Santana de Choufferes e Cabrioletes

Santana do Ipanema no início da década de sessenta, possuía poucos carros. Somente alguns citadinos mais influentes, comerciantes e agropecuaristas, desfilavam pelas ruas guiando seus automóveis. Jovens dos anos rebeldes, à Praça do Monumento, filhos da Santana mais abastada, se ajuntava a velha guarda pra falar de garotas, do iê-iê-iê e de carros. No rádio músicas de Elvis Presley “Kiss me Quick” e “Bridge Over Troubled Water”, se alternavam em sucessiva repetições a pedido dos ouvintes. Na moda imitar os trejeitos do garoto de Menphis, dos quatro de Leverpool e também do lendário James Dean. Os embalos dos sábados à noite ocorriam na noitada ao Monumento santanense. O cabelo com topete, empolado luzidio de brilhantina. A calça apertada, os óculos ray-ban. Pra dar o charme o sóbrio blusão preto e um cigarro apagado na ponta dos lábios. Tantos e tantos fariam caras e bocas e deixariam pra posteridade numa foto o que estava em voga, a rebeldia dos anos dourados. As garotas usavam belos vestidos que lhes acentuavam as curvas, com imensas saias fofas de anáguas e babados, imensas madeixas retesadas com laquê pra manter o visual e cílios postiços que acentuavam o olhar de nossas Jaquelines Kennedy e Leilas Diniz. Foi no ano de 1962 desses encontros casuais, em plena praça pública, nasceria à festa da juventude.

AeroWilis, CarmannGhia, Lamborghini, Gordini, Variant, Corcel, Passat, Fusca eram os carros de passeio da moda. Jipes, Caminhonetas, FNM e Rurais eram utilitários adaptados a vida urbana. Se refletia no país, o padrão de vida americano. As singelas “baratinhas” e calhambeques punham jeito dos anos quarenta no mundo que se renovava a cada momento. Em meio ao crescente progresso os carros de bois nunca cairiam em desuso, bem como graciosas charretes e cabriolés disputavam espaço com barulhentas carros de passeio e punham aura de fita italiana as ruas e avenidas de uma Santana feliz.

A Gazeta de Alagoas retratava nas entrelinhas um estado em crise política, nossos parlamentares estaduais em pé de guerra. A "terra do Gogó da Ema" em estado de sítio. Valderedo, Zé Gago e Zé Crispim nossos anti-heróis, nada tinham de Robin Wood nem do Sheik das Arábias. Através da tela do Cine Glória e depois o Alvorada, chegavam as tendências, os modismos. Carro na Santana dos anos sessenta era referência, espécie de status quo pra quem os possuía. Os bancários do Banco do Brasil praticamente todos tinham, Seu Esdras, um AeroWillys. À tampa estofada da parte interna do pára-brisa traseiros ia um cão de pelúcia, a réplica de um pastor alemão que balançava a cabeça pretendendo imitar um cão de verdade. Seu Domício Silva todos os dias adentrava e saía da Avenida Martins Vieira no seu Carango verde claro, com teto de napa preta. Faróis feito bola, suspenso nos pára-lamas, lembravam olhos de siri. Evocavam ainda antigos carros que pareciam nos filmes alemães da segunda guerra mundial. Seu Antonio Redondo tinha um Calhambeque que os meninos apelidavam de “fubica”. O motor já não era mais o original, teve um dia que perdeu o controle e acabou chocando-se contra o balaústre do consultório odontológico de Doutor Antônio. O mesmo aconteceria com o CarmannGhia de Doutora Nícia esposa de Doutor Paulo Onofre já este teria ido chocar-se na antiga Praça das Coordenadas de fronte ao Posto Esso ao lado da mercearia de Seu Benício.

Em um só quarteirão, a um só olhar, a juventude transviada santanense iniciava a vagar seus sonhos reais. Sonhos iniciado às bancas do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, que os veriam aflorar da tenra infância, passando pelo Ginásio Santana de cujas paredes emanavam história, nas velhas fotografias dos diretores que ali passaram numa imemorável moldura de madeira imitando um livro aberto, e que inspirariam poetas, juristas e mestres a almejarem irem sempre mais adiante, e isso os enchiam de orgulho. No oitão, o palco dos deleites, Teatro de Amadores Augusto Almeida e o Tênis Club Santanense.

O Calhambeque, o Cadilac, carros que ficaria na moda por muito tempo. A Jovem Guarda trataria de tornar amuleto de sorte portar anéis, pulseiras cintos com desenho do carro que tocou o coração dos brotinhos sessentistas. O Simca com pneus faixa branca, faróis traseiros rabo de peixe, a marca de pneus Good Year que atravessaria gerações. A lanchonete Pic-Nic de Seu João Salgado. O Wolks apelidado de fusca ganhando popularidade se embrenhando no sertão como mostrava a propaganda, a cidade de Brasília ainda infante.

Seu Leopoldo era nosso vizinho do Monumento e gostava tanto de carro. Meu pai fretaria sua caminhonete pra no dia do casamento vir de Olho D'agua das Flores a Santana do Ipanema com minha mãe. A possante caminhonete Chevrolet que apesar dos pomposos guardas lamas não ganharia apelido tal qual ganharia tempos depois o gracioso fusquinha. Eugênio Teodósio também tinha uma caminhonete Chevrolet. Com ele ia meu pai duas vezes ao mês à cidade pernambucana de Caruaru fazer compras pra abastecer a mercearia. Senhor Leopoldo depois da caminhonete possuiria uma rural. Tanto zelo tinha pelo carro que mesmo estando na garagem cobria-o com um fino tapete em dias de chuva para protegê-lo de respingos, e em dias de verão pra proteger dos ventos e redemoinhos. Muito tempo se passou e Seu Leopoldo foi embora, deixou Santana para trás foi morar na capital. Antes nunca tivesse feito isso, pois num de seus passeios matinais nas passarelas da Praia da Avenida, pura ironia do destino, justo uma das máquinas de viajar que ele tanto apreciava, uma Veraneio, desgovernada subiu o meio fio e veio ceifar sua vida no passeio defronte pro mar.


Fabio Campos

Submarino Bahia em Santana do Ipanema

Éramos seis no tempo de minha infância. Francisco e Fernando distanciados dos demais, por serem os mais velhos dentre os irmãos. O primogênito alçou vôo de rouxinol. Apossando-se dos dons, cultivou a voz. Brilharia fazendo locução nos programas de auditórios dos áureos tempos dos cantores de rádio. Fernando, talvez influenciado pelos tios que serviram a polícia militar, quis ser fuzileiro naval. Ainda garoto teria dado maior susto na nossa mãe. Foi assim, as casas de Santana do Ipanema naquele tempo ainda não tinham água encanada, tínhamos cisternas cheias com água do rio Ipanema, trazida nos lombos de burros. Aproveitando um descuido de mamãe o menino pularia dentro da cisterna lá de casa, e sairia nadando na maior categoria.

Aquele menino tornado rapaz viria seu sonho concretizar-se. Iria nadar em águas ainda mais profundas, de mares nunca dantes navegados. Viajaria com papai pra engajar-se nas fileiras dos bravos fuzileiros navais da Marinha do Brasil. Partiria pra conquistar a primeira capital do país, ingressou na Escola Naval de Salvador. Isso foi no ano de 1969. Vivia-se o crescente fenômeno da guerra fria. Americanos e soviéticos se digladiavam pra impor suas ideologias políticas tentando conquistar aliados perante as nações do mundo. Em meio à corrida armamentista, os ianques se inventariam de divulgar que haviam conseguido subir ao cosmo no foguete Apolo 11, pra conquistar a lua e os lunáticos. Meu pai nunca daria crédito ao maior engodo do século! E que muito suscitaria o surgimento de marchinhas de carnaval, servindo também de inspiração pra boemia da Lapa carioca. Uma revolução se operava em todas as esferas sociais principalmente política e cultural. Vivíamos o maldito Brasil do lema “ame-o ou deixe-o!” Brasileiros tendo que deixar o país, e nem seria por livre e espontânea vontade. Exilados políticos, expulsos pelo regime militar. A Bossa Nova e a Jovem Guarda era moda nacional. A tropicália surgindo e nossa Seleção brasileira de Futebol se preparava para conquistar o tri no México.

Uma vez por ano Fernando retornava a Santana do Ipanema. Motivo de orgulho era pra todos nós, termos um irmão marinheiro. De volta à terra natal, também outros marinheiros santanenses pra rever a família, Roberval Nóya, Plínio, Ângelo, entre outros. Ainda que fosse só por uns dias, quanta alegria sentia mamãe. Uma saudade contida no peito que inevitavelmente a levaria a incontidas lágrimas no dia do retorno do navegante. Em todas as vezes que veio, trazia relíquias de caserna. Tínhamos a oportunidade de brincar com um quepe de verdade e não de papel, cuja fronte ostentava o belo símbolo da Marinha brasileira. A boina branca semelhante a do Popye. As placas prateadas de identificação do oficial que deveriam trazer sempre penduradas ao pescoço. As peças de roupas do fardamento com um código de numeração decalcado. Através de fotos coloridas, já um avanço pra época! Mostrava-nos como era um dia de rotina à bordo de um submarino. Não, sem antes tentar explicar praquelas mentes pueris como uma embarcação enorme daquelas conseguia ficar muito tempo, dias e até meses, embaixo d’água, tarefa nada fácil de convencer! Junto com outros colegas fotografavam-se, executando as tarefas da tripulação. Foto monitorando a superfície, submerso a mais de mil metros de profundidade. A casa de máquinas, o desembarque no cais do porto, o lançamento de âncoras ao mar. No alojamento ou apresentando armas, perfilados junto à guarnição. Contava-nos histórias de fazer rir e relembrar. A farda branquinha lavada por minha mãe, pendurada no varal da casa paterna. As vestes do nosso herói, feito armadura de um guerreiro, repousavam balançando ao vento. Como se desse uma trégua, pra logo ir aventurar-se em nova odisséia, que não perdia por esperar. Doce recordação! As fitas cinematográficas que passaria a interessar-nos a partir de então, tinham que ter como tema jornadas náuticas. “O Marinheiro de Gibraltar” assistiríamos pelo menos umas três vezes, nas matinês do Cine Alvorada.
Noutro ano nosso marinheiro traria souvenires de vários portos de países por onde passara. Da Argentina um conjunto de copos e bandejas com paisagens das praias de Mar Del Plata. Uma máquina fotográfica paraguaia, a primeira que até então havíamos visto com flash embutido, um colorido quadro guatemalteco. Saca-rolha caribenho. Chaveiros chilenos e peruanos pra coleção da irmã Selma. No meio das malas desfeitas do marinheiro, espalhado na cama, diversos exemplares de um curso de inglês moderníssimo pra época, que vinha acompanhado de compactos contendo as aulas em áudio. Uma quantidade considerável de discos Long Plays, do melhor que existia na época no que se referia à música internacional. E que muito nos influenciaram pra apurar nosso gosto musical. Discos do cantor Johnny Matins, The Archies, “Sugar Sugar!”, Aples, The 5th Dimenson. Os primeiros a chegar a Santana do Ipanema quiçá no país. Foi numa pequena vitrola a pilha de fabricação asiática, chegada através das águas geladas da Terra do Fogo, do Pacifico Sul que ouvimos pela primeira vez a música que desde então evocava segundo o plano esotérico a Era de Aquário que anunciava um mundo de paz, amor e harmonia a iniciar-se no final do século vinte. 

When the moon is in the Seventh House
And Jupiter aligns with Mars
Then peace will guide the planets
And love will steer the stars
This is the dawning of the age of Aquarius
Age of Aquarius
Aquarius!
Aquarius!

Teve um ano que Fernando ficaria impossibilitado de voltar a sua terra natal para as tão merecidas férias. Descobriríamos que o argonauta dos bravios sertões, se encontrava em importante excursão de patrulhamento do litoral brasileiro a bordo do submarino Bahia. Ficaríamos sabendo que em determinada data aquela embarcação estaria atracando no cais do porto de Jaraguá em Maceió. Papai não pensaria duas vezes, na data aprazada, fretou um carro que levaria a todos nós até o cais do porto no litoral alagoano. Para as crianças uma aventura indescritível, papai e mamãe radiantes. Imaginemos isso, recordando da dificuldade que era à época, deslocar-se de Santana do Ipanema até a capital do estado das Alagoas. Não era tão fácil conseguir um carro, ainda mais que até Palmeira dos Índios, a estrada de rodagem não era pavimentada. Na mente do infante, alguns episódios deste evento ficariam registrados pra sempre. Um deles, a chegada ao cais do porto. Era tarde, início de noite. Se fazia um mar ameaçador, assustador! Àquela ocasião sem a exuberância e beleza de mar ensolarado e alegre, que concebíamos em fotografias de antes. Causava-me medo saber que pessoas, feito meu irmão, tinha coragem pra se aventurar por águas tão turbulentas, inquietas. Ao chegarmos ao cais do porto tivemos que baldear pra um Jipe da Marinha brasileira. Pois o táxi era carro civil, jamais poderia avançar além dos portões, toda a área do porto era considerada área militar. Preludiando aquele crepúsculo fantástico, caprichosamente caía uma fina garoa. Vislumbramos pela primeira e única vez em nossa vida, o extraordinário hipopótamo de ferro que flutuava, tendo só um pouco de si, emerso das águas bravias. E tudo o que pudemos trazer do submarino Bahia pra Santana do Ipanema, fora o cheiro de mar nas narinas, a terna lembrança de minha mãe acenando pro insensível monstro marinho que levava um de seus filhos nas entranhas.


Fabio Campos

Onze de Setembro

Nem era uma preguiçosa segunda-feira, tampouco a tão aguardada sexta-feira, que a depender dos números, pode apresentar-se carregada de maus presságios. Era sim uma bela manhã de terça-feira. Como de costume, cedo havíamos acordado. O mundo pela janela se nos mostrava receptivo, havia um sol que punha mais verde as plantas, e mais cores as cores das coisas. Havia um azul num céu magnífico! Pardais esvoaçavam por entre os fios de alta tensão, e os beirais das casas, despreocupados da vida faziam algazarra. Quem sabe conhecessem o que disse Jesus, e Mateus narrou no seu evangelho, capítulo seis, versículos 26, 27 “Olhai as aves do céu; não semeiam nem ceifam; nem recolhem nos celeiros e vosso Pai celeste as alimenta. Não valei vós muito mais que elas? Qual de vós, por mais que se esforce, pode acrescentar um só côvado à duração de sua vida?” Mesmo assim, carregados estávamos com pensamentos e preocupações mundanas. Gosto das terças-feiras, particularmente por ter vindo ao mundo numa manhã de um dia como este. Minha companheira dali a dois dias faria aniversário. De certo tínhamos algo a providenciar. Ainda cedo saímos de casa, pra ir ao encontro da velha sala de aula, confabular conhecimentos com os pupilos. Aqui no hemisfério Sul dava-se de iniciar o verão. Na América a primavera. Já o dia corria pra concluir a primeira metade de sua jornada, quando os aparelhos de televisão do mundo inteiro interromperam seus desinteressantes programas matinais, pra noticiar o atentado ao World Trade Center em Nova Iorque. E quedaríamos estarrecidos com o que vimos e ouvimos.

Tantos pensamentos precederam àqueles instantes. Surpreendidos inicialmente com o fato estarrecedor. Para em seguida, aos poucos irmos assimilando o sinistro na medida do possível. Constatando o quanto o mundo à época já estava tão interligado. E que câmaras fotográficas e filmadoras focavam desde então tudo. Todo tempo, o tempo todo. Um dejavús real. O inverossímil tornado verossimilhança. Seria realmente verdade? Por mais perturbado que estivesse nosso coração naquele momento, tentávamos nos colocar na situação, nada fácil dos que viviam a situação. Só quem estava realmente passando é que poderia sentir de verdade. Tentávamos estabelecer paradoxos. E se fossemos nós? Que alvo estaria em foco? As torres gêmeas de Brasília? Queiramos ou não, nós brasileiros sempre fomos vistos pelo Talibã e principalmente pela Al-qaeda, como aliados dos americanos, não nos faziam distinção. Santana do Ipanema com certeza estaria em área considerada de risco. Não poderíamos deixar de nos colocar como zona de perigo, no caso de um possível ataque aéreo. Sempre seremos alvo vulnerável. Afinal os pontos mais extremados para as bandas européias e asiáticas ficam tão próximos de nós. A barreira do Inferno em Natal Rio Grande do Norte. A Ponta Seixas na Paraiba. Fernando de Noronha que ainda hoje é considerada ilha base militar.

Buscamos no fundo da memória, fatos extremados que um dia teria nos deixados perplexos, vividos o mais perto possível de nós santanenses. Dentre os que viveram esta geração. O maior monumento erguido por mãos humanas que temos em nossa cidade, a torre da matriz de Senhora Santana. É bem provável que deva ter a altura de um prédio de 30 andares. Um dia, o teto da nave da igreja viria a ruir, desabando por completo, felizmente sem ocasionar vítimas. Mesmo assim teria causado grande comoção na população. Jamais conceberíamos que o telhado da matriz de Senhora Santana um dia viesse à baixo, mas veio. Outros sinistros de nossas reminiscências referiam-se a fatores climáticos, as cheias do rio Ipanema que quase sempre deixam moradores ribeirinhos desabrigados. Felizmente não tínhamos lembranças de atos escabrosos de grande proporção ocasionados pela vil ação do homem.

As torres gêmeas nova-iorquinas, longe de nós estavam fisicamente. E muito mais longe estávamos de pensar que tivessem sido erguidas com o propósito de representar a ostentação do poderio americano, perante o mundo. Evocavam-nos muito mais, as cenas de filmes como King Kong e Inferno na Torre. Perante o que nos chegam constatações que nos levam a reflexões sobre as coisas. O que elas evocam e o que elas na verdade representam. Seria então nosso famoso “Corredor Mercantil”, que vai desde a ponte do Padre até a Estação Rodoviária, nosso World Trade Center? Incluiríamos aí o monumental prédio da Prefeitura Municipal. Câmara Legislativa nosso Capitólio. O Sétimo Batalhão da Polícia Militar de Alagoas, nosso Pentágono. Queira Deus que não tenhamos nunca inimigos sequiosos de vilipendiar, destruir os governos municipais e seus citadinos. Como acontecia no período Medieval onde as cidades combatiam entre si. Queira Deus que a “Volta Pela Estrada da Violência” nunca passe apenas de uma película cinematográfica, que um dia teria sido filmada pelas ruas de nossa cidade. Bem como gostaríamos de ouvir ao final da exibição sensacionalista da catástrofe de onze de setembro, o repórter finalizar a matéria dizendo: tudo isso não passou de mais cena pra compor uma fita hollywoodiana. Pena que não foi assim. E nunca mais, momento algum, em lugar nenhum do mundo foi o mesmo. Depois daquele dia.


Fabio Campos

Santana

Memória 

Ficava no início da Rua Ministro José Américo, em Santana do Ipanema, fim da década de 50 início da de 60. Por trás da casa do Senhor Abdon Marques, próximo à casa de vô Antonio e vó Neném, meus avós paternos. Estou a referir-me a oficina de Santana sapateiro. Não era mais que um cubículo apertado, de dois por dois, mas era seu mundo. Além daquele ambiente de trabalho, somente noutro local tive a oportunidade de vê-lo, à beira do campo de futebol, no estádio Arnon de Mello. Por ocasião dos clássicos dominicais, onde se enfrentavam os gloriosos Ipanema Atlético Clube e Associação Atlética Ipiranga. À sua minúscula sapataria, Santana recebia amigos, tais como, Sebastião Amaral, Negro Dézio, Solange treinador, Tina goleiro do Ipiranga, entre outros. Passavam horas conversando, discutindo sobre o tema preferido, futebol. Torcedor fanático do carioca Vasco da Gama vivia constantemente com seu rádio ligado. Tornava acirradas as discussões se chegava um flamenguista, assim feito Francisco Soares, Bibi ou Homero Malta. 

Diversos pares de Passo Double jaziam ali num canto, de tanto perambularem nas noitadas boêmias pelos cabarés, nos pés aventureiros de seus donos, careciam de reparos. Bem como garbosos coturnos que de muito baterem continências pro capitão Guedes, acabavam necessitando de aprumo nos flancos e duma boa lustrada com graxa preta. Sapatos de famosos pés de Valsa, feito Ernande Brandão e Luiz Euclides, necessitavam de uma meia sola. Malas enormes, que de irem e virem pra capital do estado das Alagoas, apinhadas de roupas das madamas, jogadas nos maleiros dos ônibus da Auto Viação Progresso acabavam arrebentando o fechoecler. Também sapatos ordinários, cujos donos acabavam criando um vínculo de afetividade tal que não queriam desfazer-se dos mesmos levando-nos pra Santana dar um jeito. Artefatos de proteger os pés que acabavam apresentando os vícios dos donos, o que acabava por denunciar a quem pertencia. A bota do vaqueiro que sempre estragava no calcanhar, por conta do uso da espora, sapatos de menino estragava no bico pelas peladas de bola depois da escola. Sapatos de cambotas carcomiam o salto só de um lado. Sapatos de boêmio vinha com vestígios de pó de giz da sinuca, além dos respingos de bebidas que punha manchas no brilho. Sapatos de uma dama se pareciam com suas donas e sempre continha um pouco da fragrância de seus perfumes. 

Emoção 

Porém o trabalho que o sapateiro Santana mais gostava de fazer, dedicando carinho e atenção especial, era o conserto das chuteiras dos jogadores do glorioso Ipanema e do jovial Ipiranga. Nas encurvadas paredes de pau a pique, Santana havia pregado várias fotos de jogadores consagrados nacionalmente à época, Dida, Mané Garrincha, Nilton Santos, Vavá. E num cantinho especial próximo de onde pudesse ver sempre, uma foto do Ipiranga, tendo como integrantes: Zé Cirilo, Negro Lila, Zé Carneiro, Gilson Vilela, Zé Luiz, Denancy, Tina, Érasmo, Tonho Mutuca, Negro Paulo e Zé Cuinha. Havia recortes de jornais onde ostentava os troféus ganho pelo Vasco da Gama, no campeonato brasileiro e na taça Guanabara. No teto de caibros roliços pendiam suspensas, serpentinas de cascas de laranja, nunca soube com que finalidade se punham aquilo nos caibros. Bem sabia o significado de um crucifixo feito de palha de coqueiro fixado com prego no meio da folha da porta, era pra espantar os maus espíritos. Santana conseguia a façanha de costurar as bolas couraça que rompiam seus pontos, pois eram poucas e caras as que os times santanenses possuíam. O trabalho minucioso era executado colocando a pelota pelo avesso, nada fácil fazer o arremate isso muito contribuía para tornar ainda mais cheias de cicatrizes aquelas mãos gordas de ágeis dedos ainda enegrecidos pela graxa. 

Coração Santana era um homem agigantado nas formas, dono de imensa pança, que despudoradamente exibia, sentia-se incomodado se tivesse que manter a camisa abotoada. O tórax flácido apoiado sobre lustroso ventre avolumado que devido o excesso de suor assemelhava-se a uma imensa bola negra. Do pescoço pendia um escapulário de Nossa Senhora do Rosário, Sentado à sua cadeira, rodeado de ferramentas e peças de couro, Santana assemelhava-se a um rei zulu importado de sua mãe áfrica. Havia se tronado obeso desde a juventude. Um negro feliz pela vida que tinha e por isso ostentava um semblante lustroso sempre na iminência de um sorriso. Se sorria, os dentes pareciam ter se inventado de brincar dentro da sua boca, de modo que não se apresentavam alinhados. Sorria ainda mais se o comparavam a Santana massagista da Seleção Brasileira de Futebol. Numa daquelas tardes quentes e preguiçosas de verão seu filho Neto entrou na sapateria e encontrou-o entregue ao seu costumeiro cochilo vespertino, sentado a seu trono. Neto saiu e só voltou no fim da tarde encontrando-o na mesma posição. Só então descobriria que o coração sexagenário de Santana não suportara mais ficar dentro daquele negro peito engordurado, ganhou os céus. No momento da ida ao encontro do Pai, tinha na mão um recorte de jornal, com a reportagem do milésimo gol de Pelé. Inclusive gol feito em um jogo do Santos contra seu querido Vasco da Gama, sofrido pelo inesquecível goleiro Andrada.


Fabio Campos

O Comunicado de Zé Farias

Estamos o tempo inteiro nos comunicando de diversas formas. Se escrevo uma crônica feito esta, desejamos que seja lida, e que naturalmente a mensagem transmitida, seja decodificada e entendida pelo leitor onde quer que ela consiga chegar.

Uma das formas mais ricas de nos comunicarmos é através do uso de uma língua (também chamada de idioma) um conjunto de símbolos que utilizamos, graficamente, foneticamente ou na língua de sinais, para transmitir uma mensagem.

A dinâmica da comunicação funciona mais ou menos assim: a partir de uma necessidade, de qualquer ordem, nascida de um elemento (ser humano) vivente no mundo em sociedade. Pressupõe-se que essa necessidade naturalmente deva ser suprida. De um lado está o agente transmissor aquele que quer transmitir a mensagem (sua necessidade), na outra ponta o agente receptor, o que supostamente receberá e decodificará a mensagem (que ocorre entre eles). Se todos esses eventos não ocorrem, naturalmente não ocorrerá a comunicação.

Um cara muito inteligente, chamado Jessier Quirino (pra ver seu site é só digitar o nome) teve a idéia de criar um dicionário só de nomes (vocábulos se achar melhor), e expressões usadas pelos nordestinos. Compôs também uma poesia matuta só pra designar o ânus, isso mesmo, o famoso orifício central que todos possuímos naturalmente, bem no meio da bunda. Pelo nome científico que possui: Ânus, devia ter no mínimo 365 nomes diferentes! Quiçá 12 pregas.

O poeta paraibano com muita habilidade declama em versos bem rimados o Ás-de-copa, Fosquete, oito letras que exagero! Frâinde sete letra! Furico, seis letras, muito ainda! Fi-o-fó , cinco letras, muito! Bóga, Fópa, Nico! Quatro letras, ainda dá pra diminuir! O Cós três letras...! Cu! Pronto já não dá mais pra diminuir.
 
Então, saudoso Zé Farias, foi por muito tempo fiscal da Receita Estadual, frequentador assíduo do Bar Comercial, do nosso amigo Mário Pacífico. Sentava-se ali pra degustar um prato de cuscuz com bode regado a cerveja. Caso estivesse na companhia de um amigo e este tivesse que sair urgente se o assunto era interrompido, por um motivo qualquer. Ele sem a menor cerimônia encerrava a conversa nestes termos:

-Depois eu te como o “Nico”!


Fabio Campos