O Vaso Branco

Ele parece um jarro, se prestaria divinamente bem, para enfeite de mesa ou centro. Não é de porcelana. É de cimento branco, esmaltado. Não é raridade. Nem relíquia o é. Valor? Meramente estima, de família. Desenho mais simples impossível. É um Vaso Branco e só. Um vestígio, 1917 – Pozanni. Traz essa identidade imprimida ao fundo, por fora. Essa informação, pode nada dizer, sob as vistas de um observador comum. Não é esse o nosso caso. 

A família Pozzani chegou da Itália em 1912. Correndo da primeira guerra mundial. Aportaram no porto de Santos. Trazendo na bagagem muita esperança pela nova pátria escolhida para morar. Iniciaram a produção de peças de cerâmica: Xícaras, pratos, vasos, escarradeiras, urinóis, etc. Fixaram residência na região de São Bernardo do Campo. A colônia italiana muito prosperou. Foi exatamente ali, confeccionado pelas mãos dos irmãos Dominni e Rafaelle, com seus filhos e esposas, que nosso Vaso Branco nasceu. Um vez por mês, o agricultor paulistano, Antonio Donizeti vai a capital paulista, na sua caminhonete Ford, leva uma carga de peças de cerâmica dos Pozzanis. Numa dessas cargas, seguiu forrado com pó de serra, em caixas de madeira, o Vaso Branco. As peças chegaram a capital paulista. Mais precisamente no bairro do Bexiga. Dali, vão parar nas prateleiras do Armarinho Dragão Chinês, do senhor Lee Jun Fan, um japonês que chegou em São Paulo nos porões dos navios, também correndo da terrível guerra. Veio sozinho depois chegaria os demais membros da família. E vários armarinhos a família próspera abriria. Inclusive no bairro da Liberdade e na Central do Brasil. Onde existe até hoje. Talvez a quarta ou quinta geração do senhor Lee. 

O nosso Vaso Branco. Ficou só quinze dias de sua recente existência, encalhado na prateleira do armarinho do japonês na filial da Central do Brasil. Um jovem rapaz jornaleiro chamado de Paulo Jorge, que morava num velho casarão próximo a rua Direita, comprou-o para dar de presente a sua tia Doralice. Que viera embora da Bahia com a família, marido e filhos pra morar na Augusta. Seu marido era José Pedro, um pedreiro alagoano. Veio disposto a trabalhar nas lavouras de café, ou quem sabe na produção de vinho no interior do estado. O Vaso Branco passaria só três anos mais no estado de São Paulo, em que nascera. Num dia qualquer do mês de abril de 1920, Doralice ficou viúva. E com seus três filhos resolveram fazer o caminho de volta pra Bahia. Um irmão dela que era comerciante na Vinte e Cinco de Março. Se propôs, levá-la, no seu caminhão Chevrolet, com sua mudança. Conseguiu o combustível com um compadre deputado estadual. Uma troca de favor. E o Vaso Branco muito bem acomodado, num baú de madeira, sobre dois travesseiros enrolado de cobertor. Faz o longo percurso do sudeste até o nordeste. Vai parar numa casinha de taipa na zona rural de Feira de Santana. 

Doralice não ficou muito tempo sozinha, arranjou outro companheiro. Desta vez um agricultor sexagenário. Com ele teria mais três filhos. Um dos filhos de Doralice do primeiro casamento, chamado de Paulo Roberto, o mais velho dos três, com dezoito anos agora, casou-se com uma sergipana chamada de Rosalina. Já estamos em 1928. O jovem casal vai morar na terra natal de Rosalina. Na cidade de São Cistovão. Sua mãe deu ao filho como presente de casamento, o Vaso Branco. Rosalina viveu só dois anos com Paulo Roberto. Por causa dos ciúmes dele, o casal brigava muito. Só tiveram um filho. Paulo Roberto voltou pra Bahia. Foi pra região de Ilhéus, trabalhar nas lavouras de cacau. E Rosalina foi pra casa de uma tia em Neópolis. Levou consigo, o filho e os cacarecos que possuía. Coube tudo num carro de boi. Enrolado no colchão, ia as coisas frágeis: pratos, garrafas e o Vaso Branco. Estamos em 1930, agora. Em Neópolis a tia de Rosalina é dona de um bordel. O filho dela, foi adotado por uma amiga da sua tia que não tinha filhos, era estéril. A tia de Rosalina, que chamava-se Isaura, admite sua sobrinha, agora sem marido e sem filhos, como meretriz no seu bordel. O Vaso Branco foi parar na prateleira do Bar do Bordel. Ficou ali até 1934. Como foi que saiu dali? Assim: Um soldado da polícia sergipana, que era natural de Alagoas. Mais precisamente da cidade de Porto Calvo. Fez uma aposta com dona Isaura numa partida de pôquer. Se ele perdesse, daria seu revólver pela dívida monstruosa, de bebidas e fornicações não pagas. Feitas fiado, à muito sem quitação. Caso ele ganhasse, sua dívida deveria ser perdoada, com crédito pra novas farras. E olhando pra prateleira exigiu: Se eu ganhar quero como troféu, aquele Vaso Branco. Isaura falou que não era dela, pertencia a Rosalina. Ele não se fez de rogado, complementou, pois também, é com ela que passarei a noite hoje, se ganhar. E o Vaso Branco foi, numa manhã de um dia de domingo, no banco traseiro, da viatura da polícia, parar em Porto Calvo. Na casa do soldado de polícia. Que trabalhava em Sergipe. Estamos em 1935. 

O soldado que chamava-se Rogério, tinha uns primos também soldados, só que em Alagoas, que moravam em Maceió. Estes, o visitava uma vez a cada seis meses, pelo menos. Na última visita ficaram sabendo que haveria uma permuta entre as polícias dos dois estados. Com a intenção de capturar Virgulino Ferreira “O Lampião”. O soldado Rogério foi transferido para o sertão de Alagoas. Foi para Delmiro Gouveia. Levou a família, tudo que possuía. E acomodado no meio de uma trouxa de roupas, o Vaso Branco. Rogério continuou no novo endereço, com os velhos hábitos. A dona do Bordel de Delmiro Gouveia, chamava-se Marcolina. Também a ela o soldado de polícia contraiu uma dívida considerável. O soldado observou uma particularidade ali. Dona Marcolina era colecionadora de peças de porcelanas e cerâmicas de todo tipo, formato, cor, estilos e raridades. Lembrando-se do episódio de Neópolis. Vai Em casa e resgata o Vaso Branco, e nova (mas antiga pra ele) proposta de aposta. Desafio aceito. Desta vez o soldado perdeu. E ele, o Vaso Branco. Foi fazer parte do acervo da colecionadora Marcolina. Estamos em 1936. 

Certo dia chega ali naquele bordel um homem bem trajado. Paletó, gravata, chapéu Panamá. É jogador de baralho profissional. Fica vários dias, tentando conseguir reservas para manter sua vida boêmia, chama-se João de Santana. Ganha uma boa soma de dinheiro na mesa de jogo. Uma semana depois que estava ali, resolve ir embora. Ao ver a coleção de Marcolina fica fascinado. Propõe comprar várias peças, mas Marcolina frustra sua intenção dizendo que não estão a venda, todas, têm valor de estima. Menos uma, a que ganhara em aposta de um soldado: O Vaso Branco. João compra-o então, pra dar a uma pessoa especial que conhecera em Olho D’agua das Flores. E o Vaso Branco foi parar na casa de Dona Amância, mãe de Dineusa uma menina de treze anos, por quem João de Santana estava apaixonado. Certo dia, Seu Tomaz e Dona Amância, os pais de Dineusa ficaram sabendo que Virgulino Ferreira “O Lampião” estava chegando para saquear a cidade de Olho D’agua das Flores. E eles fogem de casa para uma trincheira na caatinga. Dineusa pega alguns pertence seus e lembrando-se de João de Santana, leva também o Vaso Branco. O Lampião foi-se embora, não sem deixar antes, seu rastro de sangue de inocentes. E o Vaso Branco voltou pra casa de Dona Amância com um pequeno desfalque, perdera a pequena tampa que possuía. Tudo culpa de Lampião. Em vão a menina Dineusa, voltou ao lugar pra procurar o acessório, do Vaso Branco. 

Dineusa casou-se com João, e foram morar em Santana do Ipanema. Era o ano de 1942. Muitos anos se passaram. E na estante da casa de Dineusa como a se perguntar: Quanto tempo será que permanecerei aqui? O Vaso Branco. Estamos em maio de 2010.
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