Folhas Secas

Cansadas de viver, se soltavam dos galhos. Caiam forrageiras no chão do sertão, de Santana do Ipanema. Diziam de si, que era outono. Era abril de 32. E lá se vinha ele, arribando o cume das montanhas – preguiçoso, sem pressa nenhuma, fazendo trêmulas as veredas – temível, abrasador, rei sol. Sob um céu escasso de um tudo, de nuvens, de brisa, de passarinho. Carcará revoaria o alpendre da casa, numa tentativa de capturar um pinto.
Pras bandas do nascente ia indo Jacó e Esaú. Potes de barro às costas iam buscar água. Quase três léguas de caminhada. Contornariam o sopé da Serra da Lagoa até chegar ao açude do padre Manoel, nas imediações de Areia Branca. Naquela marcha, ao meio-dia chegariam ao grande manancial de água, que mirava a serra Cabeça Vermelha, a Oeste do mundo. Uma leva de homens, mulheres e crianças, aguardavam a vez de encher suas vasilhas. Carros de boi, muares, jumentos, cheios de ancoretas, barris e tonéis. De tardinha, quando a bola de fogo amuasse, retornariam. Ainda iam, quando encontraram os retirantes. Eram quatro criaturas humanas e um jumento. O cão ia a frente.
O homem franzino em estatura, era pouco de tudo. Cabelo e bigode ralos, trajado em vestes caqui. Tudo que havia encima dele, era gasto de uso. Camisa de manga comprida, um chapéu de couro nodoado de suor nos flancos, roto no cocuruto. Calça de tecido de brim, bolsos fundos. De certo trazia um pedaço de fumo de rolo, palha de milho seca, cortada em quadrículos pra fazer cigarro. Uma minúscula viana. À tiracolo um bizáco com o fundo, reforçado com duas costuras, de lona,. Numa das divisões, havia carne de jabá sapecada na brasa, enterrada na farinha de mandioca. Noutra, atavios de caça, dois pequenos cornos de boi, ocados, com tampa de madeira. Um, tinha pólvora, o outro chumbo. Uma cabaça contendo água de barreiro, presa pelo gogó por um cordel de agave. Dois meninos de olhar astuto. Como se o tempo inteiro caçassem, e fossem também caçados. Camisa e calção de tecido grosso, chapéus de palha. A pele mais azinhavrada que a do pai. A mulher uma cabocla, de longo cabelo negro, encoberto por um pedaço de chita estampada. Na cangalha do jumento, toda sorte de cacarecos. Gaiolas, coxins, esteiras, pote de barro, estrovenga. Entoavam cantiga de romeiro, que ecoava feito lamento nos quatros cantos da caatinga.

“Ô que caminho tão longe meu Deus
Cheio de pedra e areia
Valei-me meu padrinho Ciço e a mãe
De Deus das Candeias”

O retirante atendia pelo nome de Benigno. A ocasião do encontro com os dois buscadores de água, e o sol a pino, fez com que achassem por bem se arrancharem. Se abrigaram debaixo dum pé de umbuzeiro. Os meninos e o cachorro puseram-se a cavar em busca de tubérculo, da árvore aquífera. Jacó, puxando conversa quis saber de onde vinham. Benigno diria, da fazenda Curralinhos, do donatário Teodomiro Craveiros, dono de muitas léguas de terras na encosta do rio São Francisco, próximo a Porto da Folhas. Dissera que haviam saído da fazenda, fugidos de uma emboscada, dum bando de cangaceiros. Antes de atravessarem o rio à canoa, encontraram um soldado baleado com um tiro de fuzil. Agonizante, o militar teria lhe entregue uma encomenda, um pequeno embrulho enrolado com papel bruto, amarrado com barbante que devia ser entregue ao capitão Cornélio Alves, que se encontrava no comando do quartel da vila Roçadinho, nas imediações de Tanquinhos, sertão de Pernambuco. Benigno achou por bem parar por aí sua história, se prolongasse acabaria se denunciando, trazendo à tona outra verdade. Não disse, por exemplo, que estaria armado com um revólver novo niquelado, que tinha bastante munição, e mais de quarenta contos de réis.
Quando a noite já ia alta Jacó e Esaú chegaram aos seus ranchos, trazendo o líquido valioso e muitas histórias pra contar. Os casebres de um, pra o outro distava um lance de olhar. Uma notícia triste aguardava Esaú. Naquele dia durante sua ausência, seu pai falecera. Viveria sua mais longa noite. O raiar do dia chegaria junto com os anuns, feito folhas negras, deslizando pelo diáfano véu acinzentado do sertão seco, à cata dum gafanhoto, dum mangangá. Sem se saber direito de onde vinha, penoso cantar da rolinha fogo apagou, ia se ajuntar ao canto lamuriento das mulheres cantadeiras de velório.

“Sede em meu favor Virgem soberana
Livrai-me do inimigo com vosso valor
Do Egito curador de Raquel nasceu
Do mundo o salvador Maria no-lo deu!”

A Aridez entranhada até os ossos, esturricando as carnes da caatinga. Cândida cena do sertão, que Cândido Portinari pintou, e José Cândido cantou. Os bichinhos, mais do que os homens, sabiam enfrentar os rigores daqueles dias, a cada dia. Benigno chegou ao seu destino. A encomenda finalmente chegaria às mãos do seu destinatário, capitão Cornélio Alves. Ali, a verdade veio à tona. O caboclo Benigno, não era Benigno coisa nenhuma. Tratava-se do senhor donatário Teodomiro Craveiros, dono da fazenda Curralinhos, que fugira da emboscada disfarçado de retirante. O verdadeiro Benigno existiu, e morreu no tiroteio. O coronel fugira com sua esposa e filhos. A encomenda, capitão Cornélio a abriu, na frente dos meninos cheios de curiosidade. Dentro da caixinha de papelão, havia um escapulário de Nossa Senhora das Candeias. Escrito a caneta tinteiro, duas linhas num pequeno bilhete, vincado em três dobras. Quem soubesse ler, lia: “Vai, pelas mãos do meu amigo coronel Teodomiro, este pequeno presente pro capitão Cornélio Alves. Assim que o receber, passe a usá-lo sempre, e terá proteção divina, que o livrará das emboscada dos assassinos. Assina: padre Cícero Romão Batista. Juazeiro do Norte-Ce. 19 de janeiro de 32.”


Fabio Campos

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