Cachimbo Eterno

Santana do Ipanema constitui-se de colinas, em seu arrabalde são elas que definem a paisagem. Delineiam o retrato da cidade. No inverno, o sol, no seu movimento aparente - devido à inclinação da terra – passa do hemisfério sul para o hemisfério norte do mundo, é o Equinócio Vernal. Entre a Serra Aguda e o Alto da Cajarana, por atrás daquelas montanhas, é ali que o sol vai se por. No verão, quando temos dias mais longos, ocorre o Solstício de inverno no hemisfério norte. O astro-rei dá o ar de sua graça com mais intensidade por estas paragens, vamos ter a impressão que ele se desloca um pouco para o noroeste. Proporcionando crepúsculos extraordinários.

Ao reclinarmos nosso olhar um pouco para Oeste deparamos com uma pequena elevação rochosa, o Alto do Cruzeiro. Coberta de verde o ano inteiro, a montanha é encimada por uma protuberância de granizo. A imensa jazida está posta feito um solidéu, o gorro que os judeus ostentam no alto da cabeça. Na semana santa - Formigueiro de peregrinação - o alto daquela montanha, está para os santanenses, como o horto do meu “padrinho” Cícero está para o sertão do cariri do Juazeiro do Norte. A elevação proporciona a quem a ela almeja a graça da contemplação. Reflexão do golgota, do martírio de Cristo ainda aqui na terra.

Nos dias frios, o terral envolve o cume da montanha criando um aspecto mítico. Remete ao observador a magníficos cartões postais dos Alpes suíços. Todo esse fascínio somente - a quem é, ou tornou-se santanense - o é permitido perceber, e usufruir de sublime deleite. Sob a base do Serrote vislumbramos um aglomerado de edificações. Enfileirado de habitações que vai salpicando o sopé da montanha, feito os forros que guarnecem a barra da saia de uma noiva. No passado só existia ali, esporádicos casebres de pescadores. Donde fluía de rústicas chaminés, o fumo negro liberado da queima do carvão, nos fogões à lenha. Refúgio natural do espírito da urbe. Do alto, o cruzeiro, a contemplar o tempo inteiro, o centro da cidade de Santana do Ipanema. Santuário de rara beleza, envolto numa aura de diafaneidade e misticismo perpetuo. Por tudo que representa foi batizado pelo povo com o adequado nome de Cachimbo Eterno.

Em 1879, Santana do Ipanema, já havia sido elevada a categoria de Vila. O padre Francisco Correia nomeado para catequizar nesta freguesia, teria sido chamado a comparecer a Arquidiocese de São Salvador na Bahia, até 1892 configuraria como a maior arquidiocese do mundo. Penedo detinha o título de catedral. Belíssima Catedral de Nossa Senhora do Rosário. Olinda e São Luiz do Maranhão ainda prelazias. O padre fora convocado por Dom Joaquim Gonçalves de Azevedo, Arcebispo da Bahia e Bispo Primaz do Brasil. O missionário que respondia pela freguesia da Vila da Ribeira de Senhora Santa Anna estaria sendo convocado para se justificar perante a Cúria episcopal, sobre a acusação de operar milagres perante seus paroquianos. Corria pelo sertão histórias que o padre era um homem santo de Deus. As coisas alardeadas e atribuídas a sua pessoa acabou chegando à Sé Primacial do Brasil, a mais antiga das Américas. Diziam que em certa ocasião, o padre no meio do sermão parou a pregação – como em transe, dizia estar tendo uma visão - um amigo frade, distante de onde ele se encontrava milhares de quilômetros, acabava de morrer naquele exato momento, viera despedir-se dele. Dias depois o que dissera se confirmava, também sobre curas milagrosas. Crianças em leito de morte, tendo sua saúde restabelecida só pela chegada do missionário na residência onde se encontrava a criatura enferma. Isso correu feito rastro de pólvora, o estopim a Diocese de São Salvador da Bahia. Ao clero, incomodava essas histórias de santidade. A inquisição estava instalada, o que levou a gerar um inquérito clerical contra o padre, o veredicto poderia resultar no afastamento do missionário de suas funções. Padre Francisco, preparou-se por meses para a longa viagem, muito embora, nunca chegaria a ser interrogado pelo Bispo Primaz do Brasil. Dom Joaquim, veio a falecer em 06 de novembro daquele ano.

Certa feita, padre Francisco se preparava para mais uma de suas viagens, sentado a mesa para fazer a refeição matinal, olhando pelo vão de uma das imensas janelas do velho casarão ao lado da igreja, que servia de casa paroquial, vislumbrou o serrote do Alto do Cruzeiro. Sem tirar os olhos de lá, comentou com sinha Eudócia - a preta velha cozinheira da residência do pároco - naquele sábado ia chegar a Santana do Ipanema um estrangeiro. Um forasteiro que ia mudar a história daquele serrote. De fato, se confirmou mais aquela visão do padre, na manhã do primeiro sábado do mês de dezembro de 1879 chegou a Santana do Ipanema, mais precisamente a margem direita do rio Ipanema, vindo do sul, um senhor branco, de meia idade, se apresentou ao intendente municipal pelo nome de Domingos Acácio.Num comboio de seis montarias e um carro de boi. Mulher, um casal de filhos iniciados na puberdade, e um negro escravo seu fiel escudeiro. Assim chegou, em trajes de caudilho Domingos Acácio. Deteve-se a examinar as cercanias da vila. Com as mãos fez concha e provou da água salobra do rio, atravessou de canoa. Ocupou com a família, uma casa no centro da cidade. Cedida a título de empréstimo, pelo intendente Coronel Capistrano Rodrigues. Com o senhor Manoel Rodrigues Rocha Ouvidor-Geral da Vila da Ribeira de Santa’Anna negociou a compra de um lote de terra fincado a sudeste da vila à margem direita do rio Ipanema. As terras compradas pelo mais recente habitante da vila ficavam no sopé da montanha, ali se estabeleceu e ergueu moradia. Trabalhou e cultivou a terra. Instalou uma espécie de entreposto onde comercializava com os viajantes, mercadores e camponeses. Comprava para exportar, pele de animal, capucho de algodão, feijão e milho. Vendia corda de caruá, querosene e sal de cozinha. O colono mercador prosperou. Em sua própria residência improvisou uma sala onde sua esposa dava aula as crianças daquela extensão da vila, uma vez que se quisessem estudar tinham que atravessar o rio de canoa. Era um homem temente a Deus, por ocasião da quaresma com os ribeirinhos subia o Serrote onde fincou o primeiro cruzeiro, tempos depois ergueria uma capela. Devido ao sotaque carregado ao falar, Domingos Acácio denunciava sua descendência hispânica. Diziam que havia lutado na guerra do Paraguai. Preferia ser conhecido como mais um dos netinhos de Santa Anna, afinal havia provado da água do Ipanema.


Fabio Campos

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