Cisne Branco

A Praça é do povo. Não a do poeta Castro Alves, de Salvador. Refiro-me a da Bandeira em Santana do Ipanema. Está tomada pelo povo. A cidade comemorava o sesquicentenário da independência do Brasil. “-Discursarão em instantes, as autoridades: Prefeito Doutor Henaldo Bulhões Barros, Major Estevan, Pastor Bonfim e o Padre Cirilo!” Falava solene o locutor. A maçonaria, rotaryanos e Leoninos, todos à praça. Alunos da Escola Bacurau gagueja um jogral, é uma homenagem. 

Uma aluna do grupo Escolar Padre Francisco Correia. Leva um ramalhete de flores. Ela se faz baliza da Banda do Exército. Na frente da Toca parou. Esperando alguém. Ou o momento certo, ensaiado. O povo espera curioso. A quem vai entregar aquele buquê de flores? Isso é daquelas idéias surpresa, concebidas pelas professoras, no momento do recreio. Idéia expulsa do fundo, do âmago das educadoras. Vomitada em meio aos gritos dos meninos e do cheiro nauseante de leite desnatado e da creolina, colocada nos banheiros. São dez da manhã, o sol está quente. Empinando as sombras. A menina continuava lá, estática. Boina na cabeça e luvas brancas. Farda alvíssima, de gravata e saia pregueada, azul, meias três quartos, sapatos preto polido. A banda filarmônica do 20º Batalhão, nesse instante, inicia “Cisne Branco”. A menina desmaiou. 

Momentos antes, Seu Zezinho fotógrafo, registrara a cena. A menina desmaiara. Diziam, por insolação. Outros por sede, diziam ainda, fome. Cruenta realidade, vai revelar a dúvida, início da menstruação. Manhã de setembro. Bandeirolas verde-amarela estáticas, preguiçosas. Sem a menor vontade de balouçarem ao vento, não se sentem motivadas. Falta-lhes a brisa altaneira da pátria. Além do que, cheias de reumatismo, por ficar um ano inteiro, dobradas e guardadas num saco fedido a naftalina. Nem mesmo o cadenciado, dobrado da banda, executando “Cisne Branco” as animam. Dias já se passaram desde aquele momento na praça. Olhando a foto agora, a mãe e a menina que desmaiara. Tentam identificar as pessoas captadas no flagrante. A mãe aponta: 

- Foi esse homem aqui, minha filha! Quem lhe pegou no colo. Depois que você caiu desmaiada. 

A menina observava atentamente ao seu salvador. Não o reconheceu. Engraçado, reconhecera cada pessoa, captadas na fotografia. Mesmo as pessoas com quem nunca mantivera qualquer tipo de aproximação. Mas conhecia como sendo, parte dos atores, dos que fazem o imenso espetáculo, chamado cidade de Santana. Pela primeira vez, a menina apossava-se totalmente dessa idéia que sempre tivera. Num lugar muito especial da sua mente. Quando ela, naqueles momentos, que era pra estudar, os assuntos da escola. Fechava os olhos e ia. Primeiro pensando nos acontecimentos vividos no dia a dia. Os sentimentos por cada um, com quem tivera, tinha, ou teria contato. E quando menos esperava, estava indo por um corredor longo e escuro. No final daquele túnel , sempre havia muitas portas, e tinha uma que era especial. Era essa, que ela abria. E era como sair de um cárcere e encontrar uma floresta. Havia ali um jardim exclusivamente seu. Muito sol, que não incomodava a vista, nem aumentava os batimentos cardíacos, nem fazia desmaiar. Havia ali, uma cachoeira. Era água, vista de longe, ao aproximar-se voando - Porque só dava pra chegar lá voando - Via-se que não era água, eram idéias. Ali, ao alcance da mão, a cascata de suas idéias boas. O tempo todo derramando lá num fundo de um precipício que jamais via o fim. Para onde estavam indo as suas idéias boas? Não sabe. Não importa. O que importa é que foi ali, que ela pegou aquela. A tal idéia, que a cidade de Santana vive uma, para sempre, encenação. Todos são atores. 

E o homem que a socorrera. Quem era? Tornou a dedicar novo, e mais minucioso exame à foto. Inicialmente olhando pra ela própria. Se pudesse voltar no tempo. Desejou por um segundo apenas, isso, e nem foi pelo vexame do desmaio. Seria pra corrigir a posição para o fotógrafo. Pareceu-lhe estar meio torta. E essa sua cara. Pois culpa no sol. O homem. Ele, assim como todos ao fundo a observar ela, a menina do buquê de flores. Ele traz um chapéu branco à cabeça, que lhe lembra os mocinhos dos filmes de faroeste. Isso pra ela que é sonhadora. A outra observadora, sua mãe, pondo comparação ao chapéu, diria que parecia com o homem do carrinho de sorvete, ou o agente de Endemias que visitam as casas. Não, não apenas o chapéu era branco, mas toda a roupa do desconhecido. Sua observação mais atenta, acabou por colocá-la, diante de evidências bem interessantes. Primeiro que aquelas roupas, eram roupas de época. Mas de que época? Não sabia. Só sabia que devia ser tão distante, que se perdera no tempo e na memória. Tanto, que mesmo ele estando tão diferente das demais pessoas ninguém, o dera por percebido. Destacado. A ponto de servir de chacota pelo traje escabroso. Como alguém conseguia passar tão despercebido naqueles trajes? E por que - não conseguia entender por que - só na foto, é que ficou assim tão evidente. Ela própria estava lá, e o homem naquele momento, não provocava nenhum tipo de reação, nem a ela nem a ninguém. Uma pessoa como outra qualquer na multidão. Olhando a foto agora, sua silhueta (a dela) em pé, segurando o ramalhete de flores, mesmo em destaque, passou a ser, segundo plano. O que lhe chama a atenção na foto, não é mais ela, é aquele homem, no meio do povo, todo de branco. Categoricamente, ela sabe que está diante de um mistério. Carecendo de solução. Tinha que começar a investigar. Já! Começaria pela mãe:

-Mãe! A senhora conhece o homem? 
-Que homem? 
-O da foto! 
-Que foto? 
-Mãe. O que me socorreu na praça!

-Há! Sim. Quer dizer não... Não conheço. Nunca o vi na vida. Aliás, depois que você recuperou os sentidos. Eu fui procurá-lo pra agradecer. E não o encontrei mais. Ninguém nem sabia de quem se tratava, quando eu perguntava por ele, citando de que jeito estava. As pessoas negavam tê-lo visto. Além, da cara estranha que faziam diante da pergunta. Como se eu estivesse louca. Acho que me entendiam, pelo susto que você me deu - Devia estar delirando- Deve ser isso que pensavam. 

-Mãe...Será que nós não fomos vítimas de um delírio coletivo? 
-Claro que não. E a foto? É delírio? 
-Me ocorreu uma coisa mãe... 
-O que é? 
-Depois eu digo. 
-Deixe de suspense. 

Ela, a menina. Foi até a escrivaninha onde sua mãe guardava todos os álbuns de fotos da família. Tirou-os da caixa e derramou no tapete da sala. Dedicou-se a observar fotos. As que lhe interessavam: Eventos registrados em público. E suas suspeitas foram se confirmando. Uma a uma. Nas fotos que aparecia público. Muita gente aglomerada. Lá estava ele. O homem todo de branco com seu chapéu. Não tinha como duvidar que fosse ele. A estatura. Cor da pele. E nunca, a máquina que o fotografava, pegava-o desprevenido, distraído. Ele estava sempre, olhando pra câmara como quem dissesse: -Estou aqui! –E mais nessa! -E nessa outra! A menina estava lívida. O homem aparecia em fotos do século passado, numa procissão de Senhora Santana em 1817. No sepultamento de sua tetravó 1895. Fazendo as contas, ele devia ter perto de duzentos anos. Como isso seria possível. Outra coisa lhe ocorreu. Avançou ávida para os velhos livros de história. E novamente a consulta. E nova confirmação. Lá estava ele. No lançamento do Zepellin, na França. No meio dos Confederados (Ianques) vencedores nos E.U.A. Na construção do Canal de Suez no Panamá. Na inauguração de Brasília próximo a Jucelino. No sepultamento de Getúlio Vargas. E mais uma vez na praça da Bandeira, na velha revista O Cruzeiro. Tentando ver também as cabeças dos cangaceiros ali expostas. 
A menina nem se dera conta do tempo. Devia ser, umas três horas da tarde. Alguém bateu à porta. Lá foi a menina ver quem era. Abriu só o postigo da porta. Não viu ninguém. Ia fechar. Percebeu que era um menino pequeno. Viu só, parte de sua cabeça. Teve que abrir a porta toda. O menino segura um buquê de flores. 

-O que é menino? 
-Um homem mandou entregar aqui. 
-Como é ele...Todo de branco?! 
-Um Hum!

                                                                                                                                            Fabio Campos

Discursos, Delírios, Loucura

Praça do obelisco, um homem sentado a um banco. Se Drummond, o poeta, tivesse nascido santanense, talvez, quisesse ali, sua estátua. É simples, pequena, mas arbórea, como toda praça deve ser. Fica meio escondida. Tantos passam insensíveis, nem se dão conta dela. Tímida, recatada, não se impõe como praça. Mas tem obelisco. Para tapar a boca dos difamadores de praça: - Ela ostenta um Obelisco, viu! E é, o cartão de entrada do Comércio de Santana do Ipanema, de quem vem para o centro, pela Avenida Coronel Lucena Maranhão. O homem tem um livro à mão. É um livro de poemas. Abre uma página, aleatoriamente e lê, mentalizando as palavras: 

"Navegar é preciso; viver não é preciso". 
Fernando Pessoa 

Nos versos do poeta português, "preciso" refere-se à exatidão, diz o livro. De fato, viver é tão imprevisível. Ontem mesmo, não estava o homem, tão apreensivo, como agora. Algo o preocupa. Espera alguém. Alguém que talvez não venha. Tira cigarro e fósforos do bolso. Acende um, pensativo! Em que pensa o homem? É pouco mais de oito da manhã. Olha e admira-se da ousadia de um casal de pardais, que vêm até bem perto de onde está. Brincam, esvoaçam, rodopiam, e se permitem a algazarra, sem se importar com sua presença, afinal, quase imóvel. O sol derrama seu calor e sua luz ofuscante pela praça. O obelisco visto assim resplandecente, espetando o céu, poderia perfeitamente ser comparado a espada de Zeus, como se emergida das entranhas do calçamento da praça. O homem pensa na amada que não chega, é bem provável que não venha. Se não vier está tudo acabado. Consulta o relógio sem intenção de saber as horas, apenas para ter com que ocupar as vistas. Acompanha o movimento compassado e preciso dos ponteiros. 
Seu pensamento já está ocupado, totalmente preenchido. Não há espaço para mais nada, além dela. Rumina palavras que dirá, se ela vier. Repete frases mentalmente. Muda algumas palavras. Percebe que pode alterar o sentido da frase. Talvez possa ser mal interpretado, pensa. Não pode esquecer nada, de cada coisa que pensa em dizer a ela, que não chega. Lê outros Versos: 

 "O pensamento é triste; o amor, insuficiente; e eu quero sempre mais do que vem nos milagres". 
Cecília Meireles 

A praça até então calma, muda de cenário. Alguns estudantes que gazetearam aulas, chegam fazendo burburinho. Falam alto, gritam, dizem palavrões entre eles mesmos. O homem perde a concentração. Não é mais só pensamento. Agora virou espectador. Analisa como àqueles se divertem, uns à custa dos outros. Acha bela a juventude, mas só nos outros. Em si não achara nada interessante, quando ele próprio era adolescente. Chato a condição de submissão aos pais, não ter liberdade. Chato ver o próprio corpo mudando, sem nada poder fazer. Impotente diante do inexorável, e emaranhado, fatores biológicos. As espinhas no rosto. Chato achar o próprio pênis pequeno, ao ponto de ter vergonha de despir-se junto aos outros meninos nos banhos lá no "Panema". A necessidade vexatória da circuncisão. Os sonhos eróticos. A primeira ejaculação nos lençóis. O excesso de masturbações, por ter visto a vizinha tomando banho nua no quintal. Mais versos lhes vem aos olhos: 

"Meus olhos se abriam insones como flores no escuro. Até que, longe, no horizonte, eu via." 
Mario Quintana 

Rememora o último encontro com sua amada. Pensa na discussão que tiveram. Tinha certeza que tivera razão. Ela não o entendia. Não adiantaria continuar o namoro com alguém que não o entendia tão desconcertantemente. Afinal porque brigaram? Não quer se martirizar remoendo os fatos que levaram a briga. Já reprisara milhares de vezes e sabia que tivera razão. Ela é que é cabeça dura. Talvez nunca tivesse gostado dele, nunca! Naqueles anos todos de namoro. Onde já se viu uma namorada após uma briguinha de nada, uma discussão boba, abandoná-lo às próprias reflexões, e ir concomitantemente pra uma festa, em outra cidade com as amigas? Deixando-o jogado as traças, sem ter com quem desabafar. Ela tinha sido muito incompreensível. E lá estava ele, rememorando os fatos. Precisava ocupar a mente com algo mais que aqueles pensamentos, enquanto ela não chegava. Versos do livro lhes socorriam: 

"De repente, não mais que de repente. Fez-se de triste o que se fez amante ...". 
Vinícius de Moraes 

Pensou em um mundo distante. De Elfos e Ninfas, saídos da mitologia grega ou romana. E que talvez aquela pracinha já não estivesse mais em Santana do Ipanema. Imaginou-a, tele-transportada pra um lugar tão distante, no tempo e no espaço, que remontaria a Era Antiga, quem sabe na Grécia. E que ele, talvez fosse um daqueles senadores discursando em público, no púlpito. Em nada tinha a ver com os senadores de hoje em dia. Corja de ladrões! Ladrões, duplamente, triplamente qualificados. Roubam consciências de pessoas. Mas há os que se deixam roubar também. E imaginou-se um grande orador. E fez pose de orador. E de braço erguido recitou em alta voz, poesia de Lêdo Ivo, que sabia de cor: 

"Cala-te boca! Mas como posso calar se até as pedras da rua falam e gritam sem parar"? 

O homem descobre-se uma pessoa poderosa, sabedora de coisas. Eloqüente, conhecedor de verdades que jamais imaginasse conhecer. Vê-se na obrigação de dizer coisas ao povo. De esclarecer verdades escondidas. Verdades maceradas, engessadas, mumificadas, adormecidas dentro de baús velhos, como aquele bem grande, existente no Museu Darras Noya. Talvez aquele nem fosse ainda suficientemente grande para guardar tudo. É tanto, o que está escondido, oculto. As pessoas lhes parecem alienadas, mas será que todos o sabem, dessa condição, e assim procedem por aceitar tal situação? Teriam sido levadas, arrastadas e ludibriadas a isso? Viu-se, na obrigação de descobrir e esclarecer. As pessoas de Santana do Ipanema pareciam alienadas, ou seria ele, o único alienado ali? Bem que sabia disso. Só não dera muita vazão a sua idéia, mas o sabia. Talvez tivera um sonho assim: Em que via Santana, como cidade cenográfica. Todos, atores. E se alguém, se desse ao trabalho de olhar por trás das casas, encontrariam: Maquiadores, figurantes, contra-regras. Equipamentos de filmagem. Os transeuntes, o gari, o motoqueiro, o menino tomando sorvete, a velhinha indo à igreja, tudo encenação. O poeta que recita poesia na praça (no caso ele) também, parte do espetáculo, fazendo sua cena no show da cidade. 

"Aqui, ó Ninfas minhas, vos pintei todo de amores um jardim suave; das aves, pedras, águas vos contei, sem me ficar bonina, fera ou ave." 
Luiz Vaz de Camões 

Os estudantes fizeram anarquia dele. Para ele, era como se fosse o povo a lhe ovacionar num antigo anfiteatro. Quem sabe, em Roma, ou na Grécia. Estaria ficando louco? Precisava por fim aquilo tudo. Talvez o melhor fosse suicidar-se. Trazia comprimidos de cianeto no bolso, para o caso de resolver tomar aquela decisão. Se fosse preciso, mil vezes faria, sem hesitar. Melhor cortar os pulsos. Quem sabe pular da ponte. Expunha-se ao ridículo, assim, tudo por culpa dela. Já não gozava de perfeita faculdade mental. Talvez sua família o internasse num asilo de loucos. Não estariam fazendo nada mais do que o correto. Considerava-se uma ameaça à ordem pública, ou a segurança nacional, ou quem sabe, provocasse uma terceira guerra mundial. Delirava, suava frio. Não conseguia ouvir mais as pessoas. Todos pareciam espantalhos. Pareciam avançar sobre ele, flutuando. Tudo feito geléia, derretendo àquela temperatura sufocante. O sol lhes encandeava a visão. Esse sol com certeza é um novo sol, não mais o de manhãzinha. 

"Vou-me embora p\'ra Pasárgada. Aqui eu não sou feliz" 
Manoel Bandeira" 

O homem da praça parece dopado, sob efeito de alucinógeno poderosíssimo. - Edilmar! A voz lhes chega, como se estivesse no fundo de um poço úmido, escuro, profundo. É ela, chama-lhe pelo nome. Tenta em vão recompor-se. Percebe-se com a cabeça apoiada ao colo da amada, no banco da praça. Está cercado de pessoas. Curiosos haviam se aproximado e ao vê-lo recuperar a consciência começam a dispersar. Será que recobrara mesmo a consciência? Não tinha tanta certeza disso. Já não se sentia o mesmo Edilmar, aquele que chegara ali pela manhã sozinho e pensativo. De uma coisa tinha certeza, que era agora outra pessoa. E saiu dali com uma convicção maior do que o amor da amada restabelecido. Precisava fazer algo pelo povo. Candidatar-se-ia, a vereador. 
Veio o pleito eleitoral. E ele se elegeu. E continuou ganhando por vários mandatos seguidos. E agora o chamavam de louco. E disso, ele ria. Um riso largo, alucinado como o de João Urso, de Breno Accioly. 

Acabou descobrindo que o conhecimento científico-filosófico, tão avidamente buscado, deixava-lhe por dentro, um grande vazio. Uma sede de uma outra sabedoria, só existente nas Escrituras Santas. Um vazio existencial em seu coração, nunca antes preenchido. Nem mesmo pelo amor da mulher amada. E na sua retórica impregnada de acidez, aos de comando. Entremeada de loas e rebuscamento aos paladinos de justiça. Do parlatório na assembléia dos nove exalava por todos os poros, inflamando a urbe, pelo fio do microfone: 

-Hipócritas! São todos, hipócritas!

O Vaso Branco

Ele parece um jarro, se prestaria divinamente bem, para enfeite de mesa ou centro. Não é de porcelana. É de cimento branco, esmaltado. Não é raridade. Nem relíquia o é. Valor? Meramente estima, de família. Desenho mais simples impossível. É um Vaso Branco e só. Um vestígio, 1917 – Pozanni. Traz essa identidade imprimida ao fundo, por fora. Essa informação, pode nada dizer, sob as vistas de um observador comum. Não é esse o nosso caso. 

A família Pozzani chegou da Itália em 1912. Correndo da primeira guerra mundial. Aportaram no porto de Santos. Trazendo na bagagem muita esperança pela nova pátria escolhida para morar. Iniciaram a produção de peças de cerâmica: Xícaras, pratos, vasos, escarradeiras, urinóis, etc. Fixaram residência na região de São Bernardo do Campo. A colônia italiana muito prosperou. Foi exatamente ali, confeccionado pelas mãos dos irmãos Dominni e Rafaelle, com seus filhos e esposas, que nosso Vaso Branco nasceu. Um vez por mês, o agricultor paulistano, Antonio Donizeti vai a capital paulista, na sua caminhonete Ford, leva uma carga de peças de cerâmica dos Pozzanis. Numa dessas cargas, seguiu forrado com pó de serra, em caixas de madeira, o Vaso Branco. As peças chegaram a capital paulista. Mais precisamente no bairro do Bexiga. Dali, vão parar nas prateleiras do Armarinho Dragão Chinês, do senhor Lee Jun Fan, um japonês que chegou em São Paulo nos porões dos navios, também correndo da terrível guerra. Veio sozinho depois chegaria os demais membros da família. E vários armarinhos a família próspera abriria. Inclusive no bairro da Liberdade e na Central do Brasil. Onde existe até hoje. Talvez a quarta ou quinta geração do senhor Lee. 

O nosso Vaso Branco. Ficou só quinze dias de sua recente existência, encalhado na prateleira do armarinho do japonês na filial da Central do Brasil. Um jovem rapaz jornaleiro chamado de Paulo Jorge, que morava num velho casarão próximo a rua Direita, comprou-o para dar de presente a sua tia Doralice. Que viera embora da Bahia com a família, marido e filhos pra morar na Augusta. Seu marido era José Pedro, um pedreiro alagoano. Veio disposto a trabalhar nas lavouras de café, ou quem sabe na produção de vinho no interior do estado. O Vaso Branco passaria só três anos mais no estado de São Paulo, em que nascera. Num dia qualquer do mês de abril de 1920, Doralice ficou viúva. E com seus três filhos resolveram fazer o caminho de volta pra Bahia. Um irmão dela que era comerciante na Vinte e Cinco de Março. Se propôs, levá-la, no seu caminhão Chevrolet, com sua mudança. Conseguiu o combustível com um compadre deputado estadual. Uma troca de favor. E o Vaso Branco muito bem acomodado, num baú de madeira, sobre dois travesseiros enrolado de cobertor. Faz o longo percurso do sudeste até o nordeste. Vai parar numa casinha de taipa na zona rural de Feira de Santana. 

Doralice não ficou muito tempo sozinha, arranjou outro companheiro. Desta vez um agricultor sexagenário. Com ele teria mais três filhos. Um dos filhos de Doralice do primeiro casamento, chamado de Paulo Roberto, o mais velho dos três, com dezoito anos agora, casou-se com uma sergipana chamada de Rosalina. Já estamos em 1928. O jovem casal vai morar na terra natal de Rosalina. Na cidade de São Cistovão. Sua mãe deu ao filho como presente de casamento, o Vaso Branco. Rosalina viveu só dois anos com Paulo Roberto. Por causa dos ciúmes dele, o casal brigava muito. Só tiveram um filho. Paulo Roberto voltou pra Bahia. Foi pra região de Ilhéus, trabalhar nas lavouras de cacau. E Rosalina foi pra casa de uma tia em Neópolis. Levou consigo, o filho e os cacarecos que possuía. Coube tudo num carro de boi. Enrolado no colchão, ia as coisas frágeis: pratos, garrafas e o Vaso Branco. Estamos em 1930, agora. Em Neópolis a tia de Rosalina é dona de um bordel. O filho dela, foi adotado por uma amiga da sua tia que não tinha filhos, era estéril. A tia de Rosalina, que chamava-se Isaura, admite sua sobrinha, agora sem marido e sem filhos, como meretriz no seu bordel. O Vaso Branco foi parar na prateleira do Bar do Bordel. Ficou ali até 1934. Como foi que saiu dali? Assim: Um soldado da polícia sergipana, que era natural de Alagoas. Mais precisamente da cidade de Porto Calvo. Fez uma aposta com dona Isaura numa partida de pôquer. Se ele perdesse, daria seu revólver pela dívida monstruosa, de bebidas e fornicações não pagas. Feitas fiado, à muito sem quitação. Caso ele ganhasse, sua dívida deveria ser perdoada, com crédito pra novas farras. E olhando pra prateleira exigiu: Se eu ganhar quero como troféu, aquele Vaso Branco. Isaura falou que não era dela, pertencia a Rosalina. Ele não se fez de rogado, complementou, pois também, é com ela que passarei a noite hoje, se ganhar. E o Vaso Branco foi, numa manhã de um dia de domingo, no banco traseiro, da viatura da polícia, parar em Porto Calvo. Na casa do soldado de polícia. Que trabalhava em Sergipe. Estamos em 1935. 

O soldado que chamava-se Rogério, tinha uns primos também soldados, só que em Alagoas, que moravam em Maceió. Estes, o visitava uma vez a cada seis meses, pelo menos. Na última visita ficaram sabendo que haveria uma permuta entre as polícias dos dois estados. Com a intenção de capturar Virgulino Ferreira “O Lampião”. O soldado Rogério foi transferido para o sertão de Alagoas. Foi para Delmiro Gouveia. Levou a família, tudo que possuía. E acomodado no meio de uma trouxa de roupas, o Vaso Branco. Rogério continuou no novo endereço, com os velhos hábitos. A dona do Bordel de Delmiro Gouveia, chamava-se Marcolina. Também a ela o soldado de polícia contraiu uma dívida considerável. O soldado observou uma particularidade ali. Dona Marcolina era colecionadora de peças de porcelanas e cerâmicas de todo tipo, formato, cor, estilos e raridades. Lembrando-se do episódio de Neópolis. Vai Em casa e resgata o Vaso Branco, e nova (mas antiga pra ele) proposta de aposta. Desafio aceito. Desta vez o soldado perdeu. E ele, o Vaso Branco. Foi fazer parte do acervo da colecionadora Marcolina. Estamos em 1936. 

Certo dia chega ali naquele bordel um homem bem trajado. Paletó, gravata, chapéu Panamá. É jogador de baralho profissional. Fica vários dias, tentando conseguir reservas para manter sua vida boêmia, chama-se João de Santana. Ganha uma boa soma de dinheiro na mesa de jogo. Uma semana depois que estava ali, resolve ir embora. Ao ver a coleção de Marcolina fica fascinado. Propõe comprar várias peças, mas Marcolina frustra sua intenção dizendo que não estão a venda, todas, têm valor de estima. Menos uma, a que ganhara em aposta de um soldado: O Vaso Branco. João compra-o então, pra dar a uma pessoa especial que conhecera em Olho D’agua das Flores. E o Vaso Branco foi parar na casa de Dona Amância, mãe de Dineusa uma menina de treze anos, por quem João de Santana estava apaixonado. Certo dia, Seu Tomaz e Dona Amância, os pais de Dineusa ficaram sabendo que Virgulino Ferreira “O Lampião” estava chegando para saquear a cidade de Olho D’agua das Flores. E eles fogem de casa para uma trincheira na caatinga. Dineusa pega alguns pertence seus e lembrando-se de João de Santana, leva também o Vaso Branco. O Lampião foi-se embora, não sem deixar antes, seu rastro de sangue de inocentes. E o Vaso Branco voltou pra casa de Dona Amância com um pequeno desfalque, perdera a pequena tampa que possuía. Tudo culpa de Lampião. Em vão a menina Dineusa, voltou ao lugar pra procurar o acessório, do Vaso Branco. 

Dineusa casou-se com João, e foram morar em Santana do Ipanema. Era o ano de 1942. Muitos anos se passaram. E na estante da casa de Dineusa como a se perguntar: Quanto tempo será que permanecerei aqui? O Vaso Branco. Estamos em maio de 2010.
Ele p 

As Doze Parábolas

Zé Cajé Alencar, sabendo-se um homem canceroso, em estado quase terminal. Resolveu dar uma festa. Pensou. A vida inteira, vivera, quase sem sair de Santana do Ipanema. Chegara aos oitenta anos de idade, e por todo esse tempo, se ocupara apenas em acumular bens. E constatava, com certeza dose de tristeza, que agora, infelizmente, os recursos que tanto e tanto possuía. Não lhe servia, infelizmente, para lhes dar, o bem que mais cobiçava no momento, sua saúde restabelecida. Para despedir-se da vida, dos amigos e de alguns, não tão amigos assim. Resolvera que o melhor a fazer, era convidar a todos, para uma festa de confraternização. De forma que tentava, como recurso derradeiro, num esforço findo, redimir-se com o Criador e deixar, ao menos de último, uma boa impressão aos que compartilhara com ele, dos percalços da sua turbulenta existência. Ele próprio se considerava um homem difícil. Quer fosse, na vida conjugal e familiar. Ou, na vida social e de relacionamentos meramente comercial. 

E é chegado o grande dia. Escolheu o salão do Tênis Club Santanense para o evento. Os convidados, aos poucos, chegaram, um a um. Meio ressabiados. Preparados para uma possível surpresa. Daquele velho ranzinza, tudo podia se esperar, todos o sabia. Cedo chegaram, o padre, o pastor, e o tabelião. Em seguida, os nove vereadores, o prefeito da cidade e a digníssima primeira dama. O Promotor de Justiça e o juiz de Direito. Os amigos maçons, rotaryanos, leoninos e diversos representantes de clube de serviço. Comerciantes importantes. A imprensa e os fotógrafos, registravam tudo. Enfim, está ali a nata da sociedade santanense. Os convivas são servidos e o baile tem início. Todos buscam com seus olhares, pelo salão e pelo palco, o nosso anfitrião que faz suspense, e ali, ainda não se encontra. 

Já passava de uma hora da madrugada quando ele chegou. A banda cessou de tocar e todos ocuparam suas mesas. Devido ao estado avançado da enfermidade era conduzido em uma cadeira de roda. Expectativa geral. Ele fez-se ao microfone, com voz pesada e ar abatido, falou: 

- Senhoras e senhores!... Boa noite!... Primeiro quero agradecer, por terem atendido ao meu convite, a estarem aqui esta noite. Todos devem estar se perguntando o porquê, dessa festa. Promovida logo por um que já está “com o pé na cova”!... 

Risos geral. E continuou: 

- Na verdade, quero me redimir diante das pessoas com quem convivi toda minha vida. Reconheço que sou uma pessoa difícil...Quem sabe com isso, não ganhe uns créditos especiais ( e com o dedo indicador apontado pra cima) com o mestre “lá de cima”... 

Novos risos. Novamente ele: 

-Mas quero também, nesta noite. Propor uma pequena brincadeira com vocês!... 

Silêncio sepulcral. 

-Calma gente, não é nada grave. Está providenciado para que todos recebam um envelope, quem ainda não recebeu aguarde o garçon. Pois bem. Quero que abram. Dentro do envelope encontrarão um cartão. A brincadeira é a seguinte: A cada um, que chamarmos. Deve vir até aqui. Lê o que está escrito no seu cartão. E dizer o que quiser sobre o que está escrito ali. Ao final, proporemos um brinde. Podem ter certeza! O que acontecerá hoje aqui, será bom. Será muito bom, para cada um de vocês. Pra mim. E porque não, também, pra nossa Santana do Ipanema. 

E iniciou chamando o vereador Edmilson Edilson. Este, portou-se ao microfone, e disse: 

- Meu caro Ze Cajé! Primeiramente quero parabenizá-lo pela iniciativa de fazer esta festa. E dizer que eu sou um homem agraciado por Deus! Muitas e muitas vezes, agraciado! Fui eleito vereador desta cidade, como o mais votado, de toda a história das eleições desse município. Sou agraciado por tê-lo como amigo. E a graça maior veio sobre mim, também esta noite, ao ler o que continha o meu envelope: O SEMEADOR; Lucas, capítulo 8, versículos 11 a 15. Ora, meu caro Zezé. Vê-se aqui que se trata de uma parábola. Eu sou um homem de Deus. Medito todo dia na palavra. E sei da história; Jesus pregando em certa ocasião disse: Eis que um semeador saiu a semear. E ao semear, parte da semente caiu à beira do caminho, foi pisada e as aves do céu a comeram... 

Depois de narrar toda a parábola o vereador, concluiu dizendo que se considerava, ele próprio, a semente que caiu em solo bom, porque toda sua vida, só o bem, havia praticado. Agradeceu mais uma vez. Foi ovacionado. E retornou à mesa. E Zé Cajé chamou o segundo: 

- Convidamos o Senhor Augusto Algodãozinho. Meu maior concorrente no setor têxtil, em nosso município. 

E Augusto, leu seu cartão: 

-OS TALENTOS; Mateus, capítulo 25, versículos 14 a 28. Muito Boa noite a todos, agradeço ao empresário Zé Cajé pelo convite. Não sou tão religioso como o nobre vereador Edil, mas entendo um pouco, só um pouquinho da bíblia. Se eu não estiver enganado. E aí, eu peço desculpas antecipadas, ao padre e ao pastor, caso esteja. Essa parábola fala de um empresário, que viajava muito. E deixou uma parte de seus recursos com três empregados. E teve um desses três, que não aplicou esse recurso, com medo de perder, e de seu patrão lhe castigar. Esse empresário na certa, era assim igual a Zé Cajé... 

Risos Geral. 

Despediu-se e voltou pra mesa. 

E Zé Cajé chamou o Padre Sílvio Silva. Este, muito sorridente declarou da sua satisfação de estar ali. E leu o escrito do cartão: 

- O FARISEU E O REPUBLICANO; Lucas capítulo 18, versículos 9 a 14. Esta parábola, caríssimos, fala de dois homens que subiram ao templo para orar. O fariseu, de pé, em frente ao altar bradava suas qualidades, e apontava pra o Republicano acusando-o. Enquanto que este, mal ultrapassara os batentes do templo. Tinha o corpo ao chão, e baixinho pedia apenas misericórdia, por ser um pecador. E Jesus conclui dizendo que este último, voltou pra casa justificado. Porque quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado. São palavras de salvação! Glória a vós senhor! 

Aplausos geral. E o vigário retomou seu lugar à mesa. Zé Cajé chama o pastor Bonifácio Benvindo: 

-Bom noite meus irmãos! Gente, será só coincidência? Vejam só o que tem no meu cartão: O BOM PASTOR; João 10, 1 à 6. Foi de propósito mesmo, Zé Cajé? 

Risos. E o pastor continua: 

-Pois bem. Em verdade em verdade vos digo, quem não entra pela porta, no aprisco das ovelhas, mas entra por outra parte, é ladrão e salteador. O pastor abre a porta, ele chama as ovelhas pelo nome, estas reconhecem sua voz e seguem-no. E não ouvem a estranhos! Aleluia irmãos?! Irmão Zé Cajé, Jesus é o bom pastor, e vos sois a ovelha que ele chama, atende teu chamado irmão!... 

Zé Cajé. Interveio. 

-É pastor! Ele está mesmo me chamando. E que chamado, Enh?! Não vai demorar muito, vou ter que ir mesmo, né? 

Novos risos da platéia. E chamou o doutor Placidônio Pacheco, Juiz de Direito. 

- O JUIZ INJUSTO; Lucas, capítulo 18, versículos 1 à 8. Agora, pastor Bonifácio, acabamos de ter a certeza que é de propósito. Público aqui presente meu muito, Boa Noite! A leitura da bíblia, pra mim foi mais por uma obrigação do curso de Direito. E dessa parábola eu jamais poderia esquecer: Conta de um juiz que não atendia as súplicas, de uma pobre viúva, que pedia justiça. Tempos mais tarde, pra se ver livre da coitada, ele a atende. Assim é o reino dos céus. Suplicamos e parece que Deus não nos ouve. A justiça de Deus é diferente da dos homens, tarda, mais não falha! 

Apupos para o juiz. E Zé Cajé chama o doutor Felisberto Felix Promotor de Justiça. Que se faz ao microfone: 

-O BOM SAMARITANO; Lucas, capítulo 10, versículo 25 a 36. Boa Noite a todos e todas! Assim como Doutor Pacheco, ler a Bíblia pra mim, foi por ossos do ofício. No colegial, fugia das aulas de religião. Creio que essa parábola é conhecida de todos. Um homem foi assaltado, ficou na estrada moribundo. Todos passam e nada fazem, só o Samaritano o socorre. Se for de propósito, Zé Cajé, consideramos sim, o Ministério Público a casa do bom Samaritano. 

Foi aplaudido. Retornou pra mesa. E Zé Cajé chamou em seguida: O Doutor Veridiano Veras, presidente da Câmara de vereadores, em cujo cartão lia-se: A VIDEIRA OS RAMOS; João, cap. 15, Vs. 1-8. Logo em seguida, foi a vez de outro vereador Adonias Dias, o popular “Moto Bôi”, ex-presidente da associação dos mototáxicistas, o seu assessor foi quem leu, ao microfone o que tinha no seu cartão: A OVELHA PERDIDA; Lucas cap.15, VS. 3-7. Nada falou da parábola. O vereador pedia desculpas, através dele, pois estava afônico. Agradeceu,e ensejou a todos, uma Boa Noite. Hiran Iridônio, empresário, dono da maior rede de lojas de eletros e supermercados “A Preciosa”: O RICO E LÁZARO; Lucas,cap.16, VS. 19-31. O vice-Prefeito, senhor Marcondes Macário tinha o cartão com: O FILHO PRÓDIGO; Lucas, cap. 15, Vs. 11-31. Disse que muito se identificara com a parábola. E que o fato de estar hoje desentendido politicamente com o senhor prefeito, não o considerava inimigo, de forma alguma. E pra finalizar, foi a vez do senhor, Adenail Adenildo Prefeito Municipal que tinha no cartão a parábola: O ADMINISTRADOR INFIEL; Lucas, cap. 16, VS. 1-13. O prefeito confessou ser leigo no assunto. E quem o salvara naquela ocasião havia sido a esposa. Em poucas palavras narrou sua versão. E concluiu dizendo: 

-Zé Cajé, cão danado, depois que tu adoeceu, virou santo foi? É festa! Palavras de Jesus! 

Zé Cajé retomou ao microfone e declarou: 

-Bem! Estamos chegando ao final da festa pessoal. Doze foram os que vieram aqui pregar as parábolas. Doze apóstolos, tinha Jesus Cristo. Tirando Adonias, que não veio, mandou o secretário. Esse é nosso Judas. Quero que os doze, todos venham até aqui no palco. Proponho um brinde. 

Uma bandeja com doze taças circulou entre os que estavam no palco. E Zé Cajé Alencar, providenciou uma grande garrafa de champanhe verde escura. Abriu-a com um estampido. Encheu os copos dos doze. Providenciou uma taça para si, e também a encheu. Exigiu que todos brindassem, tocando as taças, de uma vez só. E assim o fizeram. Tudo fotografado, ato contínuo, levaram a taça à boca para sorver o líquido, todos ao mesmo tempo. Talvez, trinta segundos tenha sido o tempo decorrido até que começassem a cair no palco. Um a um, os doze. Mortos. 

A foto, estampada no jornal de Alagoas, no dia seguinte, trazia Zé Cajé, erguendo uma taça com champanhe, tinha no rosto um olhar diabólico e um largo sorriso na boca. Tendo aos pés doze cadáveres. Letras negras e garrafais anunciava a manchete: “Empresário de Santana do Ipanema. Mata doze envenenado”. E em letras menores, “ Ele disse que o fez, em nome de Jesus”.

A Botija da Furna da Onça

O Local

Nas terras a noroeste da vila de Santana, um maciço se destaca. O Serrote da Furna da Onça. A elevação sedimentar é encimada por um magnífico penedo. Enegrecido, úmido e o musgo que o recobre, indica ali, a presença duma nascente. Descortina-se ante quem, coloca-se ao cimo, de esplendorosa paisagem, até aonde a vista alcança, um vale recoberto de mata nativa. Clareiras esporádicas, revelam a presença de construções, são as rústicas fazendas. Duas delas, do sopé da montanha, se encontram mais próximas. A fazenda dos Rêgos, esta margeia a estrada que leva a Pernambuco. E a fazenda dos Vieiras, distante da outra quase uma légua, fica no sentido contrário, e leva a vila de Santana do Ipanema. Justamente pra aquelas bandas, a torre da igreja, se eleva, e uma nesga, de nuança vária, assinala a presença buliçosa da urbe. 

Origem do Nome 

Os primeiros causos que determinou o nome da gruta, vem do tempo dos escravos e dos índios que habitavam a região. Histórias de uma onça afamada. Histórias contadas nas senzalas, passadas de pai pra filho, e que chegaram aos nossos dias. A onça na boca dos contadores de causos, adquiria proporções descomunal. Agigantada no porte físico, e nas peripécias praticadas pra escapar das armadilhas dos fazendeiros. Pelas conotações atribuídas ao animal, acabariam por torná-la uma lenda viva. A caverna do serrote era onde se refugiava. Só saindo à caça, protegida pelo manto negro da noite, fazendo sua presa, gado bovino, gado miúdo de lã e homens. 

Primeira Versão sobre a Botija 

Conta que um preto velho, de cento e dois anos de idade, na hora da morte, teria chamado o dono da fazenda, o senhor Pedro Vieira, e teria confidenciado um segredo que guardava consigo desde quando era, um jovem escravo ainda. Eis a versão do escravo centenário, moribundo, seu tetravô contou-lhe também na hora ultimada, que um grupo de corsários teria atacado a fazenda de um rico fazendeiro da tradicional genealogia dos Rêgo. Os salteadores teriam feito a todos, reféns, e assassinado o patriarca da família. Teriam levado consigo, armas, mantimentos e objetos valiosos. Junto a esses despojos, seguiu muito cobiçado pela corja, uma arca contendo muitas pedras preciosas e moedas de ouro. Ao se arrancharem num determinado lugar, para o pernoite. Um dos corsários teria matado todos seus companheiros, enquanto dormiam, e fugira para a gruta da onça. Ali enterrando a botija, intencionando voltar noutra ocasião pra pegar. Acontecendo do mesmo, nesse maldito retorno, teria acabado presa do felídeo. Tornado-se alimento da pintada, antes mesmo de desenterrar a botija. A alma desse infeliz ficou vagando pelos arredores da furna. Dizem que em dia de finados, quem tiver coragem de ir até lá, à meia-noite, enfrentar a onça, e acender-lhe uma vela. Em aparição, ele revelará o local da botija, pra finalmente descansar em paz. 

Segunda Versão

O velho capataz, da fazenda de Seu Ferdinando Rêgo, costumava contar em noite de lua cheia, quando o lobo-guará uivava pras bandas da furna. Ou em noites de tempestade a beira do fogo, quando um urro grotesco costumava ser ouvido, junto com os estalidos dos trovões e o flamejar dos relâmpagos lá no serrote. Que a história da botija, vem, de quando as terras da fazenda eram ainda sesmaria. E foram divididas, pelo então donatário da capitania de Pernambuco Duarte Coelho, entre o senhor Frederico Rêgo e o senhor Epaminondas Vieira. As terras que deveriam ser doadas a apenas um colono, acabou ficando pra dois. As duas famílias, por conta dessa repartição, criaram uma intriga. E qualquer coisa era motivo pra brigas. A onça participava na história, pois atacava o gado de um, e de outro fazendeiro. E eles se acusavam. Punha a culpa, um no outro, pelo sumiço de cabeças de reses. Os anos se passaram. As famílias se acertaram pra um confronto. Decidiriam em combate, quem tomaria conta das terras toda. Não dava pra persistir naquele entrave, que vencesse o melhor. E se preparam pro confronto. Muitos jagunços de ambos os lados. No meio do tiroteio, o velho Frederico, sentindo que ia perder a batalha, foge até a furna da onça. Leva consigo, um baú cheio de pedras preciosas e dobrões de ouro. A onça ataca-o, e ele craveja em seus olhos, duas pedras preciosas, cegando-a. Ferido de morte o fazendeiro perde o equilíbrio e cai no precipício. Muitos anos se passaram. Dizem que todo aventureiro que por ali se arrancha em noites invernosas. Foge apavorado de medo, ao ouvir o uivo de dor da onça, ou seria do velho, caindo no abismo? Se olhassem para trás, com certeza veriam, os olhos de ricas pedras incandescentes, da fera, brilhando na escuridão. 

Terceira Versão

Esta história, será sempre a menos contada. Mas é, a que mais gostamos de ouvir. Só os mais velhos têm coragem de contá-la. Assim mesmo, só quando se embriagam são capazes de pô-la, a narrativa. É versão vexatória. Mácula de família. História contada tão ligeiro que mal se sabe de onde saiu. E ninguém se atreve a perguntar de quem ou de onde partiu. Conta, que a esposa do fazendeiro Praxedes Vieira, uma senhora muito bonita, que era em idade, muitos anos mais nova que seu companheiro conjugal. Dado que, um dos filhos de seu arqui-rival Durval Rêgo, dera pra deitar em segredo, interesse por aquela matrona, mesmo sabendo-a, propriedade de quem era. O romance secreto se concretiza. Através de cartas trocadas, levadas por jagunços de confiança de ambos, eles combinam um encontro. Praxedes, raposa velha, acaba desconfiando, e em surdina, investiga. O fazendeiro, acaba descobrindo a traição, no seio do seu enlace matrimonial. Depois de flagrar sua companheira em adultério. Teria então, pego a mulher a pulso, e levado até a furna da onça. Era uma noite medonha, coberta de uma densa névoa e uma ventania gélida soprava do leste, avisando ruína. Uma vez à gruta. O fazendeiro teria feito sua esposa despir-se. E a ela, totalmente nua, teria aplicado-lhe severa surra de chicote. Deixando suas costas em carne viva. Ainda teria untado, todo seu corpo quase inerte, com sangue de boi para atrair a onça. O que não demorou muito a aparecer trazida pelo cheiro forte. E enquanto o feroz animal atacava sua esposa, devorando-a viva. Ele aproveitava para enterrar no interior da gruta, a botija de ouro. O tesouro que ele tanto confiara a ex-esposa infiel, confiava à guarda agora, a outra fera ainda mais bonita e perigosa. Dali se ausentando. De volta à fazenda, teria dito aos filhos que a mãe deles, enquanto banhava-se no arroio da grota , fora vítima da onça. Teria ido em seu encalço, mas sem lograr êxito. 

A Verdade

Os filhos nunca acreditaram na história do pai. Só se aquietaram quando souberam a verdade, que não demoraria a vir à tona. O rapaz que punha traição ao casamento do fazendeiro rival. Denunciou-lhe pelo assassinato de sua amante. Ela, que vagava sem descanso, teria aparecido-lhe em sonho e contado tudo. Não foi difícil provar, ele ainda tinha consigo as cartas. O fazendeiro Praxedes, sentindo-se aviltado em sua moral de nobre fazendeiro, encarregou-se de matar o amante de sua esposa. Um dos filhos, cheio de ira e revolta, matou o próprio pai. Pondo vingança a mãe, ao tempo que livrava a família tradicional, do vexame de ter o seu patriarca preso. Agora, dois irmãos, iriam em busca da tão sonhada botija, herança familiar. Um dos irmãos Vieira, o assassino paterno, decidiu que cada um seguiria só. Quem conseguisse encontrar primeiro, ficaria com tudo. Decidira assim porque estava em vantagem, ao sepultar o pai, teria encontrado, entre seus documentos, o mapa do local da botija. Adiantando-se teria conseguido chegar ao interior da gruta, e resgatara a arca preciosa. O outro desconfiou de que estaria sendo traído, ficou então a espera de tocaia. Matou o irmão, ao tê-lo sob a mira de sua espingarda à saída da caverna apossando-se do tesouro cobiçado. 

Num recôndito rochoso, a entrada da gruta, ocupou-se em sepultar seu ex-fraterno. Quando colocou a última pedra escondendo o despojo de seu sinistro ato, já era quase noite. E simplesmente, foi ele, tragado pela escuridão daquela noite fatídica, tenebrosa. E ninguém nunca mais ouviu falar que fim levou, o único, que teria ficado com a botija. Quem mora nas proximidades daquela elevação rochosa. Sabe muito bem, que nas noites de lua cheia, ou de tempestades e trovoadas. Lá, à boca da Furna, o farfalhar dos pingos da chuva nas folhas das árvores e o sibilar do vento por entre os rochedos, faz ecoar por todo o vale, uma grotesca gargalhada, seguida do urro de uma onça. 

Fabio Campos

Frei Damião e o Menino

O MENINO, era o filho de Dona Carmosina. Que morava na Rua Antonio Tavares, no lado da rua que as casas dão às costas pra nascente, e tem entradas muito alta. Do outro lado da rua ocorre o contrário, o sol, primeiro bate nas fachadas das casas, e os quintais ficam olhando pro rio Ipanema. Era uma casa avarandada, com muitas plantas no jardim espremido. E eram tantas plantas que quase não se via a casa. O musgo recobria as paredes de pintura desbotada. Dona Carmosina era muito gorda. Já não podia ir mais, pras missas do padre Cirilo. As pernas tornaram-se inchadas. O triglicérides, sempre alto. O diabetes e a pressão alta, tudo descontrolado. Por tudo isso, já não ia mais as missas dominicais.

- Essas coisas - dizia ela - Começaram a aparecer depois da viuvez.

Há quatro anos que Gumercindo, seu marido morrera de infarto fulminante do miocárdio, contava com cinquenta anos de idade quando aconteceu. Ninguém nunca imaginava, um homem tão novo, não bebia, não fumava. E deu de aparecer, assim disse o médico, da última vez que ele se consultou, o começo de um tal, de mal de Alzheimer. Antes não era assim. Antes era assim: Dona Carmosina acordava bem disposta. Pela manhã acordava as duas filhas, Jacinta e Lúcia, e seu filho caçula, o menino Francisco. Seu Gumercindo, já no mundo, saía cedo a comprar pães. As meninas ficavam lindas nos vestidos iguais. As franjas e os rabos de cavalo no cabelo. O mesmo perfume. Todos admiravam como eram unidas. E todos queriam saber se eram gêmeas. Não eram. Lúcia tinha treze anos, Jacinta doze. E o menino, tinha onze anos. Este dava mais trabalho pra se ajeitar. Demorava, porque pra tomar o banho, não queria. Todo domingo, o mesmo sacrifício pra ir à missa. E os outros dias da semana, tirante o sábado, também o sacrilégio por conta da ida matutina à escola.

Quatro anos se passaram. Desde que Seu Gumercindo morrera. As meninas cresceram rápido. Já estão no colegial. O menino parou no tempo. Não saiu da primeira série primária. Nem cresceu também, continuava franzino. Como se a morte do pai, o tivesse feito parar de crescer. O que será que ele tem? Um menino já com doze anos de idade. Os vizinhos, os amigos de Dona Carmosina também queriam saber.

Aconselharam-na levá-lo a um homem “sabido” em Palmeira dos Índios. Que cobrava pelo “trabalho” somente se saísse curado. Dona Carmosina ficou bem balançada pra ir a esse homem. Porque psicólogos e psiquiatras já fora a tantos e nada. Pedagogas e assistentes sociais, pouco ajudavam com seus diagnósticos, acompanhamentos e drogas ineficazes. O que a impedia de vez, de tentar aquela alternativa de cura, era sua convicção religiosa. Católica fervorosa. Tinha fé nos santos da igreja, em frei Damião. Tinha em casa um oratório. Fez, de um dos quartos da casa, uma “igreja” particular, cheio de imagens de muitos santos, de todo tamanho. Em gravura, em gesso, resina e madeira trabalhada. E toda noite, Dona Carmosina só ia pra cama, depois que rezasse um terço ali na sua igreja caseira.

Até a Juazeiro do padre Cícero já tinha ido, de pau-de-arara, em promessa. Mas, o que de diferente, tinha o menino dos outros meninos de sua idade? Dizia ele que ouvia vozes. E via pessoas que já morrera. Dizia que conversava com seu pai. Segundo ele, vez em quando este, lhe aparecia. Na véspera do dia em que mataram o prefeito, Adeildo Nepomuceno, ele ficou muito perturbado. E teria dito à mãe, que alguém queria dizer alguma coisa a ele, mas ele não conseguia entender o que era. Nesse dia teve febre e delirava, e era visível sua perturbação. Seu Apolônio, um vizinho próximo de sua casa, não achava nada de anormal no menino. Pelo contrário considerava-o perfeito. Tanto, que sempre, pedia-lhe palpite pra jogar no bicho. E vez em quando acertava.

De todos episódios ocorridos com seu filho, tinha um, que Dona Carmosina, se consolava em relembrá-lo. No dia treze de maio, de quando ele, Francisco, fez treze anos. Naquele dia, Dona Carmosina acordara mais cedo, pra rezar o terço matinal, a Nossa Senhora de Fátima, pelo seu dia. E uma vela encheu de luz, o quarto virado em oratório. Uma luz tênue, trêmula e amarelada. Dando expressão e sobras nos rostos das imagens, principalmente de São Francisco de Assis e Nossa Senhora, milagrosamente aparecida naquela cidade de Portugal. Os olhos dos santos, vidrados na porta aberta do
quarto, para onde estavam viradas as imagens. Como que posando pra uma foto, numa pose incômoda e cansativa, em que o fotógrafo demorava-se a chegar. E eles precisavam cuidar de ir salvar almas suplicantes. Naquele dia Francisco teria dito:

-Mãe Nossa Senhora falou comigo...

-O que menino? Perguntou-lhe espantada.

-É mãe, aquela que está ali no quarto.

-E o que ela disse?

-Que a senhora tenha paciência. Não se preocupe comigo. E que a senhora continue rezando. Mas não só por mim, mas pelo povo de Santana também...

Dona Carmosina, nesse dia abraçou seu filho e chorou muito. Não diria aquilo a ninguém, nunca. Se contasse isso a alguém, iam dizer que seu filho além de doente era louco. Melhor guardar aquele segredo. As meninas reclamavam que seus colegas de escola ralhavam com elas, dizendo que tinham um irmão doido. Elas odiavam quem fazia esse tipo de comentário. Dona Carmosina fazia as tarefas caseiras cantando as cantigas e as ladainhas, tão amplamente recitadas no coral da igreja. E havia uma que muito lhe marcara quando da ida em romaria ao horto de padre Cícero:

Ó que caminho tão longe meu Deus

Cheio de pedra e areia

Valei-me meu padrinho Ciço

E a mãe de Deus das Candeias

FREI DAMIÃO, o franciscano da cidade italiana de Bozzano, por esse tempo, ainda andava nesse mundo. Segundo o próprio,, designado por Deus pra vir pregar no nosso sertão. Sempre na companhia de outro frade, cujo nome de fé era Fernando. Peregrinavam pelo nordeste brasileiro. Pregavam as santas missões. Uma versão ultimada das derradeiras ordens, descendentes de Europa. Continuidade de seus antecessores, os jesuítas: Manoel da Nóbrega, Anchieta, Francisco Correia, Capitulino, findando nestes. A ordem dos franciscanos tem uma particularidade interessante: O uso do hábito marron, cingido por um cordão branco a altura dos rins, que lembra uma vestimenta feita de saco. Sandálias de couro cru trançado nos pés, e um crucifixo preto e enorme, trazido ao peito suspenso pelo pescoço. Uso de barba, e uma auréola no alto do crânio, conseguida com a raspagem do couro cabeludo, naquela área da cabeça. Frei Damião dispensava só esta última característica. As outras, cumpria-as. O octagenário missionário, andava de cidade em cidade a pregar. A saúde tão comprometida quanto a de Dona Carmosina. Com um agravante desvio de coluna. Tão acentuado que o obrigava a andar curvado.

O sertanejo considerava-o um homem santo. Autor de milagres reconhecidamente comprovado. A ele atribuía-se milagres e também castigos. Dizem que um homem no interior de pernambucano, ao chegar em casa, bêbado. Ao encontrar a mulher se aprontando pra ir a uma missão do frei santo, ali num povoado próximo. Ele teria feito o seguinte comentário:

- Vai ver o que sua besta. Aquela outra besta pregando!

Dizem que na mesma hora, o homem virou-se num jumento. E saiu aos coices relinchando. Indo morrer caindo num precipício, tornando a virar homem de novo, depois de finado. Um outro, teria ido se confessar com ele. E ao receber conselhos muito severos do frei, depois de assumir ser adúltero, não arrependido. Ao retirar-se de sua companhia, teria dirigido-lhe o dedo anular, em surdina. Na mesma hora, ainda dentro da igreja, o homem teria despido sua calça. Possuído de força contrária as suas vontades. Com muita violência, contra si mesmo, teria penetrado seu próprio ânus, com aquele dedo maior que tinha na mão, o mesmo com que teria dirigido ao frei.

Diziam também que expulsava demônios, de mulheres possuídas. Que se lançavam por terra, em frenesi epilético. Ficando totalmente curada em seguida. Cegos que conseguiam enxergar, coxos que andavam. Loucos que recuperavam a lucidez. Drogados que largavam os vícios. Viciados em todo tipo de jogo. Ladrões que se arrependiam, da vida criminosa, só pelo fato de fitá-lo. Pistoleiros que se convertiam, lhes entregando suas armas e recebendo em troca uma bíblia. E agora pregavam a palavra das santas escrituras. Tudo isso Dona Carmosina ouvia nas conversas de calçada, com os vizinhos, nas noites mormacentas de verão. Em que se sentava à porta. Pois ninguém conseguia estar dentro de casa com o calor, dissipado das paredes que acumulavam a quentura do sol naqueles dias áridos, de um ano qualquer da década de setenta. E lá na “sua igreja”, fez consigo mesma, dirigindo-se a nossa Senhora de Fátima, uma promessa: Se meu filho, ajoelhar-se diante de frei Damião, e ele tocar com sua mão santa, a cabeça de meu filho. Ele ficará curado. E ficou aguardando tão somente a oportunidade. Conversando com seu filho relatou-lhe sobre sua promessa. O menino assim que ela calou-se disse:

-Ói mãe. Tem freio de pé e freio de mão

Tem frei Fernando e Frei Damião!

A mãe o advertiu severamente sobre aquela brincadeira com o homem santo. E que ele nunca, jamais repetisse. Ele alegou que os meninos na escola todos diziam. Mesmo assim ela pediu que ele não dissesse. Só sossegou quando ele garantiu não dizer mais. E eis que surgiu a grande oportunidade. As santas missões na cidade de Santana do Ipanema. O frei capuchinho estaria hospedado na casa do padre Cirilo. Naqueles dias, um mundo de gente vinha para aquela cidade, na esperança de um milagre. Ao chegar na Avenida Coronel Lucena, Dona Carmosina viu que não ia ser fácil, vencer aquele oceano humano, mas a fé era maior. Segurando no braço de Francisco, conseguiu chegar à porta da casa do vigário. Tudo certo. Ela estava na lista dos que teriam direito de entrar naquele dia. E ficaram aguardando numa salinha improvisada, especialmente pra o encontro. Esperaram uma eternidade. E Dona Carmosina impaciente não conseguindo conter sua ansiedade. Ainda segurando Francisco pelo braço, adentra as demais dependências da casa. E sem encontrar, alguém que lhes ofereça resistência, consegue chegar a cozinha. Frei Damião está à mesa, cabisbaixo. Há pratos, e uma janta completa está posta. O frei é servido por uma serviçal. Dona Carmosina aproxima-se, toca a cabeça do franciscano. E força seu filho a ficar de joelhos ao lado do frei. Ele é obrigado a fazer a genuflexão praticamente à força. De joelhos, Francisco, assemelha-se a um cabrito, indo pra tosquia contra sua vontade. E da posição em que se encontra, busca as feições do frei. Encontra-as. Demora-se fitando-o e comenta:

-Mãe ele num tá comendo não. A comida quando chega perto da boca some...

Nesse momento, o menino é tomado de uma sonolência repentina. E cai inerte no chão da cozinha. Morto.


Fabio Campos