Belchior, Baltazar e Gaspar

Professor Belchior morava na Praça do Monumento em Santana do Ipanema. Vamos contar coisas de uma época em que não tinha ainda internet, nem celular. Tempo em que as nossas mães passavam o dia enfeitando a casa pra noite feliz. À vitrola som de harpa, melodia de velhos Long plays voando por entre as coisas. De porta em porta – ia mensageira - pela rua. Indo acordar o espírito das coisas natalinas. Frágeis bolas luzidias nas árvores de natal refletiam os rostos duendes de nós mesmos. Rostos de imensos narizes, deformados na fina camada de alumínio das esferas de cristal. Telefone, só existia os fixos, dos que se colocava o dedo num disco e girava, girava. Ainda assim nem todos tinham. Na nossa rua somente, Doutor Aderval Tenório, o promotor de justiça tinha. E meu irmão que estava longe, ligava no dia de natal. E minha mãe corria da cozinha, enxugando as mãos molhadas no avental. Apressada a tirar o lenço da cabeça, ia conversar com o filho distante. As mãos seguravam com carinho o aparelho como se afagasse o rosto do filho. Olhos rasos d’água, fixos num ponto qualquer, buscando a fisionomia do menino que, nunca crescera, nunca cresceria. O coração apertado, tanto quanto o fio enrolado nos seus dedos. A benção banhada de lágrimas. Um triste feliz natal de despedida. O professor Belchior fora amigo de infância daquele menino do Rio. Cresceram juntos jogando bola nas areias e tomando banho no Ipanema. Um dia lá no pátio do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, prometera serem sempre amigos. Uma amizade que jamais deveria acabar. E no natal, se estivessem distantes um do outro, cada um devia fazer uma caridade, como ensinava a professora dona Marinalva Cirilo. Professor Belchior agora adulto se lembrava daquele juramento. Tanto tempo havia se passado. Descobria com aperto no peito que a pureza, a inocência de menino, o mundo infelizmente havia roubado. Endureceu-lhe o coração tão sorrateiro que ele mal percebera. Estava resolvido a cumprir naquele ano o propósito de infância. Convidaria os demais colegas da escola, arrecadariam donativos e doariam as famílias pobres do alto dos negros.

O sapateiro Baltazar na bela noite se punha a um banco na Praça do Comércio. Desligado do mundo admirava as luzes coloridas piscando no meio do verde da árvore natalina. Aquilo trazia lembranças de um natal de outros tempos. O pensamento voou lá pro tempo de infante, quando ali naquela mesma praça dona Marina Marques organizava e apresentava um pastoril. Tanta divagação que chegou a ouvir a música cantada pelas pastorinhas.

“Meu São José dá-me licença
Para o pastoril dançar
Viemos para adorar
Jesus nasceu para nos salvar”

O chap-chap dos maracás nas mãos das belas pastoras. As torcidas pelo azul e o encarnado. As fitas balançando, a lapinha disposta com esmero. Areia do Panema pra apoiar a estatueta do camelo. Os pastores, igualmente estático, como se pousassem pro flash das máquinas fotográficas. Capim do poço dos homens pra manjedoura onde nascera Jesus. Pedras e pés de catingueiras do poço do Juá pra dar autenticidade ao cenário de Belém de Judá. Noite realmente feliz. Ainda não se pensava em natal como festa apenas de consumo. Era festa essencialmente religiosa. Baltazar tinha uma irmã que morava no Paraná. Todos os anos dela recebia uma encomenda pelo correio. Presentes pros seus três filhos, roupas e brinquedos. Um cartão, com uma árvore coberta de neve e letras douradas, desejava-lhes feliz natal. Colocaria junto ao porta-retratos de casamento. No início do ano iria pro álbum de família. Todos os anos iam a missa do galo, antes da ceia natalina uma oração. Os filhos abraçariam os pais, e se os padrinhos morassem perto, receberiam a visita dos afilhados. Tentariam angariar uma prenda. Baltazar tinha um segredo só seu. Todos os anos, no dia de natal ia ao Asilo São Vicente de Paula, e doava para os velhinhos alguns pares de alpercatas, feitos de si mesmo. Resolveu fazer diferente desta vez levaria pra alguns mendigos que dormiam na marquise do prédio do Correio.

Seu Gaspar era carpinteiro, morava próximo ao Viaduto Professor Deraldo Campos. Pela época do natal fabricava cavalos de pau pra presentear crianças pobres. Seu Gaspar morava sozinho num quartinho anexo a sua marcenaria. Tinha um universo de quinquilharia que qualquer criança ficaria fascinada caso conseguisse um passaporte pra uma viagem aquele mundo encantado. Ali podiam possuir o pó de pir-lin-pin-pin e navegar aquelas miniaturas de caravelas, aviões. Tronar-se o Pinóquio daquele Jepeto santanense. Viúvo a mais de vinte anos, tivera seis filhos todos já haviam casado nenhum morava em Santana do Ipanema. Aquela poderia ser uma data muito triste, se Seu Gaspar não fizesse ele próprio a diferença. Na noite de natal vestia uma velha fantasia de papai Noel e ia pelas ruas e praças distribuindo doces com crianças de rua.


Fabio Campos

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