Vida e Carnaval

Raimundo teve consciência de haver acordado. Embora permanecesse, de olhos fechados, mas acordado. O olfato, sentido mais aguçado naquele instante, acusou cheiro forte de éter. Ou formol? Onde estaria? Silêncio. Resolveu finalmente abrir os olhos. “Ambulatório” leu mentalmente a pequena placa branca, em letras vermelhas sobre a porta. Uma lâmpada fluorescente acesa iluminava o ambiente. Um ventilador assoprava dum canto. As janelas tinham persianas cerradas, não dava pra saber se dia ou noite. Teto e paredes brancas, uma barra verdes claro. Estava numa cama de ferro, também branca. Percebeu-se metido numa espécie de bata. A boca seca. Tinha sede. A cabeça, enfaixada. Ao lado da cama o pedestal donde pendia o tubo que gotejava soro numa mangueira fina que ia até seu braço. Quis levantar o braço livre, buscou alcançar uma campainha sobre um criado-mudo de ferro. Vã tentativa, o braço doía. Tentou sentar-se, se apoiando nos cotovelos, sentiu uma fisgada nas costas, desistiu. O único movimento que conseguia sem dor, era mexer a cabeça. Olhou ao longo do seu próprio corpo, viu os pés coberto, tentou meche-los, nada. Um cartaz na parede ao lado da cama mostrava o rosto de uma enfermeira muito bonita, com um dedo sobre os lábios, a frase em letras pretas advertia: “Silêncio! Hospital.” O lençol tinha na barra, a sigla daquela unidade de saúde, H.R.Dr. A.M. (Hospital Regional Dr. Arsênio Moreira). Tentou lembrar-se o que acontecera. Onde estava antes dali?

Hudson não queria acreditar no que seus olhos viam. Desesperado apenas gritava. Acabara de bater seu carro numa moto. Era noite, estava sozinho. Sob o foco do farol, no meio da pista, gritava feito louco. Como aquela moto surgiu do nada? Sentiu o baque seco. O vidro do pára-brisa se estilhaçando, sangue. Som de ferro retorcendo e ossos se quebrando. Acenava para que outros carros parassem e o ajudasse. O homem estendido na pista era Raimundo. Vários carros paravam, alguns por pura curiosidade, outros pra ajudar. Hudson tentava sem conseguir, a lucidez, organizar os pensamentos. Aquela era uma rodovia federal. Não podia permanecer ali, precisava evadir-se. Os guardas rodoviários iriam perceber seu estado de embriaguês. A polícia chegou depois da viatura dos paramédicos. Raimundo, perdendo sangue, o cheiro de asfalto, tendo já os lábios roxos, trêmulo pela hipotermia, sob a brisa da noite, recebeu os primeiros socorros. Hudson conseguiu a muito custo completar uma ligação telefônica, pelo celular chamou seu irmão mais velho que veio em seu auxílio. As luzes das viaturas, refletindo no rosto das pessoas - ora vermelho, ora amarelo - o vozerio não mais sendo percebido pelos seus ouvidos. Tudo ia ficando cada vez mais longe. Rostos crispados, como num filme em câmara lenta, mudo. Macabro baile de horror. E Hudson foi se afastando, sendo levado. Deixando pra trás um rastro de sangue. Saiu levando consigo um imenso fardo que teria o resto da vida pra carregar, na consciência.

Àquele, tinha tudo pra não ser, um dia como outro qualquer. Pra Raimundo apenas mais um exaustivo dia de trabalho. A noite, véspera de natal, se pronunciava. Ao cair da tarde o agente comunitário de saúde voltava pra casa. Tinha ido à zona rural do município de Santana do Ipanema, auferir medição de pressão em alguns idosos hipertensos, e aplicar vacinas em crianças da comunidade Jaqueira. Voltava pro seio de sua família onde esposa e filha o aguardava para a festa da ceia natalina. Mas o destino colocaria Hudson no seu caminho. Hudson era casado com Fabiana, uma garota que nem bem saíra da puberdade e viu-se obrigada a casar-se com o rapaz. Por terem ficado, e por ela ter com ele perdido a virgindade. Seus pais os obrigariam a se casarem. Hudson vivia brigando com Fabiana, por motivo de ciúme doentio dele brigavam. Por causa de ciúme brigavam. Hudson era representante de vendas de uma conceituada empresa mineira. Realizava revendas em seis municípios, além de Santana do Ipanema. No dia fatídico brigara com a esposa porque ela, cuidando de arrumar-se com manicure e cabeleireira para a festa daquela noite, não fizera almoço. Por conta disso Hudson deixou de realizar visitas a alguns clientes. Foi ao encontro de alguns amigos e iniciou a bebedeira. No meio da farra um comerciante ligou-lhe, pedindo que fosse urgente ao povoado Areia Branca para lhe fazer uma compra, seria uma venda significativa. Mesmo já tendo bebido com os amigos Hudson arriscou-se no empreendimento e acabou se envolvendo no sinistro.

As asas do tempo, sempre elas estarão a farfalhar por sobre os anos. E pra alegria do povo veio mais um carnaval. O agente de saúde Raimundo sempre gostara de festa. Não foram as rugas que lhe sulcariam o rosto, nem os cabelos negros, pintados de prata que tiraria sua vontade de viver. Muito menos a paralisia total dos membros inferiores, por conta do acidente. Nada disso tiraria de Raimundo a vontade de curtir a vida. E mais uma vez lá estava ele na praça do povo, como o céu era do condor, como o céu era do avião. Raimundo girava o mundo sob as rodas de sua cadeira. Sem considerar limitações - a seu modo - se esbaldava no quartel general do frevo. Esposa, filha e amigos faziam-lhe companhia. De repente, Raimundo sentiu dois braços segurando-lhe no colo. Quem o carregava nos braços? Lá iam os dois no meio da multidão. Fantasiado de pierrô, Hudson, triste palhaço, num esforço derradeiro tentava reconciliar-se consigo mesmo. No dia de Carnaval levava um pouco mais de alegria a quem, um dia quase tirou a vida, mas que nunca tiraria a vontade de viver.


Fabio Campos

Nenhum comentário:

Postar um comentário