Santana

Memória 

Ficava no início da Rua Ministro José Américo, em Santana do Ipanema, fim da década de 50 início da de 60. Por trás da casa do Senhor Abdon Marques, próximo à casa de vô Antonio e vó Neném, meus avós paternos. Estou a referir-me a oficina de Santana sapateiro. Não era mais que um cubículo apertado, de dois por dois, mas era seu mundo. Além daquele ambiente de trabalho, somente noutro local tive a oportunidade de vê-lo, à beira do campo de futebol, no estádio Arnon de Mello. Por ocasião dos clássicos dominicais, onde se enfrentavam os gloriosos Ipanema Atlético Clube e Associação Atlética Ipiranga. À sua minúscula sapataria, Santana recebia amigos, tais como, Sebastião Amaral, Negro Dézio, Solange treinador, Tina goleiro do Ipiranga, entre outros. Passavam horas conversando, discutindo sobre o tema preferido, futebol. Torcedor fanático do carioca Vasco da Gama vivia constantemente com seu rádio ligado. Tornava acirradas as discussões se chegava um flamenguista, assim feito Francisco Soares, Bibi ou Homero Malta. 

Diversos pares de Passo Double jaziam ali num canto, de tanto perambularem nas noitadas boêmias pelos cabarés, nos pés aventureiros de seus donos, careciam de reparos. Bem como garbosos coturnos que de muito baterem continências pro capitão Guedes, acabavam necessitando de aprumo nos flancos e duma boa lustrada com graxa preta. Sapatos de famosos pés de Valsa, feito Ernande Brandão e Luiz Euclides, necessitavam de uma meia sola. Malas enormes, que de irem e virem pra capital do estado das Alagoas, apinhadas de roupas das madamas, jogadas nos maleiros dos ônibus da Auto Viação Progresso acabavam arrebentando o fechoecler. Também sapatos ordinários, cujos donos acabavam criando um vínculo de afetividade tal que não queriam desfazer-se dos mesmos levando-nos pra Santana dar um jeito. Artefatos de proteger os pés que acabavam apresentando os vícios dos donos, o que acabava por denunciar a quem pertencia. A bota do vaqueiro que sempre estragava no calcanhar, por conta do uso da espora, sapatos de menino estragava no bico pelas peladas de bola depois da escola. Sapatos de cambotas carcomiam o salto só de um lado. Sapatos de boêmio vinha com vestígios de pó de giz da sinuca, além dos respingos de bebidas que punha manchas no brilho. Sapatos de uma dama se pareciam com suas donas e sempre continha um pouco da fragrância de seus perfumes. 

Emoção 

Porém o trabalho que o sapateiro Santana mais gostava de fazer, dedicando carinho e atenção especial, era o conserto das chuteiras dos jogadores do glorioso Ipanema e do jovial Ipiranga. Nas encurvadas paredes de pau a pique, Santana havia pregado várias fotos de jogadores consagrados nacionalmente à época, Dida, Mané Garrincha, Nilton Santos, Vavá. E num cantinho especial próximo de onde pudesse ver sempre, uma foto do Ipiranga, tendo como integrantes: Zé Cirilo, Negro Lila, Zé Carneiro, Gilson Vilela, Zé Luiz, Denancy, Tina, Érasmo, Tonho Mutuca, Negro Paulo e Zé Cuinha. Havia recortes de jornais onde ostentava os troféus ganho pelo Vasco da Gama, no campeonato brasileiro e na taça Guanabara. No teto de caibros roliços pendiam suspensas, serpentinas de cascas de laranja, nunca soube com que finalidade se punham aquilo nos caibros. Bem sabia o significado de um crucifixo feito de palha de coqueiro fixado com prego no meio da folha da porta, era pra espantar os maus espíritos. Santana conseguia a façanha de costurar as bolas couraça que rompiam seus pontos, pois eram poucas e caras as que os times santanenses possuíam. O trabalho minucioso era executado colocando a pelota pelo avesso, nada fácil fazer o arremate isso muito contribuía para tornar ainda mais cheias de cicatrizes aquelas mãos gordas de ágeis dedos ainda enegrecidos pela graxa. 

Coração Santana era um homem agigantado nas formas, dono de imensa pança, que despudoradamente exibia, sentia-se incomodado se tivesse que manter a camisa abotoada. O tórax flácido apoiado sobre lustroso ventre avolumado que devido o excesso de suor assemelhava-se a uma imensa bola negra. Do pescoço pendia um escapulário de Nossa Senhora do Rosário, Sentado à sua cadeira, rodeado de ferramentas e peças de couro, Santana assemelhava-se a um rei zulu importado de sua mãe áfrica. Havia se tronado obeso desde a juventude. Um negro feliz pela vida que tinha e por isso ostentava um semblante lustroso sempre na iminência de um sorriso. Se sorria, os dentes pareciam ter se inventado de brincar dentro da sua boca, de modo que não se apresentavam alinhados. Sorria ainda mais se o comparavam a Santana massagista da Seleção Brasileira de Futebol. Numa daquelas tardes quentes e preguiçosas de verão seu filho Neto entrou na sapateria e encontrou-o entregue ao seu costumeiro cochilo vespertino, sentado a seu trono. Neto saiu e só voltou no fim da tarde encontrando-o na mesma posição. Só então descobriria que o coração sexagenário de Santana não suportara mais ficar dentro daquele negro peito engordurado, ganhou os céus. No momento da ida ao encontro do Pai, tinha na mão um recorte de jornal, com a reportagem do milésimo gol de Pelé. Inclusive gol feito em um jogo do Santos contra seu querido Vasco da Gama, sofrido pelo inesquecível goleiro Andrada.


Fabio Campos

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