O Anjo da Cor de Gente

Lembro da primeira vez que o vi. A juventude andava em nossos corpos. Fui à sua casa, resolvido a iniciar namoro com sua irmã. Uma magnífica tarde de sábado havia. Era casa velha, de alpendre, ficava no sítio. Duas caídas d’água, a frente virada pra nascente, uma porta, e uma janelinha tosca, que vivia fechada. Tempos depois de ter declarado que gostava de olhar através de janelas, aos domingos, passaram a deixá-la aberta. Sentado a uma cadeira de palhinha parecia um velho, mas só nos modos. Assim como eu, tinha apenas vinte e poucos anos. Pernas cruzadas, joelho sobre joelho. Fazia um cigarro com fumo picado, numa facilidade medonha. O pequeno retângulo de papel entre os lábios, as mãos ocupadas, desse jeito saudou-me. Iniciamos conversa medindo-nos nos olhares. Astúcia de águia e raposa. Sabíamos que sondávamos um ao outro. Era uma tarde pra ver o amor. Roberto mesmo, diria: “Esta tarde vi Llover”. 

O pai chegou da roça. Chegou trazendo canto e cansaço de carro de boi. E os cheiros acridoce e forte de esterco, e forragem ruminada. Falava do trato com gado, do quanto valia uma tarefa de palma, do ataque de preás ao plantio, do que o céu lhe dizia ultimamente. Todo seu corpo e tudo ali ao seu redor, falava. Uma mão com textura de pedra e areia me foi estendida, carne e ossos apertados. E outro estudo dos gestos, sutileza. Também fez cigarro de fumo picado, só que de pé. Água sorvida com avidez, gosto de suor. E punha a mão na cintura de modo engraçado, encostava o dorso da mão no quadril. As falas eram de um para o outro, mas o olhar estava lá pro horizonte. Havia ali, um homem urbano tendo contato com homens do campo. E tudo que falavam era interessante, e queria entender do que diziam, prestavam atenção a tudo. Aprender a respeitar a terra, respeitar o sertão. Se apropriar das coisas, pois dali por diante, aquele mundo diferente, também seria seu. A namorada apareceu, interrompera as atividades domésticas junto à mãe. Trouxe um olhar, um sorriso maroto, seria esse seu cumprimento, de menina que era. Não tinha palavra pronta, nada pra dizer, apenas doava-se em imagem. Talvez julgasse que não precisasse falar nada, apenas ser, e estar ali. Concordávamos também com isso. Cabelos esvoaçando ao vento. A noite não demorou a chegar. O candeeiro transformou em sombras tudo onde não conseguia chegar a luz. E tudo dançava uma dança de claro escuro. A longa espera por ficar a sós com ela, algo que parecia remoto, distante, e isso, apenas tornava-a ainda mais bonita. E teve que ter um longo namoro, com o pai. 

Noutro dia, tentou fazer-lhe surpresa, chegou no meio de semana. Era uma tarde ensolarada, de quarta-feira. Lá ia ela, andando na vereda, de costas, não o via. Bacia de roupas na cabeça, pra lavar na ribanceira do barreiro. Feliz, ia cantando. Trajava um short, blusa de meia. Cabelo negro, juba esvoaçante ao vento. Ao se encontrarem, sentiu que a desconcertara. Beijaram beijo apaixonado, abraço forte de que tem saudade, de pessoas que se amam. Ainda a apertava entre os braços, sentindo o cheiro do seu cabelo e o viu. Lá estava ele, o seu anjo da guarda, seu irmão, sentado à borda do riacho. Não teria dado pra ver, pois estava camuflado na cor argila do barreiro, com o marrom de sua camisa. Vigiava-a. Agora, vigiava-nos. Ao por do sol, rumavam pra cidade, iam assistir novela na televisão, Roque Santeiro, na casa da irmã mais velha, casada. Lá íamos de carro de boi, eu, ela e sua mãe, o anjo da guarda conduzia o cortejo, o pai ia a cavalo, o irmão mais novo numa bicicleta Monark. Levavam leite e feijão, tomates e abóbora. Um balaio de capim e palma pros coelhos. E tudo era tão roceiro, tão bucólico. Fim de tarde, agricultores voltando do campo. Um outro carro de boi vinha gemendo com o peso da palma, um cachorro magro, ia até lá adiante parava, a língua suando, pingando na terra ainda morna da estrada. Um carcará depois de um vôo rasante sobre nós veio pousar na estaca do cercado. 

Nas férias escolares, fomos pra o sítio Lage Grande, do tio dela, Seu Antonio, Dona Angelita, quanta amabilidade em duas criaturas. O primeiro passeio a cavalo, não gostou, sentia pena de estar ao lombo do animal. Tudo tão incômodo, ainda mais havia a falta do domínio das rédeas, um desastre, todos riram da falta de habilidade do moço da cidade. No barreiro salubre, podiam tomar banho. Todos foram. Corpos molhados revelam detalhes, curvas novas, cabelos molhados desenhavam melhor os rostos. O anjo da guarda riu das pernas finas do namorado da sua irmã. De volta à vida dantes, a rotina, e próximo ao sítio Calango Verde houve uma quermesse. O moço quis estar lá e acabou encontrando os pais da namorada. Perguntou por que ela não viera. Ficara cuidando do irmão mais novo. Deu-lhe vontade de embrenhar-se, abrir um buraco na noite, e bater lá. Mas os pais não o perdiam de vista. Sabiam do que seria capaz. O anjo da guarda com certeza a velava era sua função. Os tocadores de pífanos, a zabumba, o fole suplantavam o tri-li-li dos grilos no torrão noturno. As prendas, rodando no meio do povo na mão do leiloeiro. Procurando quem desse o maior lance. Um peru, um bolo de macaxeira. Depois de várias garrafas de vinho, e muitos grogues de cachaça com o pai, e o convite para ir dormir lá no sítio. Vibrou com a possibilidade de vê-la ainda naquela noite. Já ia a madrugada quando foram engolidos pela vereda cor de carvão. E se quando chegasse lá já estivesse dormindo? Estava. Sua mãe a acordou. Conversaram um pouco sozinhos, depois o pai veio acender um cigarro de palha, olhar a noite e chamou-o pra ir até a beira do riacho. A noite estava linda. 

E veio a grande festa. A festa do Padroeiro. Na semana da festa do feijão, comprou um relógio de pulso pra lhe dar de presente de aniversário. Setembro vinha como vinha Beto Guedes “Quando entrar setembro e a boa nova andar nos corpos” Colocou um perfume novo, e levou um pouco, num frasco, para colocar quando estivesse quase chegando na sua casa, porque era longe e iria a pé. Outro irmão, que não o anjo da guarda, tinha motocicleta, e foi visitar os pais naquele dia, veio vindo e parou a dar-lhe carona. Não era de muita conversa. O anjo conversava mais. Talvez pra descobrir coisas. Queria saber quando, e se pretendia casar. Tomamos banho juntos, tirando água do barreiro, nos vimos nus, e acabou revelando a irmã do dote sexual do cunhado. 

À festa ficamos os três à mesa na discoteca. Bebemos muito, o anjo acabou dando-lhe um beijo na boca. Pegou-nos de surpresa. Estupefatos ficamos. Disse pra não ter ciúme, se amavam, sempre se amaram. Muitos anos se passaram, os enamorados se casaram. E o anjo também casou, o tempo passou e o anjo adoeceu, e não tinha melhora e morreu. Internado no Sanatório em Maceió morreu. Era madrugada e veio acordar-me pra dizer que cuidasse dela. Chorando acordei, acordei-a e contei a ela. 

Ainda agora sinto a sua presença. Enquanto escrevo, e mesmo quando realizo alguma tarefa em casa, lá estar ele. Não tenho mais receio, a gente se acostumou um com o outro. O vulto que passa de um cômodo pra outro, o halo frio, as vezes morno que sopra sobre meu ombro, no meu ouvido, sei que é ele, o anjo dela. Não tem aura de luz, não é nada do outro mundo. Apenas anjo do jeito, da cor de gente. 

Fabio Campos

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