Zé Sapo - O Saltimbanco - Condutor


Imagine uma casinha de taipa. Tosca, encostada na sapata do rio Ipanema. Fincada antes das curvas das corredeiras. Telhado baixo, de limo enegrecido, um fio de fumo se elevando das frestas. Dezesseis infâncias, e duas criaturas adultas ali se criavam. Mais adiante outra, e acolá mais outros casebres, melancolicamente, aflitos de pobreza. De abundância a vegetação, que deu nome ao lugar, Maniçoba. Os destinos rumavam pra urbe, muito embora vidas convergidas, pro entorno dali. O protagonista do nosso causo, Zé Sapo, ali nascera no ano de 1926. Das mãos do padre Bulhões, na igreja Matriz de Senhora Sant’Ana, recebeu os santos óleos. Batizado e consagrado a Deus com o nome de José Gomes.
Vamos contar de Zé Sapo. Retalhos, duma história contada pelo próprio, na escola do Bebedouro. Num misto entre atentos e eufóricos, os alunos o ouviram, e riram, e brincaram porque estava caracterizado de palhaço. Se ao menos um deles tiver retido algo do que disse, creio, tenha se dado por satisfeito. Filho de pais negros, descendentes de escravos africanos. Seus avós maternos habitaram o quilombo de São Jorge, hoje povoado Jorge, município de Poço das Trincheiras. Teriam sido trazidos do vizinho estado de Pernambuco para serem comercializados aqui em Alagoas, vendidos seriam pra prestarem serviços, nas lavouras de feijão, milho e algodão, a depender das habilidades, podiam ir pras cozinhas dos senhores donatários, nas tarefas domésticas, pro trato com rebanhos, pra ordenha ou pra casa de farinha. Além de amarrados pelos pulsos tinham uma corrente de ferro ligando um ao outro pelo pescoço. Em fila indiana caminhavam por muitas léguas, tendo direito a descansar somente quando cavalos e capitães-do-mato precisavam comer e beber água. Num determinado pernoite, seu avô, pra defender a honra de sua avó, se envolveu numa luta corporal, de “mãos limpas” com um jagunço. Usando golpes de capoeira nocauteou o cabra, desamarrou outros negros, vindo a provocar uma fuga em massa, um incêndio no acampamento, ajudou a fugirem mata à dentro. Ainda criança conheceu seus avós morando numa comunidade chamada alto dos negros, que existe até hoje na periferia de Santana do Ipanema.

Zé Sapo estudou no Grupo Escolar Padre Francisco Correia. A saliência dos seios da face, os olhos minúsculos, dentro duma caixa ocular semi-afundada, a carapinha na cabeça, e - completando o sinistro - os dentes, como se inventados de brincar do lado de fora da boca, inspirou o apelido.  Na juventude não gostava da alcunha de anfíbio, porém nunca brigou com alguém por conta disso. Vivenciou belos dias nos tempos áureos, da vida do rio Ipanema. Amigos íntimos menino e rio. Banhos nas cheias, enfrentando as águas bravias, braçadas fortes desafiando as “panelas” os redemoinhos d’água. Os jogos de bola no areal, também filhos de gente importante, iam convescotes à beira do rio. Trajando alegres calções de banho, levavam cestas de lanche, moças e rapazes desafiavam, a ele e outros meninos pobres, a darem pulos acrobáticos de um alto lajedo que terminava na água, arriscavam a vida em troca de um pão com carne frita, e um copo de refrigerante. Tinha por volta de nove anos quando viu o rio dar a maior cheia de sua história. Foi uma cheia realmente grande, assustadora! Chegou com tanta força, e tão depressa, que sua mãe teve que correr a apanhar os panos lavados, estendidos sobre os pés de crote e carrapateira na encosta do curso d’água. E até a noite daquele dia, choveu mais e mais, causando apreensão. Na cabeceira do rio chovia, de modo que as águas ameaçaram chegar ao casebre onde Zé Sapo morava com seus pais e quinze irmãos. Ficaria conhecida como a cheia que teria lavado os degraus da igreja da cidade, muito embora, não teria sido os degraus da igreja Matriz de Senhora Santana, e sim da igrejinha do Bebedouro.  
      
Em 1939, o mundo viu iniciar a Segunda Guerra Mundial. Três anos depois chegaria a Santana do Ipanema, com a convocação de reservistas do serviço militar. “Pracinhas” santanenses iriam engrossar as fileiras da Força Expedicionária Brasileira. Entre os trinta e poucos homens convocados, estava Zé Gomes. Debaixo dum sol solene, e quente, perante a bandeira hasteada, prestaram juramento de defender com honra, e a própria vida, a pátria mãe gentil, em terras Italianas! A porta da Cadeia, a estreita Rua do Sebo, o alvorecer escaldante, testemunhas do ato solene! Major José Maria Correia, vindo especialmente da capital, foi o encarregado de vistoriar e selecionar o contingente. Monte Castello e Collecchio jamais veriam nosso herói. O dia do embarque, sem aviso, foi antecipado. Zé Sapo era motorista do único farmacêutico da cidade, Seu Moreninho. No dia da partida, se encontrava no povoado Tanquinhos, no vizinho estado de Pernambuco. Atendendo chamado, o boticário fora encontrar um amigo, que solicitara sua presença, alegando estar muito doente, na verdade era pra uma farra. Três dias depois estavam de volta.  
     
Manhã de domingo de carnaval. Ano qualquer, de 2000 adiante. De azul anil, vasto céu, admoestado por nuvenzinhas pálidas de verão. Praça do Monumento tomada de povo, de troças e de folia. Algazarra de moleques, mela-mela. No início da Rua Rotary, surgia o folião solitário, sem estar só. Os olhares todos, pra ele, iam.  Enchendo o Largo de sorriso, de alegria, de cor colorindo. Blusa bufona e Macacão - extravagantes - sapatos pastelão. O rosto pan-cake Pierrot. Dalí por diante, o calendário, como se tivesse avariado, repetiria tantas e tantas vezes a mesma cena - película de filme em pane - a cada ano. Ópera do malandro, dum ato só. À cabeça, chapéu caravela, ora avião, ora nave espacial - centro das atenções - engenhocas de miniaturas animadas. Como se os pensamentos, materializando-se saíssem do fantasioso cérebro do artista - saltimbanco - mambembe.  

Fabio Campos      

Senhora da Assunção,Senhora da Glória!


Ao Largo do Monumento, em Santana do Ipanema, singela igrejinha. Pelo padre Manoel Capitulino, erguida, pra marcar a virada do século passado. Arquitetura simples. Um lápis de carpinteiro apontando pro céu. Encimada por cruzeiro negro a um florão incrustado, sobre cúpula piramidal. Munida de aberturas ovais, abóbada quadrilateral – de onde quer que se olhasse, via - dizendo: Eis a campânula! Ainda no alto, aos flancos arquitraves ornadas de quatro pequenos castelos. De cima a baixo, uns doze metros. Paredes de três por três descendo ao solo. Nas laterais, dois vertedouros de ar - tímpanos finos retangulares - assemelhados a aberturas de cofrinhos, assim a criança concebia. Assim é a torre-igreja.

No frontispício imenso portal, frisado em duas arcadas ogival, ostentando um querubim a arquivolta. As folhas das portas, quase sempre serradas, trazem duas janelinhas de vitrais ovóides, como se os dois olhos da igrejinha, olhando.  A escadaria tinha história só sua. Depois da carnificina de Angicos, teria servido pra expor as cabeças dos cangaceiros, trazidas pra Santana. Testemunha plena de tantos episódios. Desfiles cívicos, certames de atletas, motos, carros. Passeatas, bandas e clarins - feitos sublimes – Procissões, folguedos, troças de carnavais - fatos históricos - Comícios, manobras militares, movimentos grevistas, féretros. A tudo presenciou. Inspirou artistas, cancioneiros, pintores e poetas:

Aberta ao público a capelinha, novo cenário pros olhos doa! A imagem da virgem Santíssima resplandecente entoa! Bálsamo, refrigério pras almas suplicantes! Senhora Nossa na glória radiante! Seu olhar sereno, volvido aos céus. Azul e branco suas vestes e véu. Assenta os pés a nuvens risca d’anil. Esmagando a cabeça da serpente vil. Anjos e querubins dizendo: - Ó! E a lua crescente ao arrebol. Castiçais e jarros, velas e óleo, remetendo-nos a visão de um oratório.

Se agosto, as festa de Nossa Senhora Assunção. O altar sob um batente de mosaicos erguido ornamentado até o cleristório. Às novenas, átrio tomado pelo povo. Charola formosamente enfeitada de flores, enchendo de largo o perfume de flores. Majestosamente tornado cheio de alegria, e de louvor o paço. Explosão dos fogos, vibrantes floreios de entre os cânticos. No seu interior talvez mal desse pra acomodar seis fiéis, ao presbítero. Guarnecido de colunas, púlpito e capitel. Contrafortes pares em estilo gótico remetendo ao trifório. Lá da praia dava pra ouvir:

“Salve ó virgem da Glória
Por vosso povo foste escolhida
Para nossa padroeira
Abençoai-nos ó mãe querida
Ó Glória de Nossa terra
Velai por nossa cidade
Que a vós foi confiada
Protegei-nos ó mãe de bondade”

Antes mesmo de ser, e crescer o menino, Nossa Senhora conhecia seu destino. Um dia partiria, Ela já peregrino o sabia. Estaria sempre presente a protegê-lo, pois nascera sobre sua égide, por isso o zelo. Grupo Escolar Padre Francisco Correia e Nossa senhorinha rezando, depois Ginásio Santana, e Ave Mariazinha velando! Ora partia, pra longe do natal abrigo. Sem que soubesse santa Mãezinha ia contigo! No litoral também Ela a Rainha que no altar o povo a tinha. Venerada pelo povo do mar, gente do labor na cana, gente embrenhado da mata. Cheiro de antigamente e maresia em tudo havia. De causos contados com espanto, de constantes chuvas que molhavam até os ossos, de mulas e tropeiros resvalando no barro encharcado. De ruas enfadadas, que ainda dormiam e tinham sonhos coloniais, debaixo do sol, sonhavam com cartas vindas da corte, enviadas por El Rei! Capitães e jesuítas se foram, mas deixaram seu legado. Tesouros enterrados na praia, pra resgatar depois da revolução. Rua da Salina, erguida sobre uma gleba pertencente ao acerbispado, espólio de Nossa Senhora da Piedade. Assim diz a data, ainda na velha fachada em estilo barroco: “fundada em 1603”. Donatários Cunha e Lima, agraciados pela coroa portuguesa, deixaram posses à posteridade. O usineiro, extemporâneo da herdade, firmou compromisso com a Santa, promessa de família pela saúde restabelecida. E soergueu o que em ruínas estava. Novo púlpito, novo altar. Fez nova a catedral. De velho só o padre. Ia a procissão, de povo agradecido a mãe da Glória, ia o povo, uma só família, o tirador de coco milagrosamente sustentado pela peia evitando a queda fatal, o barco pesqueiro a deriva, encontrado dias depois. Ela olhava por todos eles.  

Senhora Assunção, Senhora da Glória. Milagres concedidos na praia, também no sertão. Seu Zé Santana, no passeio de toda tarde, subia os degraus da igrejinha, fechava os olhos, encostava a cabeça na porta da igreja, e rezava, e a dor de cabeça passava. A moça com sudorese excessiva nas mãos. Ensinaram-lhe, se passasse as mãos na parede da igreja ficaria curada. Passou e ficou.
De navio, veio a imagem da santa, de Portugal, até o cais do porto de Jaraguá, em Maceió. De trem levada a Viçosa. Sobre o lombo de mulas chegou a Porto da Folha, de lá trazida a Santana do Ipanema, mas isso é outra história.

Fabio Campos

O Dia em que Lopreu Enfrentou o Diabo


O que vamos contar, pode até parecer que nunca aconteceu de verdade, que tudo não passou de fruto da imaginação, dum desses caboclos contadores de história, do nosso tempo de criança, que a boquinha da noite, ajuntava em torno de si, uma ruma de meninos ávidos pra ouvir façanhas, de Cacão de Fogo, Mata-Sete e Pedro Malazarte. Garanto-lhes, aconteceu sim senhor! E foi num mês de agosto como esse. Mês em que, com muita ênfase, ficamos propensos ao sobrenatural, as coisas do além. Isso porque Sulino preto corria bicho, virado Lobisomem, o doido Justino “barba azul” virava Papa-figo, e havia uma menina do Sítio Baixio, que depois de amaldiçoada pela própria mãe, virada em porca, vagava pelas friorentas madrugadas de agosto, em Santana do Ipanema. 
      
Nossos personagens, talvez dispensassem apresentação. Ainda mais pelo fato de haver determinadas semelhanças, ou diríamos coincidências entre ambos. O Diabo, por exemplo, apesar da maioria de nós, não ter tido a oportunidade de encontrá-lo - graças a Deus! Desde que estamos neste mundo. Esteve ali atormentando-nos, sempre que teve ou tem oportunidade. Crianças, tivemos dos adultos, descrições pavorosas a seu respeito, caso desobedecêssemos, a Deus e aos mais velhos. Os experientes no assunto dizem é a representação de tudo o que Deus abomina: perversidade, apatia, tentação, luxúria, morte, destruição. Interessante é que possui uma gama de denominações, é também chamado de demônio e Lúcifer representa o que não é luz, ou seja as trevas. Na grega mitologia herdeiro direto de Hades, o deus do mundo dos mortos, local para onde as almas dos condenados eram enviadas. Após pagarem o barqueiro Caronte eram levadas a morada de Hades, antes precisavam passar por Cérbero, o cão de três cabeças que guardava os portais do Tártaro. Pra o catolicismo, era um anjo de luz e estava junto de Deus. Uma rebelião ocorrida no céu teria sido comandada por Lúcifer, portanto foi lançado fora dos céus, com seus anjos seguidores, que segundo o livro do apocalipse corresponde a um terço dos anjos celestiais. Desceram as profundezas da terra e se tornaram os responsáveis pelo mal no universo. Muitos são os nomes atribuídos a estes espíritos das trevas, Capeta, Encardido, Gramunhão, Salta-Moita, Coisa Ruim, Cabrunco. E mesmo Lopreu, que na verdade é nosso outro personagem.

Lopreu, nasceu Cícero França Campos. O apelido, porque era feio, negro, cabeçorra, beiçola e orelhas de abano. Filho do senhor Abdon Campos e dona Pretinha França. Era meu primo. Sua infância viveu na beira do Ipanema com os maloqueiros da Rua De Zé Quirino. O rio naquelas imediações, ornado na barranca de imenso areal, foi sendo ocupado por casebres de taipa e se tornaria a Rua da Praia. Havia ali, o sítio do seu pai, um pomar repleto de árvore frutífera, exótico coqueiral. Passarinhos, colméias, calangos, frágeis presas de suas aratacas, arapucas e petecas. Lopreu estudou, no Grupo Escolar Padre Francisco Correia. Ali, os primeiros estágios de menino traquino que sempre fora. Estas coisas não vêm de berço - como alguns dizem - se traz do além. Só pra gente ter uma idéia do que aprontava, teve um dia que chegou mais cedo à escola. Convidou outros colegas de sua extirpe, pra fazer uma presepada. João do Mato e Fernando entre outros, toparam na hora. Defecaram no meio da sala de aula, e esfregaram fezes na lousa, no birô do professor e nas carteiras dos colegas. Claro, não houve aula nesse dia.

Tempos depois, o senhor Abdon Campos, meu tio, resolveu mudar-se. Da beira do Ipanema, foi morar no Alto da Boa Vista. Lugar ainda mais paradisíaco, cheio de verde e plantas. Dali - fazendo jus ao nome - tinha-se um por de sol magnífico, e à noite podia-se ver boa parte da cidade, cintilando nas luzes dos postes. Projetando contra o céu negro creolina, salpicado de estrelas, um diáfano véu mercúrio alaranjado. Pra chegar até lá tinha que deixar a Avenida Pancrácio Rocha, e avançar por uma vereda margeada de arbustos. Esse foi o lugar do episódio.

O Lopreu que enfrentou o Diabo - não mais menino – era jovem, estudante da Escola Estadual Professor Deraldo Campos, educandário que um dia fora quartel, fincado estrategicamente às margens do Riacho Camoxinga, dirigida pelo saudoso professor Mileno Ferreira. Influenciado pelo amigo Antonio Eugênio, Lopreu esteve por uns tempos, ligado ao grupo de oração de jovens da igreja Matriz de Senhora Santana, mas estava escrito no livro de sua história tinha que seguir seu caminho, e se foi. Apreciador que era das noitadas boêmias, dos tempos de seresta. Na companhia do amigo Zé Alves e um violão, vagavam pelos bares da cidade, apreciando a arte de viver. Bebiam e bebiam, à vida. Um dia, no Bar de Renan no início da Avenida Coronel Lucena, onde fora o “Pic-nic Lanches” de Seu João Salgado. Por um mal-entendido, Ailton “Lebre” iniciou uma briga com Lopreu. De posse de um machado investiu contra o negro, desferindo vários golpes mortais, sem que conseguisse alcançar o intento.  Esquivando-se dos golpes com acrobacia e saltos descomunais, Lopreu deixou a todos impressionados com o que viam. “Lebre” teria dito: - Essa peste só pode ter parte com o Diabo!

Naquela mesma noite, de volta a casa, ao pegar o caminho de casa, Lopreu viu. Um bicho do tamanho de um homem, revestido de luz tinha a pele vermelha. Os olhos duas flamejantes labaredas. À destra, um tridente. Da cintura pra baixo coberto de pelos. Os pés dotados de garras e sobre a cabeça dois chifres. Punha-se como de guarda, não lhe interditando a passagem. Isso fez com que pensasse que podia ir em frente. Voltar seria sinal de medo, fraqueza, covardia. Decidido, seguiu em frente. Ao emparelhar com o cão, ouviu-lhe falar com voz de mil vozes, vinda das profundezas das trevas. – Não vai me agradecer! Negro safado filho de uma mãe? – O que? Quis saber o preto. – Ainda agora, lá no bar! Dê-lhe a habilidade do sapo, a sagacidade da cobra, e a coragem do cão! Pela cachaça consigo chegar até você, continue sendo meu seguidor, toda vez que tomar uma dose, despeje um pouquinho pra mim e sempre terá minha proteção! Deu uma estrondosa gargalhada provocando um imenso redemoinho, abrindo um imenso buraco no chão, pra onde o tinhoso precipitou-se e a terra revolvida tapou. E tudo voltou ao normal. 

Fabio Campos          

O Voo do Rouxinol


 Olhos, cabelos. Rosto de índio tinha Martins. Muito de selvagem havia nele. De manso apareceu nas nossas vidas. Chegou, pediu uma cerveja, e ficou. Mesmo sem dizer o que era terra, disse. Sem falar do amor que sentia, disse. Jeito texano, caubói do asfalto. Cativou-nos o jeito apaziguado. Nunca olhava. Contemplava, e punha poesia no que via. Acalentava, como que fosse por as coisas pra dormir. Acendia o cigarro como aquele da propaganda da Marlboro. O caminhão, a estrada sua casa. Nem bem chegava - deitava a girar a bola do mundo embaixo dos pneus - partia aventureiro. Se ia, deixava pra trás seu coração dentro do peito de minha irmã. Não prometia, se voltaria. Sempre voltava. Quis criar limo, cravou os pés em Santana do Ipanema.

Um dia foi, e levou um pouco de nós. Agora era dois. Iam, e voltavam. E dois virou família. Fez-nos tio, duas, três vezes mais. Vivia e se entendia – em constante diálogo, sem precisar falar - com a natureza. Sabia de calos doídos, sinalizando chuvas, de aura acinzentada entorno do luar, avisando trovoadas. De ir lá num canto do muro catar um punhado de uma plantinha, pra colocar em ferimentos, dar pro cachorro e pros passarinhos - se lhes diziam estarem - com dor de barriga. Quando podia, e por vezes podia, levava bichinhos e plantas pra dentro de casa. Cães vagabundos. Deles, apiedava-se. Cria em coincidências, e na providencial mão do destino. Num pedacinho de selva, que os homens comuns chamam de quintal, cágados, saguis, porquinhos da índia, jabutis, iguanas, hamsters. O rouxinol que gostava de canários, pintassilgos, cancãos, ferreiros, cacatuas, calopsitas. E educar papagaios pra chamar os donos pelos nomes, cantar arremedando o canto de seus pares. Encheu de mar um vão de acesso a cozinha, rei Netuno submergindo de dentro de baús, caravelas, sereias, era de aquário.  Um cão amigo, amigo cão. Cúmplices de afagos e brincadeiras, e conversas sérias também, de passeios nas tardes douradas. Camisa pólo, calça jeans índigo blue, sapato mocassin. O longo cabelo escorrido, penteado com esmero – se molhado, camuflava os fios brancos – conferindo-lhe jovialidade. Ameríndio redesenhando seus caminhos. Saído da zona da mata, indo desbravar veredas do sertão.

Quando fui à primeira vez a sua terra natal, apresentou-me aos amigos. No bar preferido, a cerveja preferida. À mesma mesa, que sempre estaria lá, lhe esperando, morrendo de saudade. O barman sabia a música que devia tocar. Bebemos, brindamos à vida, ao prazer de ser o que éramos, e viver tudo o que havia: o instante. O momento era, e pronto. Martins tinha história, histórias várias. Em cada lugar que ia, a cada esquina um enredo, novos protagonistas. Moleque engraxate ganhava moeda, carinho, e apelido. Cumprimentos, acenos ao carroceiro, o estivador, o relojoeiro, a vendedora de peixe na porta do mercado. Havia história em tudo, em cada canto da sua cidade. Espraiando no horizonte a Serra da Barriga, gigante verde, encerrado adormecido. Corpo de negro, deitado de bruços, alma de negro, carne de negro incorruptível. Impregnado de húmus, de vermes, amalgamado, muito embora, em profundo sinal de respeito não pervertia. No ventre de barro, soterrado o grito nagô nos  ventos da aflição. Zumbi havia em todo canto, músculos severos, suados, voltando da roça. Sangue dos Palmares, derramado no canavial, na lida com o facão ferindo a touça de cana. Bíceps e peitorais Inflamados do quilombo estrangulando saca de açúcar. A lança de Zumbi cruzou o ar, foi se encravar no coração da onça. Pés negros desnudos resvalando entre a pedra e a areia do chão antigo, chão encharcado de império. Vento assoviando ordem, impondo respeito e temor, nas flâmulas tremeluzentes dos umbrais desenhados.

O mar de cana ia engolindo tudo. Engolindo os olhos da gente. Estúpida voracidade de redemoinho. Engolindo carroções, bovinos, camponeses, negros, cães, latidos e lamentações. O choro do canzil indo longe, e voltando cego do sal da maresia sufocada de Inferno verde. Dava pra ouvir o roçar de pele de negro no capinzal, os grilhões, o canto pra espantar fadiga. As casas rústicas. O fogão a lenha, no meio do terreiro, o jumento cangalhado aguardando carga. O pano de chita gritando pra gente olhar. Sob a pele fubazenta dos banhos nos córregos cristalinos, mulatas, carnes vistosas, as partes íntimas de coito com o sol, pele luzindo n’água, pelos negros e sedosos de cheiro adocicado de banho com sabão de coco. Corpos desejados pelos capitães do mato, pelos jagunços, velado desejo dos senhorios de engenho, bem casados com nobres brancas da corte. O ar labaredeando palha da cana de dois homens de altura.

O matagal, misterioso olhava ameaçador, dizendo pra manter distância. Não excitaria em devorar-nos vivo. Árvores gigantescas se projetando pro anil celestino, e quando à pujança do rei-sol se ia, viravam dragões, monstros fantasmagóricos, paridos do ventre da mãe terra, incontestavelmente transportados da idade medieval. Caía o véu da noite e dava pra ouvir os atabaques e afoxés, vindo da mesa da montanha. Cujo cume custodiava a negrada fugidia. Refugiados na crista da mata elevavam preces, ofereciam holocaustos a pai Oxalá, Ogum e Yãssan. No cruzamento da seara, sexta-feira, meia-noite arupemba com garrafa de cachaça, galinha preta, espelho, cédulas, moedas, colares, pulseiras, anéis, flores, fumo de rolo, perfume e quindim. Despacho pra Pomba-Gira e Zé Pilintra. Trabalho feito. Pra conquistar mulher difícil, pra quebrar senhorio cruel. Lá vinha Jorge de Lima todo de branco surgido no clarão da noite montado no cavalo do seu santo guardião, empinando a crina, troteava o pangaré enquanto se ouvia o canto pro acendedor de lampião e pra Nega Fulô.

Se janeiro, Santa Maria Madalena, chamava o povo pra igreja. União era festa. O estandarte da santa - roto de tempo e de história - esmaeceu de colores. Guimarães palmarino deitou contrato pra pintarmos outra bandeira. Índio Martins apenas observava – por entre a fumaça azulada do cigarro - acompanhava as voltas que a tinta e o pincel davam sobre o algodãozinho. Ao cair da noite depois da novena cantava o rouxinol, canto mavioso de cordas acompanhado. Os janeiros áureos se foram, tragados feito fumo, pra dentro do abismo do tempo. O rouxinol aturdido por não saber mais de cantar, alçou vôo, voou.  

Fabio Campos     

Aprendizes de Pai



Quando meu filho disse que ia embora. Naquele instante, lá bem dentro, num cantinho onde dorme a tristeza dos meus pensamentos. Aquela música da dupla sertaneja veio me embalar. Consolar-me talvez. Acho que consegui disfarçar, embora os olhos marejados denunciassem-me. Em questão de segundos, toda uma vida, num relampejo, passou na mente, como um trailer dum filme. Ali na frente dele, não podia chorar. Pior, tinha que ser forte o suficiente para incentivar, passar sensação de confiança, de apoio. Bocado difícil. No nosso excesso de zelo e proteção, nós pais, achamos que os filhos nunca estão prontos, preparados pra cair na vida. Estarão sempre, terna e eternamente, a precisar de nós.

À noite, trancado no quarto, embaixo das cobertas de dormir, o choro veio. Um choro morno, bom de chorar, a um só tempo contido e desatado. Quis volver no tempo, num retrocesso de vinte e poucos anos. Lembrei quando sua mãe, em estado gestacional avançado, entrou em trabalho de parto. Tudo estava devidamente preparado, para àquela hora. Uma semana antes, bolsa contendo o enxoval. Tudo, premeditadamente organizado, carro pra levar ao hospital Dr. Arsenio Moreira. A obstetra permitiu-me, assistir. Antes, havíamos optado em não fazer ultrassonografias. Bom a expectativas, a surpresa. E foi. No dia quatro de agosto daquele ano, veio ao mundo. Nosso primogênito, filho amado, um varão, da descendência de Davi, de Israel. Veio encher duas vidas. Preencher o vazio duma casa, ser luz. Passamos a ser um casal de três, o que a família um dia almejara.

E agora, eis que estava ali, a dizer que iria embora, morar com a namorada, em Maceió, num apartamento no farol. Renunciava o emprego em Santana do Ipanema, sua terra natal. Ia tentar conseguir ocupação semelhante, na terra do sol, paraíso das águas. Só tínhamos que concordar. Abençoar aquelas vidas, pedir que Deus colocasse sua mão protetora selando seus destinos. Afinal, havíamos trilhado caminho parecido. Agora era a vez dele. E o tempo se encarregou de aplacar nossas angústias, nossas incertezas. De longe rezávamos, volvíamos nossos olhos a Deus pedindo por eles, e pra eles, proteção divina.

Um belo dia chegou e disse: - Pai você vai ser vovô! De novo! Como Deus é bom para com os seus. Antes de vir ao mundo, ela já sabia que se chamaria Sofia. A ansiedade fê-los descobrir que era uma menina, antes do parto. Amada, antes de concebida, mais ainda depois. Nove meses amada, amplamente aguardada. Mesmo nós em Santana, eles em Maceió, conseguíamos nos transportar pra lá. Em sonho, íamos parar dentro do seu apartamento e víamos. Belo casal, assemelhado ao casal lá da Judéia. Tudo tão simples. Cabeça apoiada no ventre de sua amada. Ventre planeta redondo, onde a única forma de vida habitava o interior. Como se da obra de Antoine Saint-Exupéry o Pequeno Príncipe cabelos revoltos conversava com Sofia:

-Que quer dizer “cativar”
-Tu não és daqui – disse a raposa – Que procuras?
-Procuro os homens – disse o pequeno príncipe
- Os homens – disse a raposa - têm fuzis e caçam. É assustador! Criam galinhas também. É a única coisa que fazem de interessante. Tu procuras galinhas?
-Não – disse o príncipe - Eu procuro amigos. O que quer dizer “cativar”?
-É algo quase esquecido – disse a raposa. Significa “criar laços”.

Dentro da barriga da mãe, Sofia ouvia o pai, que contava histórias só pra ela, e cantava cantigas de ninar, entrecortadas, pela metade, em ritmo de rock’in roll, a som de guitarra. Dizia das histórias que lia, e do quanto era aguardada. Dizia do enxoval que estava sendo preparado com muito carinho, do quarto. Seu quarto, com esmero, por ele próprio pintado. Um pedaço de céu aqui na terra pra Sofia. Bibelôs, travesseirinhos - tudo tão minúsculo, como se trazido da “Terra do Nunca” de Peter Pan, das viagens de Gulliver - Chuquinha de chá, chuquinha de água, babadores, toquinhas, pares de sapatinhos com cara de coelhinhos. Macacões com carinhas de ursinhos, e fraldas, muitas fraldas. E Sofia flutuava no seu planeta de bolha, dormia e sonhava. Ainda não sabia de falsos contos de fadas, onde Chapeuzinho Vermelho, era do comando vermelho, Branca de Neve na favela era pó, e dava cadeia. Ainda nada sabia dos vilões, Lobos Maus nos porões dos poderes, Bafos-de-Onça e Coringas que riam de tudo e de todos. Ainda aprenderia que o bem sempre, vencia. Sempre venceria. A Mônica, o Cebolinha, Margarida, Mickey, o Pato Donaldo, também sentia suas presenças. Sabia, estavam lá, nas paredes do seu quarto, no frasco de colônia, no pacote de fraldas, na toalhinha, sorrindo-lhe, dizendo: Seja Bem-vinda Sofia!

E Sofia resolveu dar o ar de sua graça. Escolheu um dia especial. Quis vir ao mundo num dia perto da data natalícia da mãe. E se o choro do vovô era de emoção, pela boa nova. O de Sofia era pra dizer, tenho frio, tenho fome, tenho cólica, limpem-me por favor!  Estreou a vida daqui de fora, num mês que no calendário, à muito, começava o ano. Sofia quis começar a dar sentido à vida daquele casal, que se amavam e a amava, desde antes da concepção.  E o pezinho de Sofia, pra sempre foi parar no braço do papai. Deusa grega, da sabedoria. Veio ser sábia, trazer serenidade, sabedoria pra um lar. Todo construído, pensado só pra ela. Antes de ser, já existia. Sofia existia nos planos de Deus. Criaturinha frágil, de colo. Carecida de toda atenção, todo amor do mundo, carinho pra tomar banho, se alimentar, arrotar, botar pra dormir. Primeiro álbum de fotos, os primeiros dentinhos. Mãos desengonçadas, ampliadas de cuidados, manuseando Sofia, como se de nitroglicerina pura. Mãos aprendendo a paternidade. Experimentando a experiência do Criador, de ser pai e filho a um só tempo.