Tatuagens na Alma (Salmo 114)

O caminho que levava as Tocaias era íngreme. No inverno, ruim, por conta da lama, carro de boi gemia e - carregado de palma - não subia. No verão mata-pasto, barro vermelho, pedregulho, quando o animal pisava o cascalho se soltava. Seu Olegário tinha que subir todos os dias. Deixava a casa grande logo cedo, ia vistoriar o serviço dos trabalhadores na roça, mas ia como se fosse a uma solenidade, vestido em calça de linho, chapéu Panamá escovado, botas cano longo bem engraxadas. O terno, não vestia. Levava-o dobrado ao meio, sobre o antebraço formando ângulo reto com o braço. Teve uma vez que o cavalo de Seu Olegário acabou quebrando uma pata, foram chamar Seu Floro farmacêutico, mas não deu jeito, tiveram que sacrificar o alazão. Lá encima depois da grande muralha de labirinto, naquela tapera, um casebre de taipa, nem parecia uma casa direito. Ali nasceu, e se criou Crispim.

“Aleluia. Amo o Senhor, porque ele ouviu a voz de minha súplica

Porque inclinou para mim os seus ouvidos no dia que o invoquei
Os laços da morte envolviam, a rede da habitação dos mortos me apanhou
de improviso; estava abismado na aflição e na ansiedade.”

Crispim quando era criança teve uma visão. Devia ter uns dez anos, numa noite fria de inverno. Acordou no meio da madrugada, com muita vontade de urinar. Chamou por seus irmãos, Natanael e Bartolomeu, mas não acordavam. Chamaria então por sua mãe Bernadete e nada. Lá fora chovia, ele tinha medo de trovão. Chamaria pelas irmãs Maria, Francisca e Luzia. Por fim, chamaria pelo pai, mas Seu Olimpio também não o ouvia. Ninguém acordava. Criou coragem, levantou da cama, pegou o candeeiro. Cobrindo-se com o casaco do velho Olímpio, abriu a porta da cozinha, e ganhou o oitão da casa. O hálito gélido da boca da noite o envolveu. A fina garoa tocava-lhe insistentemente as faces, respingando a chama alaranjada do luzeiro. Nem bem, dera-se ao ato de aliviar o incômodo do baixo ventre, e ele viu. Saindo do barro do casebre, pavorosa visão de um homem negro, enorme. Sem cabelos, braços fortes, musculosos, cruzados sobre o peito desnudo, avantajado. A voz de trovão, do preto, com que vinda dos confins da terra, ecoou nos seus tímpanos. Dizia-lhe, num tom premonitório, que se aproximava o dia dele dar início a sua missão nesse mundo, e que o aguardava pra assumir o principado de Leviatã. Que tudo aquilo já havia sido preconizado desde antes de seu nascimento. Crispim ainda conseguiu abrir a boca, na tentativa de expirar um grito, que não saiu. O menino desmaiou.

“Foi então que invoquei o nome do Senhor; Ó Senhor, salvai-me a vida!
O Senhor é bom e justo, cheio de misericórdia é nosso Deus.
O Senhor cuida dos corações simples; achava-me na miséria e ele me salvou"

Foi mais ou menos por essa época. Cícero, filho único do Senhor Olegário, completaria quinze anos. Havia dois anos namorava Maria, irmã de Crispim. Mas era namoro escondido, os pais eram inimigos, não o permitiam. Havia um horrendo segredo no seio da família de Seu Olímpio. Ele, abusava sexualmente das filhas. Era alcoólatra E violento. Quase todos os dias, voltava bêbado, do barraco. Trazendo numa das mãos uma garrafa de cachaça e de companhia, um parceiro que só ele o via, o diabo. Uma vez em casa, sentava-se a mesa e puxava outra cadeira para que sentasse o visitante invisível aos demais. E com Belzebu, iniciava conversa. E ria um riso sarcástico, de escorrer baba viscosa, que punha nódoas, ao fedido e asqueroso toco de cigarro de fumo picado, apagado no canto da boca. Todos na casa se enchiam de pavor, diante do que viam. Sabiam que aquele tipo de situação sempre acabava em cenas macabras. E teve início, Seu Olímpio cismou de querer jantar guisado de pato. Já a noite ia avançada. Dirigiu-se ao galinheiro com uma faca, e voltou trazendo uma daquelas aves, suspensa pelas patas. Chamou Maria e a obrigaria a sangrá-la. A menina pôs-se a chorar. Levou um safanão tão forte, que foi ao chão. Cheio de cólera Seu Olímpio, de um só golpe decepou a cabeça da ave que se debatendo, respingou sangue em todos, e por toda a cozinha. O sangue escorrendo, ensopava o liso cabelo da menina, que se mantinha agachada, ainda aos prantos. Crispim que até então se mantivera estático, apossou-se da faca sobre a mesa e enterrou-a até o cabo na garganta de Seu Olímpio. Puxando Maria pelo braço saiu em desabalada carreira.

“Foi então que invoquei o nome do Senhor: ó Senhor, salvai-me a vida!
O Senhor é bom e justo, cheio de misericórdia é nosso Deus.
O Senhor cuida dos corações simples; achava-me na miséria e ele me salvou.”

O tempo senhor soberano, só ele pra sepultar para sempre aquela página negra na história da família Souza Rêgo. Depois do fatídico episódio dona Bernadete vendeu a propriedade e foi morar na cidade de Santana do Ipanema, onde encerrou seus dias, vitimada por um enfarto do miocárdio, sucumbindo ao colesterol e a alta pressão arterial. Não mais teria oportunidade de ver Crispim, seu filho querido. Maria depois de viver por dois anos, um casamento frustrado com Cícero, fora embora pra São Paulo. Crispim andou vagando pelo Vaso da Catarina, depois se refugiou na fazenda do prefeito de Pão de Açúcar, e passou a ser seu homem de sua confiança, e passaria a praticar crime de mando. E pelo serviço recebia salário.

“Volta, minha alma, à tua serenidade, porque o Senhor foi bom para contigo,
Pois livrou-me a alma da morte, preservou-me os olhos do pranto, os pés da queda.
Na presença do Senhor continuarei o meu caminho na terra dos vivos"

Certa ocasião Crispim após uma bebedeira envolveu-se numa briga, numa farra de vaquejada. Dessa contenda participou vários vaqueiros. Crispim acabaria espancando violentamente um rapaz de nome Afrânio, que o juraria de morte. E eis que chegou o dia, da desforra sangrenta, Afrânio estudou os passos do autor da desfeita que tanto ferira sua honra. De posse de uma espingarda, se posicionou num local conhecido de todos como Tocaia, que se constituía de um ótimo ponto de observação, de quem por ali passava, sem notar que estava sob a mira da morte.

Era noite e Crispim surgiu na estrada sob clarão da lua. E veio vindo, montado no seu cavalo, num trote leve, faceiro, descompromissado de qualquer cuidado, sem imaginar que fosse alvo de uma cilada. A altura do ponto em que ficaria sob a mira da espingarda, resolveu aliviar a bexiga. Apeou. E buscou o lado oposto ao que Afrânio encontrava, de modo que lhe deu às costas. Seu desafeto aproveitou para mirar, iria atirar. Chegara o tão aguardado momento. E eis o que Afrânio teve uma visão. Nas costas de Crispim como que tatuados estavam os rostos de cada um dos que ele já havia ceifado a vida. Olhava-o fixamente, o semblante do pai, Seu Olímpio. Diante de tal aparição, arrebatado pelo pavor, Afrânio renunciou ao ato atroz, mantendo-se em surdina, foi-se embora, tragado pela noite.


Fabio Campos

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