Olhos Morenos que Sorriam

Um trovador, em seu cavalo havia, tocando majestosa craviola, sob um luar, cortejava belas donzelas à sacada postas. Em vestes feudais trajados, a um suntuoso castelo galés, um cão da raça Collie arrematando a cena, em lusco-fusco de verdes fulgores. O quadro compunha a parede lateral do ambiente. Muito embora, não aparecia, devido ao ângulo donde a foto havia sido tirada. Mas estava lá, fazia muito estava lá. Sua irmã, e o noivo, meu irmão mais velho. Ambos em pé na sala, abraçados, compunham o postal. Tão sérios que nem pareciam felizes recém-casados. Era o suficiente, já estávamos lá.
O centro sobre o tapete. Os biscuits de três golfinhos na parede, saltando de um mar inexistente, tão em voga nos anos sessenta. Da cor de doce de leite, a vitrola de móvel, de tampa arapuca. Lá dentro negro disco lascivo. Deslizando, em toda sua essência a melodia. Se insinuando aos outros cômodos da casa, em fino sabor de vinho verde, suave. 

“Sonhei que eu era um dia um trovador 
Dos velhos tempos que não voltam mais...” 

Lá na cozinha. O papagaio emudecido - sempre emudecia a segunda metade do dia - amolava o bico no poleiro, piscava os negros olhinhos, com o cocuruto coçava as asas, banzeiro. As palhas de coqueiros e palmeiras de outros quintais esticavam seus longos dedos de clorofila, que chegava junto com tênue azul floral, adornando alvas nuvenzinhas promitentes. Indo e indo, num breve estalo de um cão latindo lá longe. Se a porta da frente, fatalmente os olhos desceriam a ladeira. Destrambelhados despencariam na Ladeira de Seu Carrito, Ladeira de Seu Zé Quirino iam parar lá em baixo. Pra bem junto do Panema. Indo inebriar a alma nos cheiros, de pele morena, de roupas molhadas, amofinando o granito cardado. Os pés do tangedor de mula, engelhados, túrgidos, afundando na areia fazendo chople! 

Praça de São Pedro, o mundo do menino Marcos. Jogo de ximbra, pião, ferro de finca. O velho prédio da perfuratriz, virado posto do fomento agrícola. A seus galpões sombrios, gigantescas pilhas de cereais, encerados em sacos de papelão, carimbados com prazo de validade em tinta preta. Purgado pra não empestear de pichilinga. Na brincadeira de esconde-esconde, gabirus, morcegos, e almas velhas vagando, do tempo de Lampião. Aguardavam a oportunidade de se apossarem de um desafortunado, de pobres mendigos ou bêbados, pondo tanto medo, que vinha forte a vontade de urinar. Dona Celina deixava ir tomar banho no rio, se fosse com Mailson. Sabia que já sabia nadar, mesmo assim só ia com o irmão mais velho. 

Pela manhã o Grupo Escolar Padre Francisco Correia, a farda branca, calções azul-marinho. Morenês de pele queimada de sol e rio. Menino feliz, que ia a Rua Nova comprar pão na padaria de Seu Bendito. Café com leite esfumaçando o raio de sol, pão com manteiga. O líquido quente deitado ao pires, soprado pra esfriar, tomado aos chupões fazendo um som engraçado. Angariando reclamos de Dona Celina. Molhava alguns nacos e jogava por baixo da mesa, pros gatos que ronronavam a se esfregarem nas pernas enterradas em meias, e sapatos vulcabras. Marcos logo a se tornar rapaz. Educado sob os auspiciosos cuidados de Seu Breno, seu pai. 

“Relembro a casa com varanda 
Muitas flores na janela...” 

Jogo de bola no campinho de areia, sem tempo marcado pra acabar, duas pedras se faziam de traves, Deus, o juiz, que nunca marcava impedimento, nem apitava o fim da partida. Pras bandas de Riacho Grande o sol desvanecendo. Meninos de carvão, projetados no flamulante vermelhão solino, arremedado pelo rio salino. 
A volta do rio era pela Rua de Zé Quirino, Praça São Pedro. Num daqueles cair de tarde prazenteiros, ao passar na porta do Bar de Seu Lelé viu Gilvan de Dona Mariquinha tocando violão. Foi amor a primeira vista. Passou da hora de voltar pra casa, e ninguém sabia onde estava o menino. Embevecido pela melodia das cordas, desfrutava do boêmio dedilhando o cordil retesado, sem perder um só movimento das mãos. Gilvan não demoraria aperceber o interesse do rapaz, perguntou se queria aprender a tocar. Por essa época Já estudava no Liceu santanense Colégio Professor Deraldo Campos. Cocada, Pangaré, Xogoió, Aderval Papa-figo, Ubiratan, Ubiracy, Ubirajara, Marcondes, os filhos de Seu Liôu, dentre outros que tinha por amigos. 

“Um dia a areia branca 
Seus pés irão tocar E vai molhar seus cabelos...” 

Tomou posse das claves de sol, lá, si, dó. Descobrira porque tinha vindo à vida. Amava suntuosamente o som despetalado das ligas de metal esticadas. A música sua paixão desenfreada. Sua segunda pele. Claves. Chaves que abriam seu espírito. Libertando su’alma. Um dia, ao acordar Marcos, Dona Celina percebeu o travesseiro tinto de sangue. Sangrara pelo nariz, enquanto dormia. Ou desfalecido estava? No hospital o diagnóstico, leucemia. O grito preso na garganta. O pinho virou único companheiro, único confidente. A música, ainda mais a embalar os sonhos. Não, não seria a passagem que ia impedir sua intergalática viagem. E tocava e tocava, enquanto seus olhos castanhos sorriam. 

“Cadê você, cadê você, você passou 
O que era doce, o que não era se acabou...” 

Fabio Campos

Nenhum comentário:

Postar um comentário