“Nos vossos dias de alegria, vossas festas e vossas luas
novas, tocareis a trombeta, oferecendo holocaustos e os sacrifícios pacíficos, e
elas vos lembrarão a memória de vosso Deus. Números 10 – 9,10”
Fui à casa de minha mãe, havia as
férias de julho. Outra vez, encontrei-a revirando coisas, objetos antigos,
álbuns de fotos. Coisas guardas com muito carinho. Tentativa vã de reter o que
era, não é mais. Se fora, não volta. Nunca mais. Nunca mais, dói. Como é doída,
a dor do nunca mais. Dizia. Falava a respeito de papai. Mostrou-me velhas fotos.
Um retrato da “Procissão de Senhora Santa Ana -1968- Santana do Ipanema”,
assinalavam letras cursivas brancas, como que escritas a giz - e se espaços brancos, desapareciam - no roda-pé do postal. Conseguidas, gostaria
muito de saber como.
Estranha capacidade essa de
petrificar momentos possui as máquinas fotográficas, pintores gravuristas idem.
A foto em preto e branco concebida, amajentou. O tempo, somente ele, capaz de
esmaecer, desbotar, amadurar. E o que já não tinha nuance, de sem nuança se
acerbou. O flagrante captado à Avenida Martins Vieira, de quase meio século, de
quase a mesma idade também.
Quis estar dentro daquela
gravura, e fui. Os foguetes de Zuza fogueteiro subindo, lá em cima explodindo.
Angariando os olhares pueris dos infantes, olhar enfadado dos caminhantes idem
e aturdido dos matutos, volvidos todos lá pra cima, pra o céu de Senhora
Santana. Céu cheinho de nuvens. Muitas delas plúmbeas, grávidas d’água. De resto, anil de veronese, esmaecido dum amarelo alaranjado,
pras bandas das tocaias.
Aquele ar, aquele áurea, tal
estado de coisa, tudo aquilo já o havíamos vivido antes. Fora meu. De novo era.
Antes num corpo reduzido, na terna inocência de oito anos de idade talvez. Em
mim mesmo, dormidas sensações voltavam. A casa de esquina de Seu Domício Silva,
a casa dos pais de Roberval Nóya, a de Seu Abílio Pereira. Poucas eram as
habitações na via andante de então. Calçamento, projeto ainda, nos documentos
do Paço Municipal. Promessas nos discursos deitado a verbo nos comícios
eleitorais.
Barro vermelho, úmido, grudando - no solado dos calçados, no passo a passo - e saltando. Barro salpicado na boca das calças de brim, cambraia e ciroco. Ensanguentando sisudos Passo Double, propositadamente engraxados para ocasião memorável. Silicato de argila, volatilizando pras narinas, lama viscosa, gélida. Respigando nas meias alvinhas dentro dos sapatos envernizados das meninas, de longos rabos de cavalos. Em vestes brancas e boinas das cruzadas, de faixas da catequese, de dona Marina Marques. Com esmero desenho dum cálice, um ramo de trigo e um pão à faixa ao ombro. O botão pregueado de dúbia flâmula à cintura. Ao fundo projetando-se sobre o céu pálido, a serra da microondas, que até então era apenas serra. Rica, densamente aureolada de mata branca, no momento verde invernal. Amofinada de neblina no cume. Grânulos de cristais de gelo disperso no ar, eriçando derme e pelos. Embaçando o ar quente dos pulmões. Tudo, tudo, trazido da memória.
Barro vermelho, úmido, grudando - no solado dos calçados, no passo a passo - e saltando. Barro salpicado na boca das calças de brim, cambraia e ciroco. Ensanguentando sisudos Passo Double, propositadamente engraxados para ocasião memorável. Silicato de argila, volatilizando pras narinas, lama viscosa, gélida. Respigando nas meias alvinhas dentro dos sapatos envernizados das meninas, de longos rabos de cavalos. Em vestes brancas e boinas das cruzadas, de faixas da catequese, de dona Marina Marques. Com esmero desenho dum cálice, um ramo de trigo e um pão à faixa ao ombro. O botão pregueado de dúbia flâmula à cintura. Ao fundo projetando-se sobre o céu pálido, a serra da microondas, que até então era apenas serra. Rica, densamente aureolada de mata branca, no momento verde invernal. Amofinada de neblina no cume. Grânulos de cristais de gelo disperso no ar, eriçando derme e pelos. Embaçando o ar quente dos pulmões. Tudo, tudo, trazido da memória.
A procissão, organizada em duas
fileiras. De um lado homens, do outro, mulheres. Adornada de véu, as zeladoras
do Sagrado Coração de Jesus, revestida de marinho intenso, fechado, fita
vermelha e broche ao colo. Procissão, significado profundo. A todos
igualando. Avança num só intuito, cada um sendo o que é, de si. Vida retratada, em detalhes. Encabeçam o cordão, políticos, autoridades. Homens familiarizados ao
jugo dividem, se solidarizam ao peso do andor. Olhar pio. Na rebarba os
desimportantes. Os tipos. Boêmios, jogadores de cassino, prostitutas, delas que
iam descalças, em expiação dos pecados. Ali, de si próprio se colocam, pra não
ferir, não causar indignação.
Coroinhas avançam à frente com os
sírios e lanternas acesos. Negro major todo de branco, balouçava em frenesi a
matraca. Padre Luiz Cirilo, adiante do andor, ladeado do padre Alberto da
paróquia de São Cristovão em paramentos preto e branco. Prefeito Adeildo
Nepomuceno Marques e o tabelião Pedro Bulhões, trajados de paletó e gravata. À
retaguarda destes, Major Estevan, de farda, o quepi debaixo do braço, desfila como
se nas fileiras de um pelotão. Serenos acompanham, comerciantes, agricultores,
pecuaristas, vez outra, volvem os olhos à imagem, como se agradecessem, pedissem
graças. Alunos portando flâmulas, buquê de flores, no peito o brasão de sua
escola. Professores à guisa observam seus pupilos. No ar sons de clarins, troar
de tarós e bombos, da filarmônica Santa Cecília. Das bocas, enchendo os ouvidos,
inflamando corações, brado uníssono, o hino a excelsa padroeira:
“Santa mãe da mãe de Deus
Recebeis filias corações
Derramai de lá do céu
Graças mil sobre nossos sertões
Vossa glória da virgem de mana
Protegei-nos Senhora Sant’ana”
E seguia o cortejo pela rua da
Cadeia. Céu nublado prenunciou chuva – cerca de duzentas almas caminhantes
volveram seus olhos para lá - e se descortinou tênue e fria. As sombrinhas se
abriram propiciando um brotamento rico de cores. Do alto, o formigueiro humano, louvando Senhora Sant’Ana, arremedava um canteiro de flores serpenteando no
chão do sertão.
Fabio Campos
Este Conto já é recordista de visitas no neste Blog,este ano (até julho). Queremos neste momento agradecer a todos que nos acessaram bem como a crônica "Viva Santa'Anna! A avó da Cristandade" postada no websítio MINUTOSERTÃO.com.br teve mais de 150 acessos. Inclusive um internauta pediu-nos o hino de Nossa Senhora Sant'Ana em áudio,o que providenciaremos. Grato a todos.
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