Sinha Pretinha

Sinha Pretinha nasceu índia. Numa manhã de janeiro do ano de 1927 veio ao mundo. Às margens do belo rio Ipanema em Águas Belas. Ao completar dez anos de idade, uma grande seca assolou àquela região. O rio Ipanema secou. Pra não morrer de fome muitos índios foram embora da aldeia. A menina índia, mesmo contra sua vontade, teve que abandonar a tribo em que nascera pra acompanhar seus pais. Ajuntando os parcos pertences, seguiram rumo ao sul. Quando se deram conta que estavam em terras de Alagoas, dirigiram-se à região de Água Branca. À meio caminho andado, encontraram uma caravana de tropeiros. Mascates que transportavam e vendiam víveres, artefatos de caça, e utensílios domésticos. Dirigia-se a caravana à cidade de Mata Grande. Pretinha, teria sido negociada por seus pais com um dos tropeiros. Trocada seria por meia manta de charque, uma faca peixeira, e uma cuia de farinha de mandioca.

Os pais de Pretinha e os tropeiros viajariam juntos até Água Branca. Nas imediações da vila arrancharam-se na propriedade do Senhor Anacleto da Costa Barros, um rico donatário, possuidor de vasto campo agropastoril. Senhor Anacleto explorava o cultivo de feijão, milho e algodão em grande escala. Além de possuir uma manada considerável de bovinos que mantinha de carne e leite, o donatário e sua freguesia. Parte de sua produção era vendida pros vizinhos estados de Pernambuco e Sergipe, e até mesmo pro estado da Bahia. Pretinha passaria a ser considerada pelo tropeiro que a adquiriu mercadoria de comércio. Orientado pelo capataz Florêncio Bibiano, senhor Anacleto negociou a aquisição da menina índia, por ela pagaria a quantia de quarenta contos de réis em dinheiro vivo. Pretinha passaria a ser propriedade do senhor Costa Barros e passaria a integrar a imensa leva de trabalhadores braçais. A maioria contratado do arrendatário Anacleto, pro cultivo de feijão, milho e algodão.
Os pais de Pretinha ainda ficaria por algum tempo trabalhando naquela seara, depois foram embora. Um prato de comida em troca dos dias de serviço fora tudo o que conseguiram ali. Ainda no seu corpo franzino de menina de dez anos, Pretinha era obrigada a trabalhar de sol a sol junto com outros trabalhadores, por ter sido vendida, não pode partir com seus pais. Talvez pro resto da vida tivesse que dar conta de cuidar, de cultivar e descascar eiras e eiras de sementes do plantio do seu amo. Todo aquele serviço em troca do pão de cada dia. Certa ocasião chegaria à propriedade do senhor Anacleto, trazido sobre carros de boi, uma nova horda de trabalhadores. Seriam novos contratados para ajuntar-se aos demais, pro serviço de roça na imensa plantação. Havia entre aqueles, alguns homens brancos, talvez rechaçados da plebe, desenganados da vida de boemia. Aventureiros que perderam o que tinham na jogatina, nas noitadas dos cassinos. Se submeteriam a semeadura agropastoril, tentariam angariar o que comer, e dinheiro pra retornarem à sua terra natal.

Num determinado dia de campo, Pretinha fatigada do árduo serviço, encandeada com o sol a pino acabou por arrancar um pé de feijão, no arrasto da inchada. Teria sido isso suficiente para o capataz encolerizar-se e num ímpeto de fúria desfechar-lhe violenta lapada de chicote às costas. Florêncio era de proporções descomunal, parecia nada possuir de humano aquele homem vil, assemelhava-se a um bisonte apoiado em duas pernas. Pondo sequência a seu ato, arribou a saia da menina, expondo as vistas dos demais trabalhadores suas intimidades, desferindo nas suas nádegas mais três lapadas. Um dos novos contratados chamado Abdon ao ver a cena, teria parado de fazer seu serviço e comentado a alto e bom som que aquele só teria feito aquilo porque era uma menina, se fosse num homem não ficaria assim. Dito aquilo foi em socorro da pequena índia que se punha ao chão, quase desfalecida com a violência do castigo. Aquela atitude acabaria por provocar desenfreada ira no capataz que iria interpelar de modo grosseiro o gesto de complacência do peão recém-contratado. Este porém, já lhe aguardava, empunhando uma faca peixeira, e deixaria bem claro que se não os deixassem em paz não hesitaria em desferir-lhe tantos golpes fosse necessário para não mais os importunar. Ao galpão da casa grande, na grande mesa à hora do almoço, capataz Florêncio teria contado o incidente ao senhor Anacleto, que considerou como decisão mais acertada demitir o empregado Abdon. Este sabia que a menina era propriedade do arrendatário, propôs-lhe a compra da índia. O fazendeiro não se mostrou interessado na venda. Não havendo mais o que fazer, ao peão só restou uma alternativa juntar seus pertences e deixar a fazenda, não sem antes se despedir da menina que chorou ao vê-lo partir.

Três anos desde então se passara. E eis que o destino da menina índia novamente voltaria a cruzar com o destino do senhor Abdon. O senhor Anacleto foi num dia sábado à cidade de Água Branca comprar víveres. A cidade fervilhava por conta que era dia de feira livre. Senhor Anacleto teria levado Pretinha para livrar-se de um dente que a incomodava. Deixou-a aos cuidados do boticário e encarregou o jagunço Florêncio pelas compras. Dirigiu-se ao cassino para divertir-se, tomar vinho e jogar pôquer. Eis que terminaria reconhecendo entre os que compunham a mesa de jogo o seu ex-contratado, o ex-peão Abdon. Já não mais se assemelhava àquele indigente que um dia vira. Agora trajava terno de linho do qual exalava perfume. Trazia fino cigarro Camel de filtro aos lábios, e chapéu Coty na cabeça. Sobre o tablado de linho verde as cartas iam passando de mão em mão, o ar saturado de fumaça de charutos e cigarros. Os copos tintos e dourados de vinho e uísque. As apostas se sucederiam a cada momento. Senhor Abdon ganhava sucessivas rodadas, enquanto o tempo passava. Senhor Anacleto se dispôs a abandonar o jogo por não ter mais o que apostar, perdera todo dinheiro que trazia consigo. Senhor Abdon propôs que apostasse a índia, em troca de tudo que tinha adquirido naquela ocasião. A soma considerável de trezentos mil contos de réis, dinheiro suficiente pra comprar uma propriedade como aquela que possuía senhor Anacleto. O arrendatário topou a parada e num jogo extremamente nervoso, sob um clima pesado, senhor Abdon ganhou a índia Pretinha naquela mesa de cassino, numa aposta de pôquer.

Abdon trouxe Pretinha pra Santana do Ipanema quando dava de iniciar a década de quarenta. No cartório do Senhor Benício casaram-se civilmente ela escolheu pra si o nome de Maria Aparecida. Pediria ainda que uma última vontade sua fosse realizada. Na terra natal de seu companheiro queria morar à beira do rio Ipanema. Pretinha e Abdon foram morar ás margens do rio no qual aquela índia um dia recém nascida fora batizada pelo velho pajé Yavoi-Tuba que significa “Pai da Mata e do Rio” da tribo Funi-ô de Águas Belas. Arã-Yacany-Pitanga era o nome indígena da índia, que quer dizer “Nascida do Rio Vermelho”.


Fabio Campos

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