As Tias de Adeildo Nepomuceno

A casa das Marques, como era conhecida, ficava à Avenida Doutor Arsênio Moreira. Bem ali, de frente ao Grupo Escolar Padre Francisco Correia. Quatro idosas senhoritas habitavam singela morada. Eram as tias de Adeildo Nepomuceno. Lá do fundo do quintal, frondoso e convidativo pé de tamarindo - dos seus mais altos galhos - acenava pros meninos que escalavam os velhos pés de figos da Praça do Monumento.
Senhorita CARMELITA. Era a que cuidava das plantas. Do jardim ao quintal havia muitas. O pinheiro espichado à cima dos beirais da janela da frente evocava bolas e luzes a dizer: aguardamos natal. Do lado de dentro, uma aura envolvia o visitante, como se uma viagem no tempo haveria de ser proporcionada. Como a um sonho nunca dantes vivido. O feio barulho do trânsito, as cores sujas da rua, distante se faziam, atrás da porta. Imenso quadro do coração de Jesus à cima do sofá. Pra quem trazia o coração exposto ao peito, até que tinha o Cristo, semblante sereno. Os olhos fixos na porta. A mão esquerda pousada sobre a bola do mundo, a destra erguida ao ombro, dizendo, dois. Abajur róseo sobre uma mesinha coberta com renda de bilro fazia par com fotografias em preto e branco, emolduradas - das quatro tias de Adeildo - de antes de tornarem-se doces velhinhas. Portas-chapéus de madeira torneada, uma escarradeira num canto da sala. Espelho de moldura oval no início do corredor. Um tapete de napa ia, da porta de entrada à cozinha. As chinelas de Senhorita Carmelita, fazia clap-clap no tapete enquanto ia atender alguém a porta. Os meninos, por traquinagem, tocavam na campainha que fazia sonoro din-don e ficava longos segundos ecoando pelo interior da casa. Antes da cozinha tinha de um lado, uma área verde. Borboletas, jias e besouros, faziam a festa. Do lado oposto, o quarto das orações. Parte mística da casa, não sendo permitido ali entrar crianças, aumentando ainda mais o mistério. Uma vela permanentemente acesa. Incenso na penumbra. Imagens em gesso de Senhora Santana, de Senhora Assunção, e uma outra de Santa Terezinha do Menino Jesus. Naquele janeiro de 1978, Adeildo Nepomuceno iniciava o quarto ano, de um terceiro mandato. Nunca, desde menino, deixou de ir um só dia, a casa de suas tias. Com tia Carmelita conversava assuntos de família, das preocupações com os filhos. Dizia-lhe da vontade de mandar Roberto pra estudar no Recife e de como fazia dias não tinha notícias de Adeildinho, que morava em Maceió.
Senhorita LANDELINA. Cuidava dos bichos da casa. Um gato angorá e um siamês. Gatos eunucos, obesos, preguiçosos. O velho papagaio - que sabia rezar a ladainha - tagarela avisava se via os meninos furtando os frutos de tamarindo por cima do muro. No quintal, galinhas, guinés e perus retidos num chiqueiro de tela. Ainda de manhãzinha o sol se espreitava por entre a folhagem dos pés de Pinha e Coração-da-Índia, enquanto os mosquitos zuniam por cima das cabeças. Da fazenda Coqueiros, chegava o leite ao lombo do burro. Seu Amaro prendia o jumento na argola de ferro ao meio fio. Adeildo achava tia Landelina a mais espirituosa, engraçada. Se triste, ia ter com ela. Ria feito menino velho, do jeito brincalhão como encarava a vida. Na companhia de tia Landelina voltava o prefeito à infância.
Senhorita MARIETA. Dedicava-se a supervisionar os serviços da cozinha, que tinha mosaicos em tons beges no piso. Até a altura dos ombros, azulejo enxadrezado em preto e branco nas quatro paredes. Belo lustre de pingos de cristal contrastando com o verde claro do teto. Sobre a mesa uma fruteira com pinhas, bananas, maçãs e uvas de verdade. Sobre a geladeira de porta arredondada e puxador engraçado, o solene pinguim apontava o bico pra frente e avante. Nada disso causava mais impressão, que os cheiros dentro da cozinha. Uma essência pra cada momento do dia. Pela manhã bolo de milho, e massa de cuscuz recém moída. Perto do meio dia, cheiro de caldo de carne acompanhado do estalar dos talheres. À tarde a calmaria tinha sabor de doce de jaca em calda, dentro das compotas. E de cravo e canela, dos licores. E a noite o aroma encorpado de café se ia às narinas dos passantes na calçada, levado pela suave brisa que entrava pelos postigos da porta dos fundos. Adeildo se achava parecido com tia Marieta, por ela carinho especial, e a ela confidenciava segredos de estado. Da mágoa de ser acusado no caso Zé Amorim. Diria de nunca ter mandado prender e dar uma cambada de cacete, a um cabra que se meteu a falar mal de sua pessoa. E depois ele próprio ter mandado soltá-lo. Certas coisas - a ele atribuídas, dizia - nem sempre era verdade. Sentado na cadeira de palhinha à sala de estar, o ventre atacado pelo cinto, parecia ainda mais avolumado. Cabeça calva, a baixa estatura, olhar austero. Muito dele, em atitudes e ainda mais fisicamente, lembrava o caudilho Getúlio Vargas.
Senhorita MARINA cuidava ainda mais do lado espiritual dos membros da casa, e da família. Às seis horas da tarde, todos que estivessem na casa deviam ir ao oratório rezar o terço e a ladainha de Nossa Senhora. Ela que fazia as inscrições e o pedido pelo correio, do Almanaque da Fé, depois ia de casa em casa entregar aos paroquianos. Organizava as Cruzadas, e o pastoril por ocasião dos festejos natalinos. Como se não bastasse, ainda gerenciava o Armarinho das Noivas, no comércio de Santana. Zeladora-mor da capela de Senhora Assunção, era que acendia as luzes da igrejinha. No mês de agosto pelo novenário da santa, tocava o sino às seis da tarde. Zuza fogueteiro fazia subir ao céu os fogos enquanto os meninos corriam a pegar as varetas fedidas a pólvora queimada quando caiam.
Adeildo Nepomuceno foi ter com as tias. Os últimos dias tinham sido corridos, apertados. Ao menos ia cobrar-lhes as bênçãos naquele domingo. Euforia duma prévia carnavalesca, no Tênis Club Santanense. A tia Marina parecia pressentir que algo não ia bem com o sobrinho. Chegaria com ar preocupado. O motorista aguardaria no carro. Conversa rápida. Despediram-se à porta. Ela recolheu-se a orar. A viatura da polícia passou pela Praça da Bandeira fazendo alarde. Não passava ainda da meia noite. E a notícia fatídica ainda naquela madrugada começou a espalhar-se. Tinham acabado de matar Adeildo Nepomuceno na fazenda Coqueiros.


Fabio Campos

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