A Caminho do Cruzeiro

Maria, naquele momento lembrava-se de Santana. Não conseguia conter o choro. Nem podia, forte demais, o que lhe acontecia. Muitos anos se haviam passado. Lembrava-se do tempo de menina, quando ainda morava com seus pais. Na pequena Vila da Ribeira de Santana, onde nascera e se criara. De quando viviam naquela casinha rústica, de taipa, amava aquela simplicidade. Gostava de cuidar de ovelhas, de acompanhar a ordenha, de brincar com as outras meninas de sua idade. Cultivar a terra, colher milho e feijão. Das idas ao panema pra tomar banho. O pai falecera, era criança ainda, jamais esquecera. Sozinhas, ela e a mãe, as duas se ajudavam. Juntas conseguiam suportar a dor de ser, órfã, e viúva. Sabia, um dia, a filha seria pedida em casamento. E José fora ter com elas, numa manhã de segunda-feira.

Aproximava-se a páscoa. Pondo no povo prévias ocupações com as tradições envolvendo o recolhimento religioso. Desde as primeiras horas do dia, peregrinação pelos arredores da cidade, Lagoa do Junco, Maniçoba, Lajedo Grande. Cedo se abriam as portas do templo que logo ficava repleta de fariseus. Ao som de cítaras e harpas, iam depositar oferendas no altar. À porta da Matriz de Senhora Santana, bancas diversas, de tudo vendiam. Crias de gado miúdo, primogênitos sem defeito, pombas e rolas. O comércio intenso no passeio. Estendia-se até o final da Rua Tertuliano no sábado.

Quando Jesus chegou, alvoroçou-se toda a cidade, perguntavam entre si: - Quem é este? A multidão respondia: - É Jesus, o profeta de Nazaré da Galiléia! Ao se aproximarem do Bebedouro, Ele disse a um dos doze: - Adiante encontrareis logo uma jumenta amarrada e com ela seu jumentinho. Desamarrai-os e trazei-mos. De fato, à porta de Seu Zé Urbano havia o animal. Trouxeram a jumenta e a sua cria, cobriram-nos com seus mantos e fizeram-no montar. Ao passar nas portas dos casebres, o povo estendia os mantos pelo caminho. Morava por ali Zaqueu, fiscal da prefeitura, era baixinho, pra conseguir ver Jesus subiu a um pé de algaroba. O povo cortava galhos de Maniçoba e catingueira, acenavam e espalhavam pelo caminho. E toda a multidão que o seguia, clamava: - Hosana ao filho de Davi! Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor! Hosana no mais alto dos céus! Belo céu, azul de terça-feira.

Jesus se aproximando dos degraus da igreja Matriz, expulsou dali todos aqueles que se entregavam ao comércio. Derrubou as mesas dos cambistas e os bancos dos negociantes de pombas. E disse-lhes: - Está escrito: Minha casa é uma casa de oração, mas vós fizestes dela um covil de ladrões. Ao saírem dali, os discípulos aproximaram-se de Jesus e fizeram-no apreciar as construções. O antigo sobrado, cheio de janelas, o hotel de Maria Sabão. O casarão em estilo colonial de Seu Frederico. As casas comerciais, o cine Alvorada. Jesus, porém, respondeu-lhes: Vedes todos estes edifícios? Em verdade vos declaro: não ficará pedra sobre pedra; tudo será destruído. Tomaram o rumo da Floresta, e se assentaram na encosta da montanha. Ficaram ao sopé da Serra Aguda até o amanhecer da quarta-feira.

No primeiro dia dos pães Ázimos, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: Onde queres que preparemos a ceia pascal? Respondeu-lhes Jesus: - Ide à cidade, no pavimento superior do velho sobrado, ali dirás: O Mestre manda dizer-te: Meu tempo está próximo. É nesta casa que celebrarei a Páscoa. Os discípulos fizeram o que Jesus tinha ordenado. Ao declinar da tarde, pôs-se à mesa com os doze discípulos. Após a ceia retirou-se Jesus com eles para um belo regaço. Um lugar com muitas árvores, chamado Sítio Baixio, às margens do riacho Camoxinga. E disse-lhes: Assentai-vos aqui, enquanto eu vou ali orar. Era chegada a hora. Andando pelo aterro da Avenida Pancrácio Rocha, vinha vindo Judas Iscariotes, com os soldados. Combinara com estes o sinal: Aquele que eu beijar, é ele. Prendei-o! Aproximou-se imediatamente de Jesus e disse: - Salve, Mestre! E beijou-o. Já a noite havia caído, era quinta-feira.

Os soldados do governador, pela Avenida Nossa Senhora de Fátima, conduziram Jesus ao Tribunal de Justiça. Depois do julgamento, rodearam-no com todo o pelotão. Levaram-no pro quintal do tribunal. Arrancaram-lhe as vestes e colocaram-lhe um manto escarlate. Ali foi açoitado a um pelourinho, até que estivesse completamente coberto de sangue. De galhos de um limoeiro, trançaram uma coroa de espinhos. Meteram-lha na cabeça e puseram-lhe na mão uma vara. Tiraram-lhe o manto e entregaram-lhe as vestes. Em seguida, levaram-no para o crucificarem. E desceu o cortejo pela Rua Benedito Melo. No estreito beco que desce pra Rua Professor Enéas Araujo, Jesus resvalou nas imensas pedras do calçamento irregular. Pelas vias íngremes cairia por três vezes. A um pescador chamado Simão Cireneu, que vinha do panema, obrigaram-no a levar a cruz de Jesus. Ao Chegar a um lugar chamado Cachimbo Eterno, subiram o Alto do Cruzeiro. Lá no alto, dividiram suas vestes entre si, tirando a sorte. Cumpriu-se assim a profecia. Dois ladrões foram crucificados com ele. Próximo da hora nona, Jesus exclamou em voz forte: Eli, Eli, lammá sabactáni? - o que quer dizer: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Triste, sombria tarde de sexta-feira.

Maria chorava, pelo seu filho. Desde a hora sexta até a nona, cobriu-se toda a terra de trevas. Um dos soldados que punha guarda afirmou: - Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus! Havia ali também algumas mulheres que de longe olhavam. Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago, de José. A mãe dos filhos de Zebedeu também estava ali. Seguiam Jesus desde a Galiléia para o servir. À tardinha, um pecuarista chamado José de Arimatéia, foi procurar o governador, e pediu-lhe o corpo de Jesus. Ao descer o corpo da cruz, os joelhos dobrados de Jesus tocaram o lajedo, e milagrosamente moldaram-se duas pequenas covas na pedra. Envolvendo-o num lençol branco, José de Arimatéia o depositou num sepulcro novo, que havia mandado talhar para si, ali na rocha. Depois das três horas da tarde, Santana caíra numa tristeza profunda. Os que seguiam Jesus estavam reunidos, muito tristes lamentavam. triste. Talvez esquecidos do que ele havia dito em parábolas. Sobre o porvir, e das coisas magníficas que ainda estariam pra acontecer, naquela manhã de domingo.


Fabio Campos

Tatuagens na Alma (Salmo 114)

O caminho que levava as Tocaias era íngreme. No inverno, ruim, por conta da lama, carro de boi gemia e - carregado de palma - não subia. No verão mata-pasto, barro vermelho, pedregulho, quando o animal pisava o cascalho se soltava. Seu Olegário tinha que subir todos os dias. Deixava a casa grande logo cedo, ia vistoriar o serviço dos trabalhadores na roça, mas ia como se fosse a uma solenidade, vestido em calça de linho, chapéu Panamá escovado, botas cano longo bem engraxadas. O terno, não vestia. Levava-o dobrado ao meio, sobre o antebraço formando ângulo reto com o braço. Teve uma vez que o cavalo de Seu Olegário acabou quebrando uma pata, foram chamar Seu Floro farmacêutico, mas não deu jeito, tiveram que sacrificar o alazão. Lá encima depois da grande muralha de labirinto, naquela tapera, um casebre de taipa, nem parecia uma casa direito. Ali nasceu, e se criou Crispim.

“Aleluia. Amo o Senhor, porque ele ouviu a voz de minha súplica

Porque inclinou para mim os seus ouvidos no dia que o invoquei
Os laços da morte envolviam, a rede da habitação dos mortos me apanhou
de improviso; estava abismado na aflição e na ansiedade.”

Crispim quando era criança teve uma visão. Devia ter uns dez anos, numa noite fria de inverno. Acordou no meio da madrugada, com muita vontade de urinar. Chamou por seus irmãos, Natanael e Bartolomeu, mas não acordavam. Chamaria então por sua mãe Bernadete e nada. Lá fora chovia, ele tinha medo de trovão. Chamaria pelas irmãs Maria, Francisca e Luzia. Por fim, chamaria pelo pai, mas Seu Olimpio também não o ouvia. Ninguém acordava. Criou coragem, levantou da cama, pegou o candeeiro. Cobrindo-se com o casaco do velho Olímpio, abriu a porta da cozinha, e ganhou o oitão da casa. O hálito gélido da boca da noite o envolveu. A fina garoa tocava-lhe insistentemente as faces, respingando a chama alaranjada do luzeiro. Nem bem, dera-se ao ato de aliviar o incômodo do baixo ventre, e ele viu. Saindo do barro do casebre, pavorosa visão de um homem negro, enorme. Sem cabelos, braços fortes, musculosos, cruzados sobre o peito desnudo, avantajado. A voz de trovão, do preto, com que vinda dos confins da terra, ecoou nos seus tímpanos. Dizia-lhe, num tom premonitório, que se aproximava o dia dele dar início a sua missão nesse mundo, e que o aguardava pra assumir o principado de Leviatã. Que tudo aquilo já havia sido preconizado desde antes de seu nascimento. Crispim ainda conseguiu abrir a boca, na tentativa de expirar um grito, que não saiu. O menino desmaiou.

“Foi então que invoquei o nome do Senhor; Ó Senhor, salvai-me a vida!
O Senhor é bom e justo, cheio de misericórdia é nosso Deus.
O Senhor cuida dos corações simples; achava-me na miséria e ele me salvou"

Foi mais ou menos por essa época. Cícero, filho único do Senhor Olegário, completaria quinze anos. Havia dois anos namorava Maria, irmã de Crispim. Mas era namoro escondido, os pais eram inimigos, não o permitiam. Havia um horrendo segredo no seio da família de Seu Olímpio. Ele, abusava sexualmente das filhas. Era alcoólatra E violento. Quase todos os dias, voltava bêbado, do barraco. Trazendo numa das mãos uma garrafa de cachaça e de companhia, um parceiro que só ele o via, o diabo. Uma vez em casa, sentava-se a mesa e puxava outra cadeira para que sentasse o visitante invisível aos demais. E com Belzebu, iniciava conversa. E ria um riso sarcástico, de escorrer baba viscosa, que punha nódoas, ao fedido e asqueroso toco de cigarro de fumo picado, apagado no canto da boca. Todos na casa se enchiam de pavor, diante do que viam. Sabiam que aquele tipo de situação sempre acabava em cenas macabras. E teve início, Seu Olímpio cismou de querer jantar guisado de pato. Já a noite ia avançada. Dirigiu-se ao galinheiro com uma faca, e voltou trazendo uma daquelas aves, suspensa pelas patas. Chamou Maria e a obrigaria a sangrá-la. A menina pôs-se a chorar. Levou um safanão tão forte, que foi ao chão. Cheio de cólera Seu Olímpio, de um só golpe decepou a cabeça da ave que se debatendo, respingou sangue em todos, e por toda a cozinha. O sangue escorrendo, ensopava o liso cabelo da menina, que se mantinha agachada, ainda aos prantos. Crispim que até então se mantivera estático, apossou-se da faca sobre a mesa e enterrou-a até o cabo na garganta de Seu Olímpio. Puxando Maria pelo braço saiu em desabalada carreira.

“Foi então que invoquei o nome do Senhor: ó Senhor, salvai-me a vida!
O Senhor é bom e justo, cheio de misericórdia é nosso Deus.
O Senhor cuida dos corações simples; achava-me na miséria e ele me salvou.”

O tempo senhor soberano, só ele pra sepultar para sempre aquela página negra na história da família Souza Rêgo. Depois do fatídico episódio dona Bernadete vendeu a propriedade e foi morar na cidade de Santana do Ipanema, onde encerrou seus dias, vitimada por um enfarto do miocárdio, sucumbindo ao colesterol e a alta pressão arterial. Não mais teria oportunidade de ver Crispim, seu filho querido. Maria depois de viver por dois anos, um casamento frustrado com Cícero, fora embora pra São Paulo. Crispim andou vagando pelo Vaso da Catarina, depois se refugiou na fazenda do prefeito de Pão de Açúcar, e passou a ser seu homem de sua confiança, e passaria a praticar crime de mando. E pelo serviço recebia salário.

“Volta, minha alma, à tua serenidade, porque o Senhor foi bom para contigo,
Pois livrou-me a alma da morte, preservou-me os olhos do pranto, os pés da queda.
Na presença do Senhor continuarei o meu caminho na terra dos vivos"

Certa ocasião Crispim após uma bebedeira envolveu-se numa briga, numa farra de vaquejada. Dessa contenda participou vários vaqueiros. Crispim acabaria espancando violentamente um rapaz de nome Afrânio, que o juraria de morte. E eis que chegou o dia, da desforra sangrenta, Afrânio estudou os passos do autor da desfeita que tanto ferira sua honra. De posse de uma espingarda, se posicionou num local conhecido de todos como Tocaia, que se constituía de um ótimo ponto de observação, de quem por ali passava, sem notar que estava sob a mira da morte.

Era noite e Crispim surgiu na estrada sob clarão da lua. E veio vindo, montado no seu cavalo, num trote leve, faceiro, descompromissado de qualquer cuidado, sem imaginar que fosse alvo de uma cilada. A altura do ponto em que ficaria sob a mira da espingarda, resolveu aliviar a bexiga. Apeou. E buscou o lado oposto ao que Afrânio encontrava, de modo que lhe deu às costas. Seu desafeto aproveitou para mirar, iria atirar. Chegara o tão aguardado momento. E eis o que Afrânio teve uma visão. Nas costas de Crispim como que tatuados estavam os rostos de cada um dos que ele já havia ceifado a vida. Olhava-o fixamente, o semblante do pai, Seu Olímpio. Diante de tal aparição, arrebatado pelo pavor, Afrânio renunciou ao ato atroz, mantendo-se em surdina, foi-se embora, tragado pela noite.


Fabio Campos

O Mercador de Ilusões (Mateus Cap. 4vs. 1,11)

Lá se ia mais um dia. O sol, feito rodela de fruto alaranjado, submergia em imensa taça de firmamento licoroso. O astro-mor espreitando por entre as brechas das nuvens - enegrecidas no ventre, acinzentadas nos lóbulos - ia se despedindo de Santana do Ipanema. Quebrando o marasmo surgiu um homem - do nada apareceu - caminhando no passeio. Talvez fosse apenas impressão, mas aonde ia passando, ia desbotando as cores das coisas. Como que tornado gélido, fantasmagórico, tudo no mundo. As ninfas, as flores, enfim vencidas, desfaleciam. Tudo ficando com gosto de quaresma.


O homem de quem estamos falando, era um representante comercial, poeticamente, um caixeiro-viajante. Era época de uma Santana, em que os homens trajavam ternos de linho, usavam chapéus Coty, sapatos Passo Doublê. E os rapazes todos, queriam imitar o topete, as longas madeixas e os passos frenéticos do rei do rock’in roll, Elvis Presley. Nosso personagem, teria vindo do interior de São Paulo, filho de imigrantes, de origem judia. Fora criado por seus avós maternos, trazido ainda criança da Polônia. Fugidos da maldita guerra, e do exército Nazista que invadiu seu país. Já haviam se passado trinta anos, desde então. Apresentava-se, nas casas de comércio, pelo nome de Jamil Soinomed. - O que o senhor vende? Perguntou-lhe Seu Artur Cassimiro, o boticário da Farmácia Ébano da Cruz. - Nada! Compro almas.


Sorrindo, Jamil afirmou que teria dito aquilo de brincadeira, pra descontrair. Enquanto retirava da sua maleta de couro, catálogos de perfumaria, amostras de drogaria do laboratório que representava, iniciou-se a contar uma história a Seu Cassimiro. Seus avós havia lhe contado. Seus pais moravam em Varsóvia, quando Hitler invadiu a Polônia com seu diabólico propósito de dizimar o povo Judeu da face da terra. Seus pais foram mortos na câmara de gás, no campo de concentração de Auschwitz Birkenau, no sul da Polônia. E continuou: À época, surgiu um soldado alemão de nome Dantalion Arnon, que inventou uma lista macabra, pretendia exterminar sozinho mil judeus. Queria pra si, o escabroso mérito de ser responsável por enviar mil almas judias pro inferno. Sua abominável Lista seria exatamente uma versão contrária a de Oskar Schindler, que se propôs salvar sozinho, mil judeus. Infelizmente – disse ele - meus pais não tiveram a sorte de entrar na lista de Schindler. Entrariam na maldita lista de Arnon.


Jamil, olhando fixamente pro farmacêutico, de chofre, tacou-lhe a seguinte pergunta: - Seu Cassimiro! O senhor algum dia na vida já passou fome? O sexagenário dono da farmácia, sustando, foi buscar no fundo da memória, algum momento de sua vida em que tivesse sofrido privação de alimento. Na vida familiar, isso nunca ocorrera, pois havia nascido no seio de família abastada. Foi encontrar tal ocasião, na época em que servira o exército, no 20º BC, Batalhão dos Combatentes de Guerra, em Maceió. Por ocasião dos treinamentos, no temido teste de sobrevivência, realmente ali passara fome. Jamil sabia de tudo, nem precisava ouvir a resposta. E inquiriu: - Senhor Cassimiro! Que tal voltarmos aquele momento? E sem que houvesse como explicar. Lá estava o soldado Cassimiro no meio da mata. No lugar da farmácia, selva e calor sufocante, ofegava. Banhado em suor. Trajado na incômoda farda camuflada, os olhos vermelhos, feito brasas queimavam, de sono e poeira. Há três dias sem colocar nada na boca. E Jamil lhe apareceu. Sereno, bem trajado, exatamente como havia aparecido inicialmente. O ambiente árido, influência nenhuma exercia sobre ele. E como se ainda estivessem na farmácia, voltou a indagá-lo: -Então, senhor Cassimiro! Estou ouvindo seus pensamentos! Não é nada bom maldizer ao seu Deus. Afinal, é o Deus a que você tanto teme, e ama...E que lhe deu, essa sua maldita vida! Chega! Vamo-nos daqui.


1 Em seguida, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio. 2 Jejuou quarenta dias e quarenta noites, Depois, teve fome. 3 O tentador aproximou-se dele e lhe disse: “Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras se tornem pães”. 4 Jesus respondeu: “Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus (Dt. 8,3).


Novamente Jamil e Cassimiro estavam em Santana do Ipanema. Desta feita no alto da torre da Matriz de Senhora Sant’Ana. O velho comerciante estava lívido, tinha medo de altura. Em compensação antes ali, sentindo leve brisa tocando-lhe a face, que o calor da selva. As pessoas, lá embaixo, indo pra suas obrigações, nem se davam conta da dupla de homens encimados na torre da Matriz. Jamil tinha mais perguntas pra Cassimiro, que entendia estar tendo uma espécie de transe. – Seu Cassimiro! O senhor se recorda do dia que tentou ao seu Deus? Artur Cassimiro sabia, não precisava falar bastaria pensar, o estranho homem saberia o que estaria pensando. Voltou aos velhos tempos de estudante, no vigor de sua juventude, apaixonara-se voluptuosamente por uma moça. Seu primeiro (talvez único e verdadeiro) amor. Mas vieram as brigas, e Vanda fez vendaval no seu coração. Entregar-se-ia a bebedeira pra afogar as mágoas, paixão em ruínas. E lá estava Artur, na madrugada, perambulando bêbado sozinho pelas ruas de Santana. O mancebo chegou à ponte da Barragem, estava na iminência de atirar-se dali de cima em baixo. Segurava o balaústre. Os pés apoiados no beiral, pelo lado de fora, o corpo projetado pro nada, pro breu. Não via, porém ouvia, o barulho d’água nas pedras lá embaixo. E no passeio da ponte surgiu outro bêbado. Rindo-se dele, propôs que tomassem uma dose juntos, antes que ele fizesse aquilo. Seria um brinde de despedida. E Cassimiro seduzido pela proposta voltaria ao leito da ponte. E se fora noite a dentro, na companhia do amigo.


5 O demônio transportou-o a Cidade Santa, colocou-o no ponto mais alto do templo e disse-lhe: 6 “Se és Filho de Deus, lança-te abaixo, pois está escrito: Ele deu a seus anjos ordens a teu respeito: eles te protegerão com as mãos, com cuidado, para não machucares o teu pé em alguma pedra” (Sl 90,11s). 7 Disse-lhe Jesus: “Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus (Dt 6,16)”.


Jamil transportando o dono da botica pra o alto do Cruzeiro, ainda tinha uma última história pra contar: -Senhor Cassimiro! Sabia que a Polônia, já foi governada pelo senhor? O mercador de drogas estupefato arregalou os olhos. –Sim, Senhor! No século XII seu pai Ladislau I fundou o catolicismo naquele país. Faleceu, e você subiu ao trono, príncipe Cassimiro III. No seu reinado, a Polônia conheceu a prosperidade, mas eu quis testá-lo mais uma vez, e sobre seu povo disseminei a peste negra, milhares morreram por minhas mãos. Outros tantos seriam salvos, pois você já tinha desde aquela época, esse dom para curar pessoas. Você confiava no seu Deus! Pois é meu caro amigo! Está chegando minha hora. Vou deixá-lo. Mas lembre-se estarei todos os dias de sua vida, te espreitando. Jamais, esqueça disso. Tenha uma boa páscoa. E sumiu. Seu Cassimiro, mais uma vez contemplou a Matriz de Senhora Sant’Ana, os telhados das casas, o comércio. Olhou pro alto. Um céu azul, calmo, lhe olhava, calado. Iniciou, sem pressa, a descida do Alto do Cruzeiro. Caminhando calmamente, voltaria pra farmácia.


8 O demônio transportou-o uma vez mais, a um monte muito alto, e lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-lhe: “ 9 “Eu te darei tudo isto se, prostando-te diante de mim, me adorares”. 10 Respondeu-lhe Jesus: “Para trás, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a ele servirás ( Dt 6,13) 11 Em seguida, o demônio deixou, e os anjos aproximaram-se dele para servi-lo.


Fabio Campos

Voa! Maria

A quaresma de então, já dera adeus ao tempo comum. Não tão comum assim. Demoraria ainda algum tempo, antes que a efemeridade do carnaval esvaísse da memória, antes que a inconstância das férias precipitasse no limbo do esquecimento. Havia uma quaresma concebida pelos sinais dos céus - pelas forças emanadas do próprio Deus - descida sobre as coisas da terra do condor. Isso fazia com que a Santana do Ipanema, dos infantes que já haviam jubilado, tivesse sido uma Santana mais mística.

O Ipê-roxo (Tabebuia avelanidae), jamais seria apenas uma árvore. Quis ser uma imitadora de Maria. Entre cardos e moitas de catingueira, lhes viria Gabriel Arcanjo. Cobrindo-lhe a face com sua sombra fez-lhe a anunciação. Era março, dali a nove meses viria à luz do mundo. A Tabebuia avelanidae pondo seu vestido - de perfume e flor lilás - para a festa nupcial, declamaria o Magnificat. Espalhando seu buquê violáceo, por sobre o altar, por sobre o chão do sertão. Enquanto exércitos de Melíponas melíferas, abelhas Mandaçaia (Melíponas melíferas), iam obreiras, voadoras - com o beijo da vida - disseminando o pólen fecundo que já engravidara a Spondia tuberosa, a quem o sertanejo apelidava de Imbuzeiro (Spondia tuberosa). De frutos gomosos cítrico, de caldo acerbo-adocicado, cuja nuança de verde viçoso ia a amarelo cádmio, se oferecia por entre ramos e folhagem. Árvore sagrada do sertão, pelos índios chamada de y-mb-u, “árvore-que-dá-de-beber” de sua tuberosidade. Raiz salvífica! Alva, carnuda, aquosa.

A cada quaresma Jesus vem visitar o sertão. A cada ano - por quarenta dias - vindo reviver aquele momento da Galiléia. E Ele desce à aridez da Caatinga. Assinalando tempo de oração, de penitência, de recolhimento. A sua vinda é amplamente anunciada, rufam os tambores celestiais, a isso o sertanejo chamará de trovão. O exílio do filho do rei faz com que toda a corte celeste caia em prantos. As lágrimas dos anjos, arcanjos e querubins chega-nos, e chamarão de trovoadas. A divisão da trindade Santa é dolorida, todo rompimento o é. O desprendimento ocasiona o que ousarão chamar de relâmpago.

O solo sagrado da mata branca recebe pela quaresma a visita benfazeja do divino Mestre. Parida do ventre da terra, a Carineta faciculata, carinhosamente apelidada de Cigarra (Carineta faciculata), com seu canto estridente anuncia incessantemente que Jesus Cristo o filho de Deus, pés desnudos, caminha por sobre a aridez dos sertões. O Escarabeus sacer escaravelho sagrado - o matuto apelida-o de besouro rola-bosta (Escarabeus sacer), pra que Jesus não viesse a sujar os pés – sai empurrando os excrementos dos bichos pra dentro do buraco. Nuvens negras de, Atta capiguara, nossa conhecida, e tão desejada Tanajuras (Atta capiguara), revoam com seus traseiros adiposos inflados de gordura, tornando-se alvo de caça, dos pardais, andorinhas, sabiás e meninos.

Quaresma é filme que se assiste do fim pro começo, fita de cinema que se vê de trás pra frente. Começa com Cinzas e culmina com fogo! Fogo ardente de Pentecostes. O sertanejo outra vez vai volver seu olhar para o alto, desta vez, buscando não apenas os sinais de chuvas que estão por vir. Vislumbrará o retorno do Messias garantia de vida em fartura. Consegue enxergar se as nuvens que lhes apontaram desde o horizonte, gordas, cevadas de água, se a lua ganhou uma coroa púrpura, se a Rana casteibeiana, a jia negra de papo amarelo (Rana casteibeian), arranhando o fundo do pote, se a Monomorium faraonis, a formiguinha do açúcar (Monomorium faraonis) em caravana, vindo raptar um suprimento de aminoácidos e proteínas, para enfrentar o rigor do inverno na hibernação - pondo o matuto a matutar - se tudo isso é presença do filho de Deus aqui. Agradecido pela visita de Jesus, revive com Ele a dor e a agonia do calvário e vislumbra a alegria, a aleluia da Páscoa. Lúcifer e sua legião de demônios os espreitam. No entanto nada mais podem contra o Filho do Homem.

Supersticioso o sertanejo também sente através das coisas do sertão a presença do príncipe das trevas. A Tyto Alba rasga-mortalha (A Tyto alba) ou coruja de igreja, Devido a seus hábitos noturnos, seu piar agudo semelhante a uma tira de tecido sendo rasgado enquanto sobrevoam as casas, acaba sendo considerada uma ave de mau agouro, ainda mais na quaresma. A Biston betularia, também de hábitos noturnos, é uma borboleta que acabaria sendo chamada de mariposa (Biston betularia). A denominação vem de Maria. As crianças ao vê-la farfalhante invadindo o interior da casa instigavam-na ao vôo gritando: - Voa! Maria avôa! Para em seguida mudarem de opinião: - Pousa Maria! Mariposa!

Na sala de estar da casa tinha quadros na parede. Os retratos de nossos pais, tios e avós, os que já haviam falecido ficavam de um lado, os que se encontravam vivos na parede oposta. Mariposa adentrando a sala por ocasião da quaresma, bom sinal não era. Ainda mais se pousasse sobre a foto de alguém vivo. Maus presságios. Em menos de um ano alguém de nossa família ia morrer.


Fabio Campos