Zingara

Em 1972, Santana do Ipanema tinha, no seu antigo mapa geográfico, o formato do Catorze Bis de Santos Dumont. Isso porque à época, não havia ainda se desmembrado do município, o povoado Riacho Grande. O que isso tem haver com o que vamos contar? Nada. Talvez possibilite ainda mais imaginação às nossas asas.

Manhã festiva, ensolarada, de setembro daquele ano. O prefeito Doutor Henaldo Bulhões Barros e comitiva. Se dirigiu ao Campo de Pouso, próximo ao Lajedo Grande, pra receber o governador do Estado das Alagoas Doutor Afrânio Salgado Lages. Chegaria num helicóptero do Exército brasileiro para prestigiar a segunda Festa do Feijão. A Praça da Bandeira tomada pelo povo pra ver o desfile. A banda do 20º Batalhão de Polícia Motorizada da capital executava uma música que falava do momento pátrio. De seus instrumentos, os músicos extraiam em melodia, os versos criados pelo radialista carioca Miguel Gustavo, eternizados na voz do cantor Milton Santos de Almeida, Miltinho:

“Marco extraordinário
O Sesquicentenário da Independência!
Potência de amor e paz
Este Brasil faz coisas
Que ninguém imagina que faz.

É Dom Pedro I
É Dom Pedro do Grito
Esse grito de glória
Que a cor da história à vitória nos traz
Na mistura das raças
Na esperança que uniu
No imenso continente nossa gente, Brasil"

Comandava a nação brasileira, naquela época, o general Emílio Garrastazu Médici. Até o término daquele ano, acontecimentos muito fortes iriam ocorrer que deixariam marcas indeléveis no traçado de nossas vidas, de nossa história. Veríamos pela tevê Tupi através do programa “Flávio Cavalcante” a entrevista com Alvaro Mangino e José Inciarte. Dois dos 16 sobreviventes do desastre aéreo com um avião bimotor Focker 27 que levava um time chileno pra jogar uma partida de Rugby na Argentina. O sinistro ocorrera na cordilheira dos Andes, justo numa sexta-feira 13 de outubro. Confessariam, ao mundo estarrecido, que para sobreviver teriam comido carne humana, dos cadáveres mantidos congelados. Dois dias antes da festa na Praça da Bandeira, em Santana do Ipanema, lá na Alemanha, um grupo terrorista da Organização para a Libertação da Palestina invadiu a vila Olímpica em Munique, matou dois membros da delegação de Israel e sequestrou outros nove, totalizando onze, em setembro.

Tudo isso nunca passaria apenas de notícias de jornais. Páginas folheadas pelo deus Chronos. Casos e causos, fadados ao poço profundo do esquecimento. Isso se não viesse a lembrança, e assoprasse deles o mofo do tempo. Levando-nos a relacioná-los com outros acontecimentos que ainda iriam ocorrer. Coisas que nunca teremos como explicar. Restando-nos apenas contar.

Naquele mesmo ano chegaria à casa de meus pais, uma empregada doméstica que chamarei de Zingara. Primeiro porque não consigo lembrar seu verdadeiro nome, por gostar de música italiana. E ainda mais, por ela ser metida a adivinha. Eu contava com doze anos de idade quando numa noite de lua cheia, do mês de novembro, como a que nos ocorre agora. Zingara sugeriu que fizéssemos, eu, ela e mais outros dois irmãos, um ritual de invocação dos mortos. Tudo foi providenciado, uma vela foi acesa. Sobre um alfabeto escrito a lápis, numa folha de papel disposto sobre a mesa, um copo de vidro foi emborcado. Zingara pediu a todos que colocássemos levemente o dedo indicador da mão direita sobre o fundo do copo. Iluminados apenas pela luz da vela, após uma breve pronunciação gestual, a vidente perguntaria dirigindo-se a quem noutra dimensão se encontrasse, e interessado estivesse em comunicar-se com os que ali estavam que se pronunciasse. O copo começaria então a dirigir-se as letras. Antes de completar uma palavra decifrável, um forte brado ouviu-se ecoar no quarto, ao lado da cozinha onde nos encontrávamos, resultando em um baque violento na porta. Meus irmãos e eu, cheios de temor, disparamos em desabalada carreira deixando Zingara sozinha que aparentava estar como numa espécie de transe. Na precipitação e correria acabamos derrubando a vela sobre a mesa, ocasionando um princípio de incêndio. Retornamos depois de tudo acalmado. Zingara já havia se recomposto, no entanto acabara tendo queimaduras nas mãos e braços. Alguém teria vindo até nós naquela noite. A-N-D-R foram as únicas letras da palavra que o copo deslizante tentou conseguir formar. No dia 24 de fevereiro daquele ano, o edifício Andraus havia incendiado em São Paulo, dezesseis pessoas morreram carbonizadas.


Fabio Campos

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