Xenofonte

Existiu na Grécia entre 401 e 399 a.C. na cidade de Atenas, um homem que se tornaria um grande historiador do seu tempo, filho de Grilo, chamava-se Xenofonte, tinha um amigo um pouco mais novo que ele chamado Próxeno. Diz a história que Xenofonte gostava muito de cavalos. Amava-os tanto que chegaria a criar um tratado sobre a arte de criar e domesticar equinos. A metodologia, conhecida pelo não uso de violência, procurava ganhar a simpatia do animal. Carinhosamente concebida como cochichar ao ouvido do cavalo. A outra paixão de Xenofonte era por sua terra natal, tanto que seu mais importante escrito intitulado Anábase, fala de uma expedição ou marcha através do país. Muito provavelmente daí tenha originado-se o termo Xenofobia, medo irracional, aversão ou profunda antipatia em relação aos estrangeiros ou forasteiros.

Próxeno soldado e mercenário, contemporâneo e amigo de Xenofonte. Ambos lutaram na guerra de Peloponeso. Faziam parte da caravana chamada de “Os Dez Mil”. Ao se verem em território hostil, próximo ao coração da Mesopotâmia, longe dos mares e sem líder. Elegeram o próprio Xenofonte como líder. Combateram contra persas, armênios e curdos. Verdadeiro legado de escritos sobre o caráter verdadeiro de um homem nossos heróis deixaram pra posteridade. Naquela época o estado já havia sido governado por uma sequência maléfica de aristocráticos chamados de Trinta Tiranos. Próxeno tinha sua paixão declarada por armas de combate, espaldeiras, gorjeiras, espadas, lanças.

Entre 2011 e 1960 d. C. na cidade de Santana do Ipanema, nas Alagoas, existiu um homem, também historiador. Poderia ter tido nome grego, não teve. Mesmo assim o denominaremos Xantipo. Assim como o outro, lá da Grécia, gostava de cavalos, também tinha um amigo mais novo que ele. Denominemo-lo com nome fictício do berço grego. Chamemo-lo de Péricles. Tal qual Próxeno, por gostar muito, colecionava armas. Nunca foram soldados, muito menos teriam combatido em guerra alguma. A não ser a “guerra urbana” que obriga a todos a prática de luta insana pela sobrevivência, diante do caos social que o mundo contemporâneo vos impõe. Ambos exercem funções semelhantes, o ensino, das ciências humanas e da formação moral ministrada a aprendizes em idade juvenil. Mercenários da força de seu trabalho vendem-na a outro mercenário o Estado, representado por um governo oligárquico. Oligarquia há mais de Cinco Séculos instalada e mantida, sinonímia a democracia aristotélica. Esta de cá, já contabiliza mais de Trinta Tiranos que se sucedem no poder.

O Combate

Xantipo santanense, o que gosta de cavalos. Um dia no intervalo escolar ouviu de um de seus pupilos um desabafo. Chamemos a este seu aprendiz de Diógenes. Disse-lhe que já havia matado várias pessoas. Não passava de um mancebo. O quase menino, que nem tipo tinha, não falava aquilo com orgulho. Falava como se tentasse livrar-se de um grande peso. Falava de uma angustia. Um incômodo que lhe acabrunhava a consciências, talvez a alma. Olhos tristes, vagos, distante. Disse que quando matou pela primeira vez estava sobre efeito de drogas. Tinha bebido, e havia fumado uma pedra de crack. Foi depois de uma balada, na volta pra casa, morava em São Paulo. O rapaz que ele nem sabia de quem se tratava deu-lhe um empurrão no salão de dança. Acabou pagando com a própria vida o ato, talvez, não intencional. Os outros crimes teriam sido aqui mesmo, no sertão alagoano. Pra roubar uma moto, um padrasto violento que batia em sua mãe. Uma moça que o traiu com um colega. Extensa lista de sangue do menino, que queria apenas desabafar. Escolhera alguém que pra ele inspirava confiança. Disse ter medo apenas de uma coisa: dele próprio. Sabia que jamais pararia de matar. Disse que em algumas ocasiões, teria sentido fascínio, certo prazer ao cometer o ato vil. Encarando e olhando bem fundo, no olho do contador de histórias, perguntaria se podia confiar no seu silêncio.

Péricles santanense, o que gostava de armas. Não apenas ouviu história triste. Sentiu-as na própria pele. Nascido no seio de família pobre. Órfão de pai, ainda criança. A mãe sofria de doença crônica incurável. Viu-a definhar até morrer. Outro dia, por iniciativa própria, foi à casa de um aluno. Notou que o menino teve vergonha de recebê-lo, nem o permitira entrar. Sentia vergonha da miséria em que vivia. Disse que o pai alcoólatra batia em sua mãe, abusava das filhas, suas irmãs. A tarde foi caindo. Um sol laranja avermelhado projetou silhuetas negras no fantástico cenário das coisas do sertão. Enquanto a noite vinha, abraçando lentamente aquelas duas criaturas que choravam um choro surdo, mudo, xerófilo.

Fabio Campos

Travessias

Um quadro na parede. Uma imagem, a depender do observador, talvez signifique apenas o que em aparência representa. Um homem branco, com um imenso chapéu de massa azul escuro, à porta de um bordel. Trajado numa japona azul. Um xale vermelho cobria-lhe o pescoço. Luvas marrons, um bastão à canhota. Semblante vago, distante. Incomodado talvez, como se não tivesse pedido para ser retratado naquela aquarela. Cena noturna fazia frio. Era inverno. Um lugar qualquer no centro da Europa. Do tempo em que se andava de carruagens e charretes. “Ambassadeurs Aristide Bruant dans son Cabaret” dizia a gravura.

O cartaz trazia a assinatura de Henri de Toulose-Lautrec. A réplica repousava numa moldura chinfrim, na parede de um quarto de República. Onde morávamos mais quatro estudantes de Direito, à Rua Guedes Godim, antiga Rua Santa Maria, na Levada em Maceió. Foi assim, no ano de 1985, que vi pela primeira vez aquela bela imagem. Observei-a sem emoção. Analisei-a sob a luz da arte. A disposição das cores, o todo e os detalhes, o estilo do artista. H.T. Lautrec ficaria famoso por ser um dos que deram início a Art Nouveau, estilo de vanguarda do final do século 19, em Paris. Período que ficaria conhecido por Belle Époque. Outras três vezes mais veríamos aquela pintura. Numa revista de arte, estampada na camiseta duma jovem, na parede dum consultório médico. Só então entenderia que aquela imagem perseguia-nos. Pedia que fizéssemos uma travessia, que a olhasse além da tela.

Era preciso voltar no tempo. Em 28 de Junho de 1914, o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono Austro-Húngaro e sua esposa Sofia, Duquesa de Hohenberg, em visita a Saravejo na Bósnia teriam sido assassinados pelo terrorista sérvio Gravilo Princip. Esse infeliz incidente, segundo os historiadores serviu de marco para o início da Primeira Guerra Mundial. Naquela época Francisco Ferdinando intencionava transformar a monarquia dúbia até então vigente no seu reinado, desde 1867, numa monarquia tripartida, na qual os eslavos teriam que reconhecer a sua autonomia. Isso contrariava os planos dos sérvios.

Voltemos mais um pouco no tempo. Em 1889 outro incidente trágico ocorreu no seio da família imperial Austro-Húngara. O primo de Francisco Ferdinando, o príncipe herdeiro Rodolfo, cometeu suicídio em seu campo de caça em Mayerling subúrbio de Paris na França. Isso mudaria completamente o rumo da história. Com a morte de Rodolfo, o monarca Carlos Luis, pai de Francisco Ferdinando passava a primeiro lugar, na linha de sucessão do trono. E como consequência disso Ferdinando seria seu sucessor. O embaixador Aristide Bruant, pai de Rodolfo morava em Paris. O motivo pelo qual seu filho teria cometido o desatino de por fim a sua existência, forçando uma travessia antecipada, seria por conta da vida desregrada de seu pai. Bruant dado a boemia, frequentador dos cabarés da noite parisiense. Tornara-se viciado em uma bebida alcoólica chamada de Absinto. Acabaria por ter uma filha bastarda, com uma cantora do cabaré Moulin Rouge, por nome de madame Jane Avril. Rodolfo apaixonara-se pela moça, ao descobrir de quem era filha, suicidou-se.

Aristide Bruant era amigo do pintor Toulose-Lautrec, também dado a jogatina e amante das noitadas boêmias de Paris. Fazia das prostitutas do Molin Rouge suas musas. Nascido na nobreza francesa, possuía uma linha de ancestrais de nomes aristocráticos. Seu pai era o Conde Alphonse de Toulouse-Lautrec-Monfa, e sua mãe Adéle Tapié de Céleyran. Queriam seus pais que o filho seguisse o mesmo caminho nobre de toda a sua família, tanto materna quanto paterna. A vida mundana levaria a ter a saúde minada, no dia 09 de setembro de 1901 o pintor alcoolátra e sifilítico fazia sua travessia. Morreu nos braços de sua mãe aos 36 anos de idade, no castelo de Malromé, cercanias de Bordeaux.

Santana do Ipanema, sertão das Alagoas. Cenário de outras travessias. No dia 16 de Dezembro de 1908 nasceu o filho de Antonio Francisco de Campos. Ainda jovem soldado de polícia, na idade adulta padeiro. Banqueiro de jogo de baralho, boêmio. Conheceu a filha de Thomaz Dorotheu. Ao pedi-la em casamento, já contava com mais de trinta anos de idade. Tornou-se comerciante. Este fora meu pai. Em momentos de descontração por várias vezes vi-o pegar uma folha de papel e desenhar. Desenhava naturezas mortas. Peixes dentro dum cesto. Frutas, garrafões de vinho. Desenhava uma estranha avestruz. Dizia que aquela ave escondia um segredo. Na verdade era o mapa de um tesouro. A pluma da cauda representava montanhas alpinas. O longo pescoço uma trilha, um caminho imaginário que levava a uma ilha (a cabeça da ave) quem sabe a ilha de Córsega. As patas do pernalta gigante representava dois guardiões do tesouro, que ficava num castelo de pedras, representado pela asa da ave, talvez a Catedral de Notre-Dame. Contava eu com a idade de dez ou onze anos quando o vi pela última vez desenhar a avestruz, mapa do tesouro. Lamento não ter tido a curiosidade de perguntar, de onde ele teria visto o desenho misterioso. Meu pai. Assim como o artista francês, faria sua travessia também num setembro. 06 de setembro de 1976.


Fabio Campos

João Pedro

João Pedro é um santanense da gema, nasceu no Largo São Cristovão. No Hospital Doutor Arsênio Moreira. É um menino, dez anos de idade fará por os dias que se sucedem. É filho, o terceiro, da minha irmã mais nova. João Pedro quis vir ao mundo numa data importante para nós brasileiros, alagoanos. Nasceu João Pedro na manhã de mais um aniversário da Proclamação da República do Brasil.

Santana do Ipanema rodou em baixo dos pés de João Pedro. O menino nunca gostou de estar dentro de casa, entre quatro paredes! Depois que aprendeu a andar, e descobriu a porta que dá pra rua: Ô menino andejo! Meu Deus! Convenhamos que um menino com dois nomes, na certa deve valer por dois! Sendo assim, o João aprendeu a escrever o evangelho no Grupo Escolar Padre Francisco Correia. E o Pedro, a pescar no riacho do Bode. A avó dizia: Esse menino, nos modos, se parece com o seu tio Francisco! Desde pequeno, aquele nunca gostou de estar dentro de casa. Por conta disso ficaria muitas vezes de castigo, levaria muitas sovas. Pra não sair deixava-o nu, mesmo assim ele procurava um calção no cesto de roupas, e escapulia pulando o muro do quintal.

Na foto de Recordação Escolar, aquela que tiramos tendo ao fundo a bandeira do Brasil, Francisco, de tantos banhos no rio Ipanema, está preto! Já João Pedro, está com o cabelo grande! Não gosta de cortá-lo. Se esforçando pra não rir, cara de menino levado. Esse menino ia pro cercado de Seu João Augustinho com um alçapão cheio de milho alpiste, pra pegar passarinhos. Levava bananas e maçãs pra quando apertasse a fome. E ali cuidava o dia inteiro de vigiar a lida dos passarinhos, e ninguém sabia o seu paradeiro. Nem ele se atinha que vivia a mais bela fase da vida, a infância. Por certo, uma árvore viria a embalar seus sonhos. Cajueiros cheios de maturis de botar nódoa à roupa. Umbuzeiros, de umbus verdes de encher a boca de travo e desbotar os dentes. Um açude pra mergulhar, sem ter com que se preocupar. Mal sabia que no passado seus tios teriam feito exatamente como ele fazia. Aos domingos ia pra quadra da AABB de Santana do Ipanema. O dia inteiro, participando do campeonato de futsal infantil. Organizado por eles mesmos, os meninos do Monumento. Teve uma vez que sem ter dinheiro pra pagar a taxa de inscrição no time, aprontou. No sábado à casa da avó, ajuntou num saco uma quantidade de panelas de alumínio, e levou pra feira da troca que fica próximo a Cadeia Pública. Vendeu quase todas as panelas da avó na feira do rato.

João Pedro foi passar uma temporada na casa do pai, em Maceió. Na capital fez novas amizades. Ganhou bicicleta nova. Aprendeu andar de skate. Passou a fazer parte de um time de futebol infantil, eles almejavam participar do campeonato do Sesi. A avó perguntou se estando em Maceió, se sentia saudade de Santana do Ipanema. Nada respondeu. No seu jeito calado, foi como se dissesse que sim, que sentia saudade de todos nós. Das brincadeiras naquela velha casa, nos quartos que um dia fora meu e de meus irmãos. Por vezes vi-o brincando, guerreando com travesseiros com seus irmãos, e foi como se visse a mim mesmo. E vi como eram felizes, ainda que arengassem, assim como um dia fomos nós. Nos estudos João Pedro está atrasado. Passava de ano numa escola. Acabava repetindo de ano noutra. Isso é o que dá ser filho de pais separados. Um tempo passa com a mãe, outro com o pai. E se a coisa fica preta dos dois lados. Se os mimos acabavam, e vinham as cobranças, ainda restava à casa da avó.

Casa de pai e mãe é bom, casa de avó ainda melhor. João Pedro um dia ganhou um cachorro, deu-lhe o nome de Billy. A avó ao ver o menino brincando com o cãozinho se lembraria de Fernando, quando pequeno também ganhou um cachorro, mas papai não aceitou que fosse criado dentro de casa. O menino chorou muito, já tinha se apegado ao animalzinho de estimação. Tão bela é a amizade de um menino e seu cão. João Pedro levou Billy pra chácara do seu padrasto que fica a beira da rodovia. O cão não tendo noção de perigo, tentou atravessar a pista. Acabou colhido por um veículo em alta velocidade, ficou entre a vida e a morte. Levado pra uma clínica veterinária sobreviveu, mas perdeu uma das patas dianteira.

No Natal a família sempre se reúne em torno de uma mesa. Nessas ocasiões tem João Pedro à oportunidade de estar junto aos outros primos, Tiago, Lucas, Mateus, Thomas. E assim a ceia santa termina virando a santa ceia. Na cozinha da nossa casa, tem na parede uma réplica da obra de Da Vinci, a Última Ceia. Na confraternização derradeira em que estivemos reunidos brincávamos com nossos sobrinhos, dizíamos quem era quem na gravura. João Pedro achou melhor ser Pedro do que João. Justificaria dizendo que àquele sem barba mais parecia mulher. Faria rir a todos ao constatar sério, que quem estava com a máquina fotográfica na Ceia Sagrada acabou não saindo na foto.

Fabio Campos

Zingara

Em 1972, Santana do Ipanema tinha, no seu antigo mapa geográfico, o formato do Catorze Bis de Santos Dumont. Isso porque à época, não havia ainda se desmembrado do município, o povoado Riacho Grande. O que isso tem haver com o que vamos contar? Nada. Talvez possibilite ainda mais imaginação às nossas asas.

Manhã festiva, ensolarada, de setembro daquele ano. O prefeito Doutor Henaldo Bulhões Barros e comitiva. Se dirigiu ao Campo de Pouso, próximo ao Lajedo Grande, pra receber o governador do Estado das Alagoas Doutor Afrânio Salgado Lages. Chegaria num helicóptero do Exército brasileiro para prestigiar a segunda Festa do Feijão. A Praça da Bandeira tomada pelo povo pra ver o desfile. A banda do 20º Batalhão de Polícia Motorizada da capital executava uma música que falava do momento pátrio. De seus instrumentos, os músicos extraiam em melodia, os versos criados pelo radialista carioca Miguel Gustavo, eternizados na voz do cantor Milton Santos de Almeida, Miltinho:

“Marco extraordinário
O Sesquicentenário da Independência!
Potência de amor e paz
Este Brasil faz coisas
Que ninguém imagina que faz.

É Dom Pedro I
É Dom Pedro do Grito
Esse grito de glória
Que a cor da história à vitória nos traz
Na mistura das raças
Na esperança que uniu
No imenso continente nossa gente, Brasil"

Comandava a nação brasileira, naquela época, o general Emílio Garrastazu Médici. Até o término daquele ano, acontecimentos muito fortes iriam ocorrer que deixariam marcas indeléveis no traçado de nossas vidas, de nossa história. Veríamos pela tevê Tupi através do programa “Flávio Cavalcante” a entrevista com Alvaro Mangino e José Inciarte. Dois dos 16 sobreviventes do desastre aéreo com um avião bimotor Focker 27 que levava um time chileno pra jogar uma partida de Rugby na Argentina. O sinistro ocorrera na cordilheira dos Andes, justo numa sexta-feira 13 de outubro. Confessariam, ao mundo estarrecido, que para sobreviver teriam comido carne humana, dos cadáveres mantidos congelados. Dois dias antes da festa na Praça da Bandeira, em Santana do Ipanema, lá na Alemanha, um grupo terrorista da Organização para a Libertação da Palestina invadiu a vila Olímpica em Munique, matou dois membros da delegação de Israel e sequestrou outros nove, totalizando onze, em setembro.

Tudo isso nunca passaria apenas de notícias de jornais. Páginas folheadas pelo deus Chronos. Casos e causos, fadados ao poço profundo do esquecimento. Isso se não viesse a lembrança, e assoprasse deles o mofo do tempo. Levando-nos a relacioná-los com outros acontecimentos que ainda iriam ocorrer. Coisas que nunca teremos como explicar. Restando-nos apenas contar.

Naquele mesmo ano chegaria à casa de meus pais, uma empregada doméstica que chamarei de Zingara. Primeiro porque não consigo lembrar seu verdadeiro nome, por gostar de música italiana. E ainda mais, por ela ser metida a adivinha. Eu contava com doze anos de idade quando numa noite de lua cheia, do mês de novembro, como a que nos ocorre agora. Zingara sugeriu que fizéssemos, eu, ela e mais outros dois irmãos, um ritual de invocação dos mortos. Tudo foi providenciado, uma vela foi acesa. Sobre um alfabeto escrito a lápis, numa folha de papel disposto sobre a mesa, um copo de vidro foi emborcado. Zingara pediu a todos que colocássemos levemente o dedo indicador da mão direita sobre o fundo do copo. Iluminados apenas pela luz da vela, após uma breve pronunciação gestual, a vidente perguntaria dirigindo-se a quem noutra dimensão se encontrasse, e interessado estivesse em comunicar-se com os que ali estavam que se pronunciasse. O copo começaria então a dirigir-se as letras. Antes de completar uma palavra decifrável, um forte brado ouviu-se ecoar no quarto, ao lado da cozinha onde nos encontrávamos, resultando em um baque violento na porta. Meus irmãos e eu, cheios de temor, disparamos em desabalada carreira deixando Zingara sozinha que aparentava estar como numa espécie de transe. Na precipitação e correria acabamos derrubando a vela sobre a mesa, ocasionando um princípio de incêndio. Retornamos depois de tudo acalmado. Zingara já havia se recomposto, no entanto acabara tendo queimaduras nas mãos e braços. Alguém teria vindo até nós naquela noite. A-N-D-R foram as únicas letras da palavra que o copo deslizante tentou conseguir formar. No dia 24 de fevereiro daquele ano, o edifício Andraus havia incendiado em São Paulo, dezesseis pessoas morreram carbonizadas.


Fabio Campos

Beneditos

Essa é uma história de nomes de pessoas. De lugares, e de páginas que o tempo volta e meia teima em reviver, revirar. Quando se casaram meus pais foi morar no Bairro Camoxinga, no largo São Cristovão. A casa ficava virada pro norte, tão escassa a quantidade de construções em Santana do Ipanema naquela época, que da porta dava pra ver a ladeira que subia pro cemitério Santa Sofia. O século vinte tinha nesse tempo, seus quarenta e poucos anos. Nos primeiros anos de casado meu pai vivia de jogo, em mesas de cassino, jogador profissional. Dias e noites passava nas mesas de pôquer.

Depois da casa do padre Bulhões, na subida da ladeira em direção a Camoxinga tinha a padaria de Seu Benedito. A casa do padre ficava na confluência do riacho com o rio Ipanema. Bem ali construiriam uma ponte que ficaria conhecida como ponte do padre. Minha mãe desde menina aprendeu a gostar de ir à igreja. O costume trazido da infância permaneceu depois de casada. As sextas-feiras dona Maroquita ia à padaria de Seu Benedito buscar a massa pra confeccionar as hóstias, pras missas do padre Bulhões. Naquela casa da Camoxinga minha mãe teve o primeiro filho. Papai tinha lido um livro, um romance cujo protagonista chamava-se Silvano, batizaria o filho com esse nome. Seu Benedito da padaria foi convidado pra ser padrinho do menino. Silvano foi uma criança muito doente, não completaria um ano e morreu. As folhas da craibeira punha seu tapete amarelo no chão da praça. O colibri de flor em flor ia depositando seu beijo. Doce beijo dom de vida. Compadre Benedito sem afilhado. Triste Benedito do outono.

Do Largo São Cristovão meus pais se mudaram pro início da Rua Barão do Rio Branco. A casa tinha a fachada virada pra matriz de Senhora Santana. Banhada de sol toda manhã, da porta da frente dava pra ver o comércio, os armazéns de estivas. Dos fundos olhava-se pro rio Ipanema, o poço do juá, o poço dos homens. Na frente à prosa do fim de tarde até a noite. Nos fundos a poesia, a qualquer hora. Naquela casa nasceria Francisco, segundo filho de minha mãe. Papai tinha um irmão soldado de polícia, chamava-se Francisco de Campos. Por isso o segundo filho se chamaria Francisco. Teve um dia que um touro, encontrando a porta dos fundos aberta, entraria casa à dentro. O inocente Francisco dormia numa rede, minha mãe em desespero correu a rua em busca de auxílio. Negro Benedito um estivador deixou seus afazeres, impondo seu porte físico bradando um forte berro fez o boi considerar, e recuar pra beira do rio. Bravo Benedito, negro na pele, branco na alma. Costumava arrancar gargalhadas dos meninos com suas estripulias. Benedito redemoinho. Frívolo Benedito de verão.

Meus pais foram morar na Rua Nova de casas com suas belas escadarias. Rua dos primeiros madrigais. Os seresteiros nas noites romanescas iam cantar nas sacadas das moçoilas casadoiras. Rua da farmácia de Seu Aleixo. Rua do calçamento de pedras antigas, que sepultavam histórias do tempo da escravidão. Negros iam pro Bebedouro tangendo muares e voltavam trazendo barris cheios de rio. No bailado das cangalhas as ancoretas arremedavam o som do líquido precioso, descendo glut-glut pelas gargantas ávidas dos carvoeiros, dos tangedores de carro de boi. A pedra assentada na rua, sorvia o suor caído do rosto, junto com as lágrimas do rio. Benedito carreiro parou à porta da casa, e chamou minha mãe. Francisco, que apenas quatro anos tinha, por ele foi trazido do rio. Benedito caboclo de mãos calejadas, no árduo trabalho do campo. Benedito de pele curtida de sol e de rio. Providencial Bendito de inverno.

Outra vez mudaram-se meus pais. Foram morar no largo do Monumento. Dona Osvalinda e senhor Sebastião, os padrinhos de Francisco comentaria que os compadres da família Campos, teriam ido morar no lado burguês da cidade. Largo do Monumento da igrejinha de Senhora da Assunção, do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, do Ginásio Santana. Também dos Correios e Telégrafos. Onde trabalhava seu Bêbe, esposo de dona Aída Malta. Pais de Benedito, eram estes vizinhos de meus pais. Estava um dia à janela da casa, Fernando o terceiro filho de minha mãe. Ele e o irmão Francisco. Tinham então seis e sete anos de idade. Benedito, irmão de Homero, Odaléia, Rejane e Telê, veio bem de vagarinho, e pimba! Tacou um tabefe no pé de Fernando. O menino agredido não se fez de rogado, catou uma touceira de capim e zuniu, indo cair dentro da casa do Benedito. De barro foi manchar, o verniz do centro, a porcelana do jarro de flores. Pronto, lá estavam as mães numa discussão, na calçada. O céu índigo a tudo testemunhava. Alvas nuvens pareciam sorrir das traquinagens dos meninos. Benedito, este já corria a aprontar novas estripulias. Benedito feito pinceladas de primavera.