"Passarinho" e Virgulino Fúria de Titãs


 O povo santanense, civilização surgida às margens do Nilo do sertão, o rio Ipanema, cujo delta em terras alagoanas, banha o vale do Ka-Içara. Santana do Ipanema de três raças.  Os nativos primórdios deram nome às duas principais fontes de vida, à mata chamaram de Ka-á-tinga e o curso d’água de “Águas amargas”. Cobiçada pelos donatários, a rica e fértil planície seria incorporada à sesmaria dos irmãos Vieira. Ocupação que marca a chegada do homem genuinamente branco, de origem portuguesa. Em meados do século XVIII chegariam às primeiras levas de negros escravos. Mercantilizados na feira livre, em meio a toldas de legumes, frutas, cereais e a manufaturas de couro e madeira. Mercadoria valorada conforme a condição física que se encontravam. Pelos senhores feudais comprados para os mais variados trabalhos. Agropastoril ou doméstico, segundo suas habilidades.

Nossa história, vem de um século depois que a princesa Isabel decretou o fim da escravidão negreira, em terras brasileiras. Num tempo em que índios e negros legendavam suas sagas. Eram maioria, e poucos se atinham disso. Tempo em que negros e nativos mais prolíferos e sem posses, acabariam pelo inchamento da plebe, empurrados pra periferia. Margearam a reboque o braço do rio. A montante de sua várzea direita a cidade serpenteou, se expandiu. No centro, soergueram sobrados, instalaram entreposto, empórios e intendência municipal. O padre reconheceu firma, em livros cartoriais registrou a freguesia de Senhora Sant’Ana, ergue a Matriz. A periferia alastrada em mocambos. Do tronco tupi-guarany, os nativos aqui existentes se disseminaram da linhagem I-atés ou Kaá-r-nijós que significava “Os que habitam as margens da água forte” e “nascidos do ventre da mata”.

Índios
Santana do Ipanema, imenso legado indígena herdou. Costumes, cultura muito ainda se teria deles para sempre. Nomes de ruas, lendas, plantas: Baraúna, Maniçoba, Velame, Kaa-mo-xinga. Famílias tradicionais de consolidadas raízes aborígenes, Cinésio conhecido por “Caboclo”. Professor Valter, cujas veias, flui sangue da descendência I-até.  “Índio” ex-goleiro do Ipanema Atlético Clube. Aman-tá -y- Çá que significa “mãe-da-chuva-que-vê”, era minha avó, cuja mãe viveu e a criou numa aldeia. Aportuguesado, seu nome virou Amância de Sá. Índio se conhece pela cor da pele amarronzada, o cabelo, a compleição facial. Deixou pra civilização o hábito de cultivar milho, usar plantas alienantes como a diamba, em rituais de cura. O tabaco para selar acordo de amizade entre tribos. Deles que depois terminariam sendo estivadores, por não terem tido oportunidade de estudar.  “Carrinho” índio”, “Passarinho”,  dentre outros, ganhavam a vida no carrego e descarrego de secos e molhados, dos caminhões que chegavam e saiam todos os dias, levando e trazendo o progresso pra Santana. Açúcar, café, e manufaturados. E levavam feijão, milho e algodão. “Passarinho” era um de estatura física fenomenal, braços fantasticamente musculosos. Seu corpanzil titânico daria a atribuir-lhe feitos formidáveis, enaltecido pelos contadores de causos nas noitadas de luar à praça São Pedro. Narrativas apoteóticas de suas caçadas. Numa delas teria enfrentado a cobra Norato, uma serpente gigante de dez metros de comprimento, que engolia um boi inteiro. “Passarinho” teria matado-a na ocasião que dera uma cheia no Ipanema, ao tentar atravessar o rio a nado pelo poço das corredeiras próximo a foz do riacho João Gomes a bichona se atracou com ele dentro d’água, o ofídio  gigante teria o engolido. Dentro das entranhas do réptil, sacou seu punhal e destroçou suas tripas. Uma vez livre teria nadado chegando são e salvo a margem do rio.

Negros
Os primeiros autenticamente negros em Santana do Ipanema, teria vindo de duas linhagens Bantus e Nagôs traficados da mãe África. Era fácil diferençar uns dos outros, os de origem Nagôs, vindos de Nova Guiné e Guiné Bissau, eram negros retintos, o pretume da pele era tanto que reluzia. Bem alimentados, aumentavam no porte físico. Muito prolíferos. Arredios no manejo com lavouras preferiam trabalhos domésticos, tinham dificuldade de aprender nossa língua. Exímio no manejo de armas brancas. Sonhavam com a liberdade por isso eram muito fujões. Ficaram conhecidos como a raça dos Baus. Bantus eram originados de Moçambique e Angola, eram negros fubentos, a pele parecia coberta de cinza, não eram dóceis com seus donos. Praticavam rituais de macumba, com holocaustos de animais e fetos humanos. Eram bons capoeiristas. Ficariam conhecidos e temidos pela fama de antropófagos,  a raça dos Bius. 

A Briga
Foi num final de tarde, de um dia de sábado. Mais um dia de feira livre findo. Mangaieiros começavam a desarmar suas toldas. Início da Rua Tertuliano Nepomuceno, quase à porta do mercado da Carne. A via ficava imunda, frutas e legumes estragados jaziam no leito. Cães vadios catavam o comer no meio dos despojos do burgo. Conhecida também como “Rua dos porcos”. Leitões e galinhas - entre grunhidos e cacarejos, fezes e lama - vendidos. Aquela artéria acessava a Intendência Municipal e o baixo meretrício. Virgulino um estivador morador do mocambo da Lagoa do Junco - da raça dos Bius - com “Passarinho” se encontrou por acaso. Estavam intrigados por uma desavença anterior. Por ter ingerido vários grogues de cachaça Virgulino esbarrou com violência contra seu desafeto. Isso foi suficiente para darem início a uma briga.

Entre gritos da populaça e curiosos, os raçudos titânicos se atracaram. O choque de músculos produzia quase um som metálico, como de espadas. Golpes magníficos de capoeira desferidos atingiam o alvo. Tenazes braços, claves de bronze, catapultavam bancas dos mascates. Fantasticamente pesadas, flutuavam como se feitas de isopor. Como num passe de mágica, um machado foi parar na mão do índio que vibrou no ar, buscando destroçar carne e osso humano. Conseguindo apenas arrancar um silvo do ar. Virgulino de posse de uma cangalha arremessou-a contra o oponente, atingindo a espádua de “Passarinho” que foi ao chão.  Uma vez engalfinhados desferiram golpes um no outro. Numa sincronia e reciprocidade de pura fúria de brutamontes, como se trocassem cortesias. Eis que abrindo passagem entre os espectadores surgiu um homem, trajado em paletó e de gravata, encheu os pulmões de ar, emitiu um grito, que tornaria estático o burburinho. Parado no ar o murro, o golpe a ser desferido congelado. Tudo e todos estratificados por um grito de “parem em nome da lei”. Diante da voz do homem, os gigantes virados estátuas. Quisera, o tempo tornasse em pedra aqueles dois titãs, no meio da rua, eternamente. E ao cimento fresco, o artista autor da obra assinasse: Doutor João Ioiô Filho, juiz de Direito da comarca de Santana do Ipanema.    

Fabio Campos        

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