo de forró: O Forró!
Mas o que está arraigado leva tempo pra mudar. A tradição da queima da fogueira também. Polêmicas à parte, Preocupação dobrada pros ambientalistas, por conta da extração vegetal, no nordeste e o soltar balões no sul. Por exemplo, os fogos de artifícios, esse acredito que muitos estouros ainda irão provocar! o folclore aponta como origem do fogaréu, o anúncio do nascimento de São João Batista (aquele do carneirinho!). Sabemos da tradição católica, apostólica, romana, de venerar neste mês os santos: São João, São Pedro e Santo Antônio.
São João tem fama de dorminhoco, dá trabalho pra acordar pra sua festa. E quem não quer estar debaixo dos lençóis num tempo desse? São Pedro fica se “roendo” porque o trabalho é dobrado nesse tempo, tem que controlar as chuvas direitinho! Santo Antonio é outro coitado: vai pra dentro d’água, pra geladeira, é pendurado de ponta cabeça. Sofre se não arranjar noivo pras moças encalhadas! Recentemente outro santo tem sido citado querendo “entrar na festa”: São Paulo. Com ciúme mandou um E-mail (carta a imprensa acaba publicando) um recadinho pra Jesus, dizendo que arranjasse um jeito dele entrar nesta festa!
Portanto senhores animadores de quadrilha e puxadores de coco de roda, no meio da sua gritaria de “Viva São João!” vê se inclui daqui pra frente, também “viva São Paulo”! Pois se não sair ao menos um “viva São Paulo!” assim como dizem que o cão mija na porta de quem não acende fogueira, o “coisa ruim” vai mijar na sua página de E-mails!

Fabio Campos