Festa de Sant'Anna

Mês de julho, a cidade de Santana do Ipanema se veste pra festa de Sant’Anna. Numa efusão de cores, luzes e sons, praças, igreja, e parques de diversão que sorrateiramente tomaram as ruas. Alterando o cotidiano da gente, dos carros, e do guarda de trânsito. Enormes torres de aço em emaranhados brinquedos gigantes. Cavalinhos caprichosamente trabalhados, traspassados do lombo ao ventre por uma barra de ferro, cavalgam o ar, velozes e estáticos no carrossel. Fadas, duendes, ninfas, heróis e monstros ufanos. Ora sorridentes, ora assustadores convidam as pessoas a se embrenharem num fantástico mundo de fantasia. Santanenses de lugares distantes, em seus carros e motos possantes, exibem a si e as suas máquinas barulhentas. As ruas tomadas de gente. Caras antigas e conhecidas, misturam-se com outras mais novas, não tão comuns nos dias de rotina. Um cem número de barracas comercializa quinquilharias, doces, salgados, bebidas e músicas.

Manhã na Avenida Coronel Lucena. Um homem caminha na calçada. Aparenta sessenta anos. É santanense, mas não mora mais em Santana. De volta à terra natal, de férias. Chamá-lo-emos de Renan, muito embora não seja esse seu nome. Os olhos marejados de saudade o denuncia, é um fausto, um poeta, um sonhador. Contempla em derredor procurando encontrar-se em tudo. Tudo o que vêem seus olhos, como se já fora seu. Um dia quando infante tudo aquilo lhe pertenceu. Nasceu e cresceu em Santana do Ipanema. Foi criança na Praça da Bandeira, estudou no Grupo Escolar Padre Francisco Correia. E no velho Ginásio Santana. Tomou banho no rio Ipanema. Melhor, tomou água do Ipanema.

De repente surge um menino. Ele vai adiante do homem. Um garoto de nove ou dez anos. O homem não vê seu rosto, mesmo assim, se acha parecido com o menino, de quando era criança. Quanta semelhança vê entre ele e o menino, de quando tinha àquela idade. O cabelo, a roupa, os sapatos. Acompanha-o com os olhos, enquanto caminha. O menino observa o movimento da Praça da Bandeira, corre até lá. Instintivamente como um anjo da guarda, Renan põe cuidado ao menino, preocupa-se se algum veículo coloca em risco sua vida. Não punha, atravessou a rua são e salvo. Encontra outras crianças, brinca. Renan agora detinha sua atenção a igrejinha de Senhora Assunção. Admirou-se do quanto, tão pouco havia mudado depois de tanto tempo. Meio que incrédulo, se dá conta que não apenas a igrejinha estava igual a tempos de outrora, também o Ginásio Santana. O Grupo Escolar Padre Francisco Correia, a casa das Marques, o consultório odontológico de Doutor Adelson, a casa de Seu Dota, o Pinguim de Seu Nôzinho. O hotel de Dona Beatriz, a bodega de Seu Ozéias, tudo como antes. Torna a olhar pro menino. Ele agora estava conversando com um velho, também vê certa semelhança entre aquele senhor e seu velho pai.

De repente cai em si, queda estupefato: Àquele menino é ele! Àquele velho com quem conversa, é seu pai! Toca-se, pois já não sabe mais o que é real, se ele próprio, ou o que vê. Eles agora vão até o sorveteiro, seu pai lhes compra um sorvete. E aproveita pra engraxar os sapatos. O velho pai do menino, a quem daqui por diante chamaremos de Paulo, cumprimenta “Tota” o engraxate. E chega Quincas sapateiro. Põem-se os três a conversar. Jogam conversa fora. “Tota” fala do seu irmão que estaria com um problema sério, por ter mais de seis meses de aluguel atrasado, numa casinha de taipa que mora, na Rua Professora Josefa Leite. É uma das casas de Dona Sidone Tenório.

“Tota” contaria aos amigos que seu irmão, pra quitar a dívida, acabou vendendo todos os móveis de dentro de casa. Vendeu sua vitrola, duas camas de solteiro e uma de casal. Uma mesa com quatro cadeiras e quase todas as panelas que tinha na cozinha. Ficara só com a roupa do corpo. Mas conseguiu pagar os aluguéis atrasados. E como não ficou com quase nada, entregou a casa de Dona Sidone. Sobrou-lhe o suficiente que deu pra comprar um velho Aerowillis de Zé V8. E “Tota” comentaria: Será que meu irmão vai morar com a família dentro dum carro velho? Foi sim. Ele a mulher e os filhos passariam a morar dentro do velho Aerowillis. Era carro de praça. Pelo dia táxi. Os filhos e a mulher ficavam feitos ciganos em baixo de uma barraca de lona ao lado do muro do Asilo São Vicente de Paula. À noite dormiam dentro do velho Aerowillis.

Dona Elvira, Seu Júlio e Nazinha, tia de Zeca, também moravam em casinhas de taipa de Dona Sidone à rua Professora Josefa Leite, eram vizinhos de Luiz irmão de “Tota” cuja casa agora estava vazia. Do outro lado morava João pintor e Antônio “Camaleão”, mas nenhum destes estava com problema no pagamento do aluguel. Os adultos conversavam e apesar de parecer distraído o menino os escutava. Lembrava que logo abaixo da Rua Professora Josefa Leite, morava Duda Bagnane, e Mirindão, a quem ele e os colegas passavam à porta apelidando, Mirindão era uma velha, e detestava esse seu apelido. E dizia um monte de palavrões, e ameaçava correr atrás dos moleques pra bater com o que tivesse ao alcance da mão.

E Renan ouviu longe a campainha do sorveteiro se afastando da Praça da Bandeira, ia pedir ao pai que comprasse mais sorvete, mas foi se acordando, acordando. Pronto, o despertador o acordou, naquela bela manhã de julho e agora Renan fitava o teto do apartamento onde mora em Aracaju. No criado-mudo os óculos e o celular. No chão a bolsa já feita, pronta pra ir pra Festa de Sant’Anna.

Fabio Campos

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