A Ponte e o Padre


O Padre
Cônego José Bulhões, por muitos anos - especificamente os que preambularam o século vinte - à frente do rebanho do povo de Deus, na terra do sol e do mandacaru. Filho de família tradicional deixou tudo pra ser soldado de Cristo. Empunharia um revólver se assim a situação exigisse. Indo a cavalo levava evangelho e hóstia pros viventes, anciãos e enfermos ditos cristãos. Andante numa terra onde a lei de mais vigor era a darwiniana, o mais forte subjugando o mais fraco. Agarrou-se até ferir o coração, à espinhosa missão de desentortar almas. Com paixão cristificante, abraçou à missão de conduzir ovelhas peregrinas, gente penitente de suas cruzes. Com igual intensidade amava e odiava aquele povo, de dúbias vicissitudes. A um só tempo, desletrados de oportunidades, sem cabestros, nem parcimônias no doar-se, de humildade locupletados. O tanto que carecia de bens sobejavam de hospitalidade a um estrangeiro a sua porta.

Padre Bulhões tinha fama de homem rígido nos tratos. Traços amplamente imprimidos a sua personalidade, talvez trazido dos laços familiares, ou herdade da vida religiosa. Um São Paulo que não careceu de uma visão, pra perseguir os seus. Perseguia-os até torná-los filhos de Deus, a lei do a pulso, se preciso fosse. Casava amancebados, confessava e ditava expiações aos pecadores arrependidos, ou orgulhosos. Precisava de meses à fio, pra varrer, sob as patas de seu cavalo, a imensa paróquia que conduzia. Ia a Vila do Capim, hoje Olivença; Pedrão e Gavião, à hoje Olho D’água das Flores; povoado Riacho Grande, hoje Senador Rui Palmeira; Caldeirão, hoje São José da Tapera; Sítio Cedro e Serra da Caiçara, na atual Maravilha; Sitio Pilões, município de Ouro Branco;  Povoado Tanquinhos;  Serra do Poço das Trincheiras;  A leste ia até a Pedra do Urubu, pertencente a Dois Riachos e mais uma centena de novenas, e capelinhas, por ele erguida, futuras paróquias, sob a égide de santos católicos. Dom Santino Maria Coutinho, arcebispo da arquidiocese de Maceió nomeou-o pároco da paróquia de Senhora Sant’Ana. A igreja matriz ainda não adquirira torre de dez côvados de altura. Assentada na parte arribada das ribanceiras do Ipanema e do riacho Camoxinga. Este de cá, transpassado de singelo pontilhão.   

A Ponte
Lá estava assentada, a confluência do rio e riacho. Enquanto o Camoxinga, lânguido se entregava ao Ipanema, Riacho João Gomes, lá do outro lado desembocava. Exato no vértice da cruz de águas - bem ali onde Jesus, na hora dolorida, recostou a cabeça - o padre daria de habitar imponente casarão. A casa do pároco era construção solta, resvalada no batente do riacho. Concebida de alegre arquitetura colonial. Rodeada de vegetação briófita, que escalava pilares dos telheiros profusos, Barroco.  As manhãs brincantes e vinha o sol banhar-se ao regaço, faceiro, platino como se posasse a um quadro. Se a aura crepuscular, nigromante ar plainava, vespertinando indo amigar-se com os verdes-azuis, meridional. De tão fluídas as cores sibilando - e tanto de si, se dando - se entregando, que a ponte sorria.
   
A ponte nasceu à foz. Na grota, onde antes o povo lavava os pés quando atravessava o arroio. Enterrando na água e na areia os pés, se molhando até os tornozelos. Apoiada nas muretas cresceu nos beiços do riacho. Deixou o pega-pinto, a catingueira lá embaixo - de cada lado - e escalou meia braça. Esplendor de muro de arrimo, pronto pra enfrentar as já esperadas pancadas das cheias, dos dois mananciais. Viesse, pois o Camoxinga bradasse então o Ipanema.  Bravia e paciente aguardaria a pontesca. Lapidada a cinzel, o granito, tomou forma e deitou o lombo pros passantes. Acessou aos que se destinavam a usina, vapor dos irmãos Melo. Portal pros que rumavam ao vale do Caiçara e os que tinham Pernambuco por destino. Santana precisava - muito ainda - se expandir pras bandas da centenária, Poço das Trincheiras, o rio jamais poderia ser obstáculo, não podia parar o progresso, nunca fora - jamais seria - empecilho. Era parceiro.

 O governador planejava um hospital, pra depois da ponte. Já as primeiras catacumbas lá no alto, Cemitério Santa Sofia aos poucos se fazia. Manso, o rio doou de si, água, areia, pedra para untar argamassa. Possibilitar os santanenses irem e virem livremente, sem precisar tirar os calçados, a batizar-se de doce salubridade toda vez que rumasse pro norte. Doravante passariam a pé enxuto, o casco do boi do carreiro – de eixo azeitado - cantando cantiga de canzil. Seco agora, os cascos do jumento toque-toque no cimento! Troteando iam também, cavalos e cavaleiros no passeio, não mais ferindo o espelho d’água. Feixe de aço e concreto musculoso ecoante, então. Enxuto, os negros pés descalços das mucamas, com imensas trouxas   de roupa na cabeça, tendo à guisa buguelos, buchudos, pelados, atravessavam a ponte. E ia o trazedor de água do rio. O vendedor de ui-ui. A preta Nagô - toda vestida de branco - tabuleiro de tapioca e fubá à cabeça. Açoitando o vento com voz aguda: “-Ô de lá da casa do padre! A tapioca vai na ponte!”. Passar à ponte, ato pábo de poesia.

Não mais que um lance de olhar tinha de vão, não mais que isso. O balaústre de peitoril baixo olhava pros meniscos dos passeantes. Pinos de jogo de damas em alvenaria concebidos. Enfileirados constituía o minúsculo parapeito, como se feito pra gente anã, causando frenesi no passante alto, medroso. Olhar lá embaixo, acrofóbica aventura. Nos quatro cantos - às cabeças do balaústre - postes de cimento com luminárias a farolear a partir das seis horas da tarde, quando vinha o acendedor de lanternas, munido de escada, candeeiro e óleo diesel. O intendente Municipal Firmino Falcão, junto ao Conselho Municipal, orçou os gastos, deu despacho: “-Seja feita! A obra.”. Primeiro pensou em homenagear o Doutor Bacharel Washington Luiz Pereira de Souza presidente da República do Brasil. Ponderou que aquele, jamais saberia da existência, naquele fim de mundo, de metro e meio de ponte com seu nome. Desistiram. Decidiram a ponte teria o nome do nosso governador, o senador da república Pedro da Costa Rego. A língua da rua confiscaria pra o padre. Até hoje pelo povo consagrada Ponte do padre.

Fabio Campos

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