Isabel no País de Alice

Era uma vez uma menina chamada Isabel, nem vamos inventar nome fictício. Pra quê? Melhor que todos saibam quem é. Mora em Santana do Ipanema, na Rua das Pedrinhas. Faz dezoito anos esse ano. Já disse pras amigas que está louca que chegue esse dia. Não que esteja programando fazer uma grande festa, o máximo que vai acontecer é reunir os amigos e comemorar, tudo bem simples. Acha que a data será marcante. Acredita numa nova fase de sua vida se iniciando a partir daí, quem sabe pelo fato de todos relacionarem este evento a emancipação. Mas de qual liberdade precisa? Se sempre fez tudo que lhe deu na telha. Foi criada só pela mãe, que sempre a deixava fazer o que tinha vontade, muitas vezes sem saber.

Expedita sua mãe, é uma professora aposentada do ensino público. Fez o que pode pra que a filha tivesse desde a infância, vida simples, sem aparatos, mas também sem privações. Sempre procurou dar tudo que ela mesma nunca tivera, pois fora criada na roça. A menina cedo conheceu uma realidade cruel, viu gente ser morta, meninos se drogando, crianças roubando colegas sua, na volta da escola, tudo em plena luz do dia, bem ali no meio da rua. Tantas vezes viu chegar viaturas da polícia, realizar batidas, prender e bater em pessoas. Fosse quem fosse, inocentes ou culpados. O fato é que aquilo muito marcou sua vida. Aprendeu que existe na periferia a lei da selva, lei do mais forte. Sabe quem é seu pai, mas não o conhece. Há muitos anos foi embora pra São Paulo, era ainda criança. Filha única, fruto de relacionamento amoroso. Seu pai casado com outra e sua mãe não era a matriz.

Maria Isabel gosta de ficar em seu quarto, pra ela é o lugar mais aconchegante do mundo, é pequeno, apertado, mas é seu paraíso. Um pequeno armário onde guarda suas roupas, uma cama, um espelho grande e fotos de seus ídolos nas paredes: Nirvana, Pink Floyd, Barão Vermelho, Cazuza, Sepultura, Raul Seixas. Uma mesinha de cabeceira, um microsistem, o melhor presente que ganhou quando fez quinze. Num canto livros, cadernos, DVDs, CDs espalhados. Alguns no chão, junto aos seus calçados e tênis, meias, sutiens e calcinhas. Na cabeceira da cama uma mesinha com estojo de maquiagem, escova de cabelo, vidros de esmaltes, perfumes, tesouras, pinças e absorventes. Dentro de uma caixa de papelão, os brinquedos de infância, muitas bonecas, todas com suas roupinhas e adereços ainda intactos. Conservadas, devido as insistentes recomendações da mãe, que cobrava dela esse cuidado. Numa tentativa última de conservar lembranças de sua infância. Na capa dos cadernos, muitos adesivos, com motivos macabros:  Crânios perfurados por facas, cobras, escorpiões, dragões. Riscos de caneta, frases e desenhos. No inverno tudo cheirava a mofo e quando amanhecia um dia estiado sua mãe colocava tudo quanto era roupa, numas esteiras de palha, no terreiro atrás de casa pra esquentar ao sol.

-Mãe? Tô indo pra escola...Cadê a senhora?
-Tô no banheiro! Comeu alguma coisa?
-Tô sem fome!...Mãe, vou fazer uma tatuagem viu?!
-Tá louca menina! Eu já lhe disse que não se invente disso.
-Ô mãe, todo mundo faz...
-Todo mundo não! Quem faz essas coisas é ladrão e maconheiro! Se você fizer eu arranco de faca...

 Isabel estuda a sétima série do fundamental, na Escola Estadual Maria Laura Chagas de Assis, a sexta repetiu umas três vezes. Matricula-se e no início frequenta, depois abusa-se e só vai quando quer. Conheceu Zé Carlos e os dois estavam “ficando”, nem considerava um namoro pra valer. Mas acabou se entregando e com ele perdeu a virgindade. Teve uma vez que ficou muito preocupada, atrasou a menstruação, pensou que era uma gravidez. Zeca comprou uns comprimidos e deu pra ela tomar. Ficou com medo. Algumas amigas falaram que ela poderia ter uma hemorragia que podia matá-la. Confidenciou a colega de escola:

-Adriana, eu fiquei com medo, mulher! Tive uma briga com mãínha ontem a noite porque cheguei tarde! Aí me deu uma dor de cabeça. Aí eu fui dormir, sem jantar sem nada. Hoje amanheci menstruada, nunca desejei tanto que uma menstruação  viesse, como essa. Mas graças a Deus veio...

Nos finais de semana Isabel sempre queria dormir mais do que nos outros dias, mas a mãe não parava de chamá-la aos gritos, pra que a ajudasse nos afazeres do lar. A pia sempre amanhecia com um monte de vasilhas e pratos pra lavar.  Odiava lavar, principalmente roupas. No sábado a mãe saía cedo, voltava da feira, por volta das onze horas da manhã. Chegava afobada, gritando por ela e ia direto pra cozinha preparar o almoço que só ficava pronto lá pras duas da tarde. No domingo escolhia a casa de uma amiga só pra passar o dia fora, pois sua mãe recebia um monte de amigos que ela não gostava muito, eles passavam o dia todo bebendo cerveja e ouvindo músicas bregas não muito do seu gosto. Quando Isabel voltava já era noite. A mãe já estava dormindo de porre. O som ligado pra ninguém, repetia alto:

“Sonhar contigo por toda a vida! Sonhar contigo meu amor minha querida”  

Na praça da Bandeira houve uma festa com apresentações folclóricas, pelo dia do estudante, e depois  uma banda de rock da cidade de Batalha ficou tocando pra garotada. Estava ali no meio do povo uma galera da pesada, da rua da Praia. Era uma gang rival, dos garotos lá da rua das Pedrinhas. Zé Carlos fazia parte deste grupo. Houve um tumulto, correria e brigas. A polícia prendeu Zé Carlos e outros rapazes da rua da Praia. Uma semana depois Isabel foi até a delegacia tentar fazer uma visita a ele, mas não pode entrar porque não era parente. Uma tia dele que foi visitá-lo lhe trouxe um bilhete numa folha de caderno que dizia:

“Isabel. Eu tô bem, quero que procure R. diga ele que entregue minhas coisas a vc. Guarde até eu sair daki. Beijos ti amo. Ass. Zeca” 

O “R” era Robson, um primo de Isabel, envolvido com tráfico e consumo de drogas. Ela o encontrou na frente da escola no outro dia e falou-lhe sobre o bilhete. Uma semana depois ele foi de moto até sua casa, e no seu quarto entregou-lhe a encomenda solicitada. Era um quilo de maconha prensada, já aberto num dos cantos do tablete, e um revólver calibre 38, municiado. Isabel guardou numa mala com cadeado, e colocou numa gaveta, sua mãe nunca mexia ali. Aliás, raramente entrava no seu quarto, só ia ali pegar as roupas sujas.

Um dia bateu uma tristeza danada, uma angústia no peito, que apertava o coração, de Bel, era assim que Zeca lhe chamava nos momentos de carinho. Aquela música que estava ouvindo de Renato Russo, bem que contribuiu pra aumentar a dor. Não era bem uma dor física, dessas que passam com um simples analgésico.  Era dor que apertava a alma. Ela ficara sabendo também que naquela semana Zeca havia sido transferido pra o Baldomero Cavalcante, uma penitenciária da capital. Estava na sala de aula e ficou ali com a cabeça encostada à banca. O professor Alberto de Ensino Religioso, veio até ela e passando-lhe a mão na cabeça puxou conversa:

-Isabel, o nome da prima de Maria, Nossa Senhora . O que a preocupa tanto menina?
-Ah, professor, nada... Como é mesmo essa história que o senhor falou aí?
Isso mesmo, seu nome, é o mesmo da prima da mãe de nosso senhor Jesus Cristo. Em hebraico Elishebath que quer dizer aquela que foi ungida, consagrada a Deus. Foi aqui na terra a mãe de João Batista...
-Professor, posso perguntar uma coisa?
-Claro.
-O senhor já ficou triste, mas triste mesmo a ponto de querer morrer?
- Olha Isabel se eu lhe dissesse que não, estaria mentindo. Tem dias que a gente parece que cansou-se de viver. Todos os dias fazendo as mesmas coisas. Eu mesmo, a mais de vinte anos na mesma rotina. Acordar às seis da manhã, vir pro Colégio dar aulas até ao meio-dia, a tarde ia pra outra escola do município fazer a mesma coisa. Sem vislumbrar a menor possibilidade de acontecer uma mudança nisso. E eu que Já estou na metade do ano cinquenta de idade.  Vão se esvaindo as esperanças de que ocorra algum tipo de mudança em tudo isso. Os anos vão passando e nada, nada de diferente acontece.  A única coisa que nos motiva e não nos deixa ser arrebatados pela depressão, é a fé em Deus, o amor aos nossos filhos, e ao nosso trabalho, claro, senão nada teria sentido. Por outro lado há tantos que gostariam de levar a vida que vivemos.

Na tarde daquele dia, uma chuva torrencial caiu. Mais parecia um choro copioso de Deus. Isso fez aumentar ainda mais a tristeza de Isabel. Ela trancou-se no quarto, e ficou deitada na cama, ouvindo músicas internacionais com o fone nos ouvidos. Era quase noite e sua mãe bateu na porta pra dizer que ia sair com um amigo, mas ela nem ouviu. Seu pensamento vagava, viajando por vários momentos de sua vida. Fez uma espécie de balanço, e constatou que já vivera instantes muito bons, ao lado das amigas. Muitas nem são mais sua amiga, outras se tornaram mães, casaram ou foram embora de Santana do Ipanema. Ela abriu a gaveta do guarda-roupa e tirou da bolsa a encomenda de Zeca. Colocou ali na sua frente e ficou olhando pra os dois objetos.  Analisava-os à luz da praticidade, pra que serviam? Tanto a erva alucinógena quanto a arma, levavam as pessoas pra outros mundos.  Uma, possibilitava uma viagem com retorno, a outra viagem sem volta.  Resolveu que experimentaria uma das duas. Talvez as duas.  Escreveu uma longa carta pra sua mãe, entre outras coisas dizia que a amava muito, e que ela a perdoasse pela suas loucuras. Chorou muito, mas em nenhum momento pensou em desistir do que ia fazer. 

Com um pedaço de folha de caderno fez um pequeno cilindro recheado da planta interdita. Acendeu e deu tragos profundos. Fitava a capa de um livro ali no chão fechado:  Alice no País das Maravilhas.  Foi ficando pequenina, e um coelho com a cara de seu professor de Ciências, inseguro e medroso, chegou correndo. Zeca o gato risonho, ora aparecia ora sumia. Robson com sua boina engraçada, o chapeleiro maluco. A gestora da cidade de Santana do Ipanema, apareceu, e com ar inquisidor pronunciou encolerizada: - Cortem-lhe a cabeça! Um pássaro gigante veio vindo, talvez um Dodô, tinha os olhos de mau, do namorado de sua mãe. Avançou para pegá-la com o bico. O revólver,  precisava pegá-lo. Um estampido, e a rainha foi ficando vermelha,  tinta de sangue.  Sentiu as vistas escurecendo, desmaiou.

 Acordou e viu paredes brancas. Uma janela fechada com persianas serradas. A cama alta, de ferro também branca em brancos lençóis. Uma sensação de formigamento no braço direito. Olhou e viu nele uma agulha enfiada na veia, um tubo de soro pendido de uma haste, gotejava.  Dois pares de olhos lhe fitavam: Um resignado, o outro preocupado. Este último reconheceu, era de “dona” Expedita.

-Mãe?... Deixa eu fazer uma tatuagem.  


Fabio Campos   

O Crime da Rua Tertuliano Nepomuceno

Naquela manhã de segunda feira, amanheceu um homem morto, na rua Artur Morais. O corpo estava lá estendido de bruços no chão quando a polícia chegou. O sangue num filete vermelho escuro, talhado, saía do pescoço, descia e formava uma poça na sarjeta. A chegada da viatura da polícia chamou a atenção. Embora a sirene não estivesse ligada, os faróis giratórios de teto piscavam acesos. Curiosos, crianças e adultos observavam. Os que tinham se afastado se aproximaram com a chegada dos representantes da lei. Os policiais desceram do veículo. Procuravam não demonstrar, mas estavam nervosos. Detestavam àquele tipo de abordagem. Submeteram pessoas a interrogatórios, e poucos se mostravam dispostos a colaborar por medo de se tornarem testemunhas.

O corpo foi recolhido pela própria polícia que levou até à câmara mortuária do Hospital Doutor Arsênio Moreira, a popular sala da “Pedra”. O morto, provavelmente esfaqueado na garganta, jazia num batente de cimento, exposto à apreciação pública. Não havia restrição nenhuma a visitação, os profissionais da imprensa entravam, fotografava e saíam, alguns curiosos permaneciam lá. Era norma adotada pelo hospital, talvez pra facilitar o reconhecimento do corpo pelos parentes da vítima.

Maria das Graças a dona do cabaré, de frente aonde o sinistro ocorrera, os vizinhos do bordel,  Benedito motorista da secretaria de saúde e Manoel, o popular “Bilu”, vigia da Universidade, foram os três, intimados a depor como testemunhas do caso. Gracinha, a cafetina, falou pro delegado que o homem morto era Zé da Burra, era assim que todos o conheciam. Morava na Maniçoba e ia sempre ao seu estabelecimento nos finais de semana. Ficava com as meninas da casa, costumava tomar muitas cervejas e só saía de lá bêbado. Naquele dia, saiu por volta das três da madrugada e depois que ela trancou a porta não viu mais nada. Só escutou momentos depois da sua saída, gritos e barulho de discussões na rua, mas não se atreveu a abrir a porta pra ver o que era.

Paulo, acordou-se  e foi pro banheiro.  Olhava-se no espelho sobre a pia. Cheio de ressaca tentava lembrar-se da noite anterior, olhou pro relógio de pulso. Já ia dá oito da manhã, precisava abrir o bar. No rádio ligado ouviu o locutor falar do achado sinistro, na rua Artur Morais. Lembrava-se aos poucos da noite anterior, fora em vários bares e por último estivera no cabaré de Gracinha. Ao abrir as portas do seu estabelecimento, no qual também morava, na rua Tertuliano Nepomuceno, um carro da polícia estava esperando na porta. Um dos policiais aproximando-se cumprimentou-lhe:

-Bom dia Seu Paulo. Por favor, queira receber este comunicado. Assine, e nos devolva uma das vias.
-Bom dia. Pois não...

Era uma intimação. Bela maneira de começar uma segunda-feira, ainda mais de ressaca. Procurou organizar as idéias. Sabia que tinha a ver com a noite anterior. Temia que tivesse algo a ver com a notícia fatídica do achado macabro, Zé da Burra degolado.   Rebuscava na memória os instantes, antes durante e depois de ter saído de casa, e da sua ida até o Cabaré de Gracinha. A boca amargava, sentia náuseas, tinha sede. Sabia que o estômago rejeitaria qualquer coisa que ingerisse, ainda que fosse só água. Ficou de pé à porta do seu ponto comercial e ouviu duas mulheres que passava comentado:

-Mulher tu viu o que fizeram com o coitado de Zé da Burra?
-Tu foi olhar? Eu não tenho coragem mulher, Deus me livre! Estão dizendo por aí, que foi Sulino Preto virado em lobisomem. Mas já prenderam ele! Está trancado dentro de uma cela sozinho feito bicho enjaulado.     
-Eu fui olhar. Quem fez aquilo tem parte com o diabo! Ele foi mordido na garganta. Sangrou até morrer.

 “O diabo, como possuidor dessa capacidade de apossar-se de corpos e almas com intenções vis, como nós o concebemos atualmente, remota à era medieval, século XI. O mal é conseqüência da desobediência do homem, mas pressupõe-se a participação do diabo colaborando com a tentação. Basta recordarmos Adão e Eva no paraíso, se ali não tivesse presente a serpente tentadora, figura simbólica do demônio, talvez o primeiro casal criado por Deus não tivesse caído no pecado. Mas entra aqui o livre arbítrio concedido por Deus aos homens. Muitos são os nomes e poderes atribuídos ao diabo. É chamado Príncipe das trevas é também chamado de Lucífer que significa anjo de luz. Antes de ser expulso da corte celeste, esteve ao lado de Deus. Satanás não é uma entidade em si. Seria símbolo de virilidade, sexualidade e sensualidade.”

Paulo vive com Verônica, à quase dois anos. Ama ardentemente a sua bela mulher. Sente por ela, um amor possessivo. Conheceu-a numa vaquejada.  Antes de tornar-se dono de bar, era peão de vaquejada, com o dinheiro que conseguiu ajuntar abriu aquele comércio. Namoraram e após o convite, ela topou viver os dois juntos no bar. Entrou no quartinho que ficava atrás da cozinha, Verônica estava ainda deitada na cama, nua. O lençol cobria parte de sua beleza desnuda. Ele percorria com seus olhos toda a extensão de seu corpo, suas curvas belíssima, de pernas bem torneadas, nádegas firmes.  Zé Paulo avaliava aquele corpo de mulher como um comprador de cavalos. O cavalo, nós o concebemos como um lindo animal. Pela sua bela postura. Não importa se domado ou selvagem, se na natureza ou domesticado. Ele tem um poder magnetizante de atrair pra si os olhares de quem dele se aproxima. Não importa se em volta, estejam acontecendo eventos muito interessantes. Ele nos atrai e cobra pra si as atenções de quem estiver em sua volta. Era assim como se sentia aquele peão fascinado, hipnotizado diante de sua fêmea.

Verônica não queria acreditar no que ouvia, quando Paulo falou que estava intimado pra ir a delegacia. Pior ainda, saber que era porque estivera num cabaré na madrugada daquele domingo. Nenhuma relação fez ao incidente da morte de Zé da Burra, com seu companheiro. Pra ela era uma mera e infeliz coincidência. E que logo o mal entendido se resolveria. Ele foi até a delegacia e em suas declarações se contradisse em diversos pontos. Ficou muito nervoso. O delegado declarou-o como um dos suspeitos e aconselhou-o a constituir um advogado. Ficaria “subjúdice”, e novo interrogatório foi marcado pra outra data.

Esclarecedor foi o depoimento de “Bilu” o vigia, ele disse que viu quando Gracinha abriu a porta do bordel para a saída de Paulo e que Zé da Burra se encontrava sozinho na calçada. Disse que os dois estavam muito bêbados e ficaram conversando alto. Sulino Preto vinha perambulando pela rua e Paulo começou a apelidá-lo de lobisomem. Zé da Burra pediu pra ele parar com aquilo, mas Paulo, além de não o obedecer, ainda disse um monte de palavrão contra o mesmo. Zé da Burra com raiva, revelou ali na rua, a alto e bom som, que Paulo era corno, que sua mulher Verônica se relacionava sexualmente com seu filho Beto. Possuído de uma cólera diabólica Paulo avançou contra Zé da Burra e com uma mordida estraçalhou sua jugular. Zé caiu sangrando no chão. E Paulo foi embora cambaleando bêbado. Sulino Preto que vinha andando, apressou o passo e parou onde Zé estava caído. E pondo a mão no ferimento tentou estancar o sangramento. Foi aí que Benedito abriu sua porta e viu o mendigo segurando Zé da Burra pelo pescoço e deduzira que ele o assassinara. Benedito era muito amigo de Paulo, as companheiras eram primas, os dois participavam juntos de farras e festas. Os dois casaram na igreja católica só pra fazerem mais uma festa. Seu depoimento incriminava o negro mendigo, inclusive fez questão de lembrar ao delegado o que todos diziam, que ele virava lobisomem e que tinha parte com o Cão.  
     
“Da mitologia grega vem a designação de Cão, Hades o deus do mundo dos mortos levava as almas humanas até um barqueiro que deveria fazer a travessia passar por Cérbero, o cão de três cabeças. Os chifres, o rabo e os pés de bode, teria herdado de outros deuses mitológicos. Do deus Pã, a metade do corpo peludo. O tridente herdou do deus netuno; No espiritismo não há crença em demônios, mas em seres inferiores e seres evoluídos. Pra nós, quem melhor define a entidade diabólica ou demoníaca, pra os adeptos do catolicismo, é santo Agostinho: Pra ele o diabo é tudo o que não representa Deus: perversidade, apatia, tentação, luxúria, destruição e morte. Deus representando tudo que é luz e o demônio representando tudo que não é luz; A ausência de luz, ou seja, tudo que é trevas.”

Sulino Preto poucos dias depois de preso, praticou o suicídio, enforcando-se na sela da delegacia. Após a ressaca daquele dia, Paulo foi recobrando a memória, lembrou-se pouco a pouco de tudo como realmente tinha ocorrido. Precisava ir a águas Belas sua terra natal, precisava conversar com seus familiares, mas não podia ausentar-se de Santana do Ipanema, estava impedido pela lei. Um pensamento martelava sua mente, a declaração de Zé da Burra sobre o caso amoroso entre o filho dele Beto, e sua companheira Verônica. Seria verdade aquela afirmação? Não queria acreditar. Só tinha um jeito de saber. E preparou uma cilada pra sua companheira. Disse que ia passar a noite jogando baralho na casa de uns amigos no lajedo grande, naquele final de semana. E ficou de tocaia na penumbra do quintal. Não demorou muito e ouviu quando a porta do bar foi aberta para o encontro de infidelidade entre Beto e Verônica.
     
Nem mesmo o filho de Deus, Jesus, foi poupado das tentações do demônio, uma vez estando aqui entre nós. Aproximando-se a hora do calvário foi tentado Por ele quando em quaresma. Foram em número de três, as tentações. A tentação da fidelidade a Deus “transforma pedra em pão”; A de testar a santidade e o poder de Deus “Atira-te daqui do alto”; A do poder “darei tudo se prostrando me adorares”; E Jesus respondeu a ele: Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus; Não tentarás teu Deus; Adorarás somente a Deus. Não pediu, pois ao diabo não se pede. Ordenou que retirasse de sua presença.

Paulo passou a ser um homem triste, sorumbático. Verônica não mais estava com ele no bar. Se alguém perguntava por ela, dizia apenas:

- Sei lá...Foi embora.

O delegado passou a frequentar o bar de Paulo, pois nunca deixara de ter suas suspeitas sobre ele, tanto com relação a morte de Zé da Burra quanto ao desaparecimento súbito de Verônica. E um dia aconteceu. Estava sentado a uma mesa tomando uma cerveja, e de lá dos fundos do bar veio vindo, um velho cão rabugento que todos conheciam, era o cachorro do finado Sulino Preto. Veio lá dos fundos do quintal e parou aos pés do delegado, trazia na boca uma mão humana, suja de terra, com unhas pintadas de esmalte vermelho. No dedo anular uma aliança com letrinhas bordadas lia-se: Verônica.



Fabio Campos 

Aloe Vera


Já havia três dias que o céu se fazia nubiloso. Três dias que o astro-rei, não dava o ar da sua graça. Ora chovia uma chuva fina e intermitente, ora torrencial e abundante, castigando Santana do Ipanema. Era manhã de inverno de um ano da década de trinta. Terceiro dia de precipitação consecutiva, Orimídio Bastos, à sua farmácia, na ladeira da Barão do Rio Branco, confabulava:
-Seu Antonio de Campos, costuma dizer, que os meses mais quente do ano são março e novembro,  nesse sertão de meu Deus.  E eu estou a dizer, que o mais chuvoso, sem medo nenhum de errar, é maio. Quando conheço alguém, nascido nessa região, nesse mês, penso logo: -Esse escapou! Não é brincadeira vir ao mundo por aqui num mês desses. Chove tanto! E tem que pedir a Deus pra não adoecer! As estradas com essas chuvas ficam intransitáveis.
Zeca Passaré, o jovem ajudante do farmacêutico, braços apoiados no balcão, apenas ouvia calado. Dedicava-se ao melancólico prazer de admirar a chuva. Olhava, através dela. Seu Bastinho continuava: 
-No livro de Gênesis, depois do dilúvio, Deus prometeu, que nunca mais ia acabar o mundo com chuva. Das duas uma: ou Deus se esqueceu da promessa, ou Santana está fora do mapa do criador, pois já faz três dias que chove! E não é chuvinha pouca não! É chuva dessas que molham com vontade.  Dessas que se a gente for daqui pra ali, sem agasalho, molha até os ossos. Se brincar molha até o pensamento do camarada! As vezes dá a impressão que vai parar,  mas apenas diminui. E torna a engrossar.  O panema está em toda largura!
A cidade tinha cheiro de água barrenta. Do rio, um aroma forte de água nova, cheiro de piaba. As telhas das casas, sobejava gotejante, saturadas de água. As paredes soavam, sem conseguir dispersar em suas entranhas, o excesso de líquido. Os passarinhos de Seu Bastinho, bufos por conta de umidade, careciam de calor solar. Os borbotões de água da chuva nas sarjetas desciam dançantes alegremente pro rio, graças ao declive das ruas aladeiradas. Iam se ajuntar ao braço d’água que os índios batizaram de ypa nema, água ruim de beber.  O riacho Camoxinga feito veia inchada daquele membro, ia dar sua contribuição e tornar ainda mais ameaçadora a cheia do rio.
-Bom dia! Seu Bastinho. Tião mandou avisar pra o senhor ir até a casa dele. Ainda agora mesmo!
O recado chegou na farmácia trazido por Dona Maroquita. A casa de Sebastião Ganga ficava na rua Nova. Já sabia de que se tratava, Sofia a filha asmática de Tião, com certeza tivera mais uma crise. Nesse tempo, não tem jeito piora.
As cores das coisas esmorecem no inverno. Em tempo de chuva os recipientes de vidro embaçam de umidade. As vasilhas de estanho deslizam ao toque dos dedos. Bastinho tem no fundo da farmácia um pequeno consultório. Há ali um pequeno birô abarrotado de objetos: Estetoscópio, medidor de pressão arterial, martelinho medidor de reflexos, lanterninha, bisturi, luvas de borracha e bombinha de inalação. Talões, bulas e receitas médicas. Atrás do birô, uma espécie de bancada com uma imensa variedade de provetas e tubos de ensaio. Potes de porcelana com bastões de socar pra misturar ou obter o sumo de ervas. Numa prateleira acima da bancada diversos depósitos de vidro com tampas todos etiquetados, contendo plantas medicinais. A etiqueta informa o nome popular da erva, o nome científico e data que foi armazenada. Há uma tirada na prateleira só de livros, muitos antigos,de folhas encardidas, todos de capa duras com letrinhas doiradas indicando na lombada o título e autor. A maioria, de temas científico: Anatomia Humana; Plantas medicinais e Puericultura. Na parede um quadro com a efígie do presidente Getúlio Vargas.
Bastinho colocou diversos objetos dentro de sua malinha preta, pegou o guarda-chuva. O aguaceiro dadivoso de Deus continuava sem dar trégua. Saiu dizendo da má sorte de ser boticário num fim de mundo daquele. Resmungava ladeira à fora. Criticava com seus botões, a administração municipal ao atolar o sapato na lama; a Sebastião por exigir tão empreendimento até sua casa naquela ocasião; e de São Pedro reclamava por mandar tanta chuva pra um só lugar por tanto tempo seguido. Podia suspender aquela amostra-grátis de dilúvio, guardar uma parte pra quando viesse um ano seco. Pensando assim chegou ao destino. A porta da casa foi aberta pra dar entrada ao famoso homem das curas de Santana. O homem que abaixo de Deus, salvava dos males que atormentava o corpo. Porque os tormentos da alma isso era lá com o padre Bulhões.
-Bom Dia! Seu Bastinho! A menina está no quarto, vamos entrar...
-Bom Dia Seu Tião. Está vendo? Parece que São Pedro abriu as portas do céu e jogou a chave fora. Nunca vi tanta chuva por aqui, desde que cheguei de Pernambuco. E olhe que faz tempo.
Bastinho examinou a menina e receitou um xarope que ele próprio trouxe da farmácia. Recomendou que se fizesse uma infusão com umas folhas de plantas.
-Faça pra ela um chá com essas folhas de Eucaliptus globulus Labill.
-Isso aqui é eucalipto!
-Eu sei apenas falei o nome científico. Assim que ferver apague o fogo e bote o vapor da vasilha pra ela cheirar isso vai aliviar muito o incômodo. Essa planta possui uma propriedade medicinal muito boa, o eucaliptol, que não pode ser usado com muita freqüência pois pode irritar a mucosa nasal.
Bastinho ainda bem nem tinha encerrado o atendimento a Sofia e chegou um recado pra ir urgente a casa de Dona Genuína, esposa de Seu Sidronio machante, ela havia entrado em trabalho de parto. Não foi sem antes tomar uma xícara de café com as broas de Dona Isaura, a mãe de Sofia, fez questão que ele não saísse dali sem provar.
Quando o farmacêutico saiu ainda caía uma garoa fina, tinha que ir a rua Tertuliano Nepomuceno, mais um santanense estava  pra vir ao mundo por lá. Quando chegou ficou sabendo que Dona Flora parteira havia chegado primeiro. Não achou ruim. Providenciou um fortificante pra parturiente e chá de Melissa officinalis. Isso segundo ele iria ajudar na produção de leite pra criança além de ser um ótimo calmante.
-E onde eu vou encontrar essa tal de Melissa, Melissa o que mesmo?...
-É erva Sidreira Seu Sidrônio! Eu sei que vocês tem guardado folhas dessa planta em casa. Todo mundo tem.
Já ia perto do meio-dia quando retornou a farmácia. Havia uma ruma de gente querendo se consultar com o dono da botica. Um vaqueiro com uma luxação na perna, uma senhora e seu filho com catapora e um rapazote com um dente pra extrair. Esse atendimento levou a tarde inteira. Todos saíram com suas receitas à mão. Numa recomendava um pó anticéptico, um bálsamo e chá de Sambucus nigra “chá de sabugueiro”; noutra indicava um anti-térmico e chá de Jatropha gossypiifolia “chá de Pinhão-rôxo”; na terceira receita um analgésico em comprimidos e chá de Psidium guajava “chá de goiabeira”
Zeca Passaré se inventou de dizer que achava que ia gripar. Seu Bastinho recomendou em cima da bucha:
-Pois cuide de tomar um chá de Menta piperita a popular hortelã-da-folha-miúda, Zeca!
Se ele próprio reclamava de dores nos rins. Prescrevia pra si mesmo:
-Preciso de um chá de Phyllathus niruri!
-E o que é isso Seu Bastinho?
-É o famoso chá de quebra-pedra, meu filho!
Já era noite quando Bastinho se dirigiu a sua residência. Ao descer a ladeira em direção a rua Professor Enéas, um tropel de cavalos ouviu às costas, ignorou pensando que fosse vaqueiros indo tardiamente lá pra o bebedouro. Não era, tratava-se de dois cangaceiros, que o arrebataram e levaram na garupa de um deles. Caía a noite e a chuva continuava. Próximo ao Cachimbo eterno periferia de Santana indo pra Olho D’agua das Flores, eles pararam os cavalos e vendaram seus olhos. Não sabe quanto tempo andou nem pra onde ia. Chegaram ao destino. Sabia que era numa grota, sentiu mato bater-lhe ao rosto. Quando tiraram-lhe as vendas, viu que estava bem no meio da corja do capitão Virgulino. Todos em silêncio o fitavam. Esperavam recompor-se. O capitão encarando-o severamente disse-lhe:
-Seu Bastinho eu tenho um serviço pro senhor.
E mostrando uma tenda improvisada para amparo da chuva indicou-lhe:
 -Tem ali um cabra ferido de morte. Eu quero que salve a vida dele.
Bastinho tentando enxergar no breu, andou até a tolda. Um homem ali jazia agonizante.Verificou o ferimento, era um corte profundo, feito a faca, a altura do peito esquerdo de onde jorrava muito sangue. Um candeeiro de querosene iluminava e enchia a lona de fumaça preta. As sombras tremiam. A chuva permanecia sem parar.
Bastinho olhou envolta do esconderijo, viu muita catingueira e facheiro. Praguejou alto.
-Tanacetum vulgaris e Nerium oleander vocês não me servem!
Tateando no escuro feriu a mão mas sentiu uma imensa alegria por isso. E exclamou:
-Achei você! Aloe vera!
Era um pé de Babosa que procurava, quebrou umas hastes da planta, tirou o gel gosmento de forte cheiro, untou toda a ferida do homem. E esperou um milagre acontecer. Pensava consigo: Com Aloe vera fecharam as feridas de Jesus depois que o desceram da cruz, aloé verdadeiro vai sarar esse desgraçado. O dia amanheceu, o cabra estava escape. Lampião deu ordem a dois homens pra levar Bastinho, recomendando que o matasse num lugar distante dali. Por um tempo andaram a cavalo, finalmente foi jogado num banco de areia e depois o silêncio. Ficou horas amarrado com as mãos para trás, os olhos vendados, formigas selvagens a lhes roer as carnes. Esperava a hora fatal. Ouviu uma voz familiar, alguém se aproximou:
-Oxente Seu Bastinho! Quem peste fez isso com o senhor!
Foi desamarrado e a luz do sol veio bater-lhe nos olhos, doeu mas sentiu um prazer indescritível nisso, que saudade tinha do sol. O rosto que viu era ainda mais conhecido que a voz. Era Passaré que tinha ido na beira do panema urinar e encontrou o farmacêutico seu patrão naquela situação. E voltaram pra farmácia. Orimídio Bastos apesar de cansado sorria. Sorria achando aquele sol, o sol mais bonito do mundo, surgindo por cima da torre da matriz, num  céu azul magnífico lhe devolvia o sorriso.


Fabio Campos

                      

Máscara Negra

A máscara a que vamos nos referir nesse enredo, caro leitor, não vem do tempo dos Cavaleiros da Távola Redonda, do rei Artur ou de Excalibur. Vem contar, dos bailes a fantasia, de carnavais de outrora, vividos em Santana do Ipanema. Vamos, adentremos ao velho casarão de festas mais tradicional da cidade, o Tênis Club Santanense, circulemos pelo salão de dança, justo na noite que se iniciaria mais um tríduo reinado de Momo. O baile de Zé Pereira. 
Isolda, professora primária de Grupo Escolar Padre Francisco Correia, ao chegar ali, teve que correr do carro até os portões pra não molhar sua fantasia de bailarina. Uma chuva torrencial veio encher de serpentinas dágua a noite momesca e forrou as ruas de confetes de cristal. Aquele fevereiro prometia noites prazenteiras pra os foliões. 
Isolda namorava Marco, gerente da loja de miudezas, A Triunfante, de Seu Manoel Constantino. Estavam a uma semana sem se verem, sem se encontrar. Tudo por conta de uma discussão que tiveram, por questões de ciúmes dele, coisa de namorado apaixonado. Naquela noite a reconciliação. Ele ainda não chegara ao clube. 

A nossa vida é um carnaval
A gente brinca escondendo a dor
E a fantasia do meu ideal é você meu amor
Jogaram cinzas no meu coração
Tocou silêncio em todos clarins
Caiu a máscara da ilusão
Dos Pierrôs e Arlequins

Marco e Isolda já namoravam a mais de cinco anos. Em todos esses anos, iam ao baile de carnaval com a mesma alegoria. Suas fantasias eram: Ele de Erik, o fantasma da ópera, ela de Cristine, a bela cantora bailarina. Naquela noite mágica, os protagonistas do folhetim do francês Gaston Leroux, de meados do século dezenove, ressurgiriam dos porões do castelo da ópera e reviveriam naquele salão de baile sua ardente paixão. 

Quanto riso Oh! Quanta alegria
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando
Pelo amor da Colombina
No meio da multidão

Marco iniciou-se a beber no começo da noite, assim que chegou do comércio. Estreou um litro de whisky, que ganhou do patrão, tomou várias doses grandes, ao estilo caubói, estava muito cansado, o sábado, na loja, tinha sido bastante puxado. Ainda mais na sessão de artigos carnavalescos. Quando sua mãe chamou-o para jantar, meio litro do destilado ele já havia ingerido. Nada comeu. Tomou um banho e foi desamarrotar a fantasia. Deitou-se para dar um pequeno cochilo, acabou dormindo profundamente. 

Eu sou aquele Pierrô
Que te abraçou e te beijou meu amor
Na mesma máscara negra
Que esconde teu rosto
Eu quero matar a saudade

Pra nossa história ficar completa, não poderia faltar ele, Tristão de Isolda. E ele veio ao baile. Veio na pele de Tião, melhor dizendo, na pessoa do jovem oftalmologista, doutor Sebastião, filho da doutora Morgana, conceituadíssima advogada de nossa cidade. Tristão, ou Tião como queira, morava em Recife, dificilmente vinha a Santana do Ipanema, mas nesse carnaval, veio. Escusado seria dizer, mas diremos assim mesmo, nosso personagem chave, foi ao tênis Club Santanense, trajado claro, de Erik, o fantasma da ópera, tal e qual como Marco iria. 

Vou beijar-te agora
Não me leve a mal
Hoje é carnaval

Isolda ao ver o fantasma da ópera dançando no salão, julgando tratar-se do seu fantasma, foi ao seu encontro atirando-se em seus braços. A euforia do frevo, o éter já consumido e a saudade de vários dias sem o ver o amado, a fez entregar-se sem restrições. Poe alguns segundos teve o ímpeto de tirar-lhe do rosto a máscara, mas o mancebo, por trás da máscara sorriu, sabia que estava sendo confundido com alguém e não o permitiu. Ali diante dele a bela Isolda, a bailarina loura, a moça das mãos brancas, veio assim como um presente, uma dádiva dos deuses pra aquela noite. 

Um Pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando

Tristão e Isolda dançavam avidamente, entregues ao sabor da alegria e do encanto do carnaval. Tião dominara totalmente a situação, protegido pela penumbra, por vezes, beijou-a ardentemente. Isolda sentindo-se a mais feliz das mulheres lhe correspondia. Por fim calaram-se os clarins, quando já o dia vinha raiando. Finalmente Isolda pediu ao fantasma da ópera que tirasse de vez à máscara. Para sua surpresa ele novamente recusou-se. Perplexa viu-o afastar-se, acenando-lhe, ainda deu pra ouvi-lo repetir a frase com a qual o vocalista da banda encerrara o frevo: 

-Até ano que vem!

Pó e Folia de Carnaval


Vibração intensa se da pela festa mais profana do ano, o entrudo. As ruas, as casas, o povo, numa só expansão eufórica. Ornamentações, alegorias, tudo num redemoinho em festa. Mas isso não se observa apenas no quartel general do frevo à praça Senador Enéas Araújo, no comércio de Santana do Ipanema. 
A energia frívola é percebida fluindo no mais recôndito canto do município. Mesmo na última casinha de taipa, na subida da serra da microondas. De onde da pra se ver um filete de fumaça subindo por cima das telhinhas enegrecidas pelo fumo. Uma antiga marchinha de Claudionor Germano dava pra se ouvir num rádio longe, avisava que já era carnaval. Josué de Jesus Maria Odete moravam ali. 


Àquele carnaval, Jesus iria passar sozinho. Odete voltara, mais uma vez, pra casa de sua mãe, na rua de Zé Quirino. Motivou o desenlace do casal, mais uma briga. Foi assim, Jesus chegou da rua, vindo da obra, onde era servente de pedreiro. Encontrou a casa cheia de amigos da esposa. Ouviam música, tomavam cachaça e fumavam crack. Por conta desse desmantelo, Odete nem preparava comida, nem lavava suas roupas. Essa situação insustentável levou-os aos distratos e mais uma separação. 

Primeiro Dia 

No domingo de Momo, ainda cedo Jesus começou a beber. No bar de Erásmo estava na companhia de Cláudio, o pedreiro a quem servia na reforma da casa do doutor Edgard Monteiro, promotor de justiça. Parada a obra por causa da festa do Zé Pereira. Edmilson, primo de Odete, um vagabundo envolvido com tráfico de maconha, em particular, puxou conversa sobre a prima, disse pra Jesus se ligar, pois achava que ela o estava traindo, com um rapaz de nome Rogério, mas conhecido por todos como Neguinho. No momento em que falavam sobre isso, chegou o bloco dos Cangaceiros, do qual Rogério participava. E Jesus foi ter com Neguinho. A efervescência do álcool consumido fê-lo agressivo na abordagem. Tomou satisfação puxando o rapaz pela gola da fantasia. Recebeu um empurrão, Neguinho também estava bêbado. Os demais integrantes do bloco interveio evitando mútuas agressões. Em tom de ameaça Neguinho disse que aquilo não ia ficar assim. Pelas ruas, carros zoadentos, transeuntes melados de massa de trigo e corantes desfilavam animadas. Tudo envolvido numa etérea bagunça. À noite na praça do frevo, lá ia Jesus cambaleante, esfarrapado, irreconhecível. Coberto por uma máscara de pó no rosto. Por volta da meia-noite, não suportando mais sucumbiu ao cansaço na calçada do Bar Comercial. Jesus caiu pela primeira vez. 

Segundo Dia 

Os raios de sol matutino vieram acordar nosso folião. Ainda sob o efeito do éter foi pra casa, dormiu o dia todo. Acordou por volta das sete da noite, tinha sede e fome. Foi até o fogão de alvenaria à lenha, procurou por comida, não encontrou nada. Uma idéia meio doida lhe veio a cabeça, cobriu-se com as cinzas do fogareiro, vestiu um saco de estopa. Sentiu-se fantasiado. A figura grotesca, lembrava o rei Davi, na ocasião das lamentações, por ter ofendido o Senhor. Daquele jeito, foi pra praça da folia. Encontrou-se com Odete. Ela estava com umas amigas, trajava uma blusa sensual e provocante e um minúsculo short, além de maquiagem extravagante. Era visível a irritação de ambos. Nenhum dos dois gostavam do que viam um no outro. Ele tocou no assunto sobre Neguinho. Ela negou que jamais tivesse tido nada com àquele. Jesus desapareceu no meio da multidão em frenesi. Encontrou Edmilson que o levou até a ladeira de pedras que da acesso a rua professor Enéas, protegidos pela escuridão, fumaram maconha ali. E retornaram pra folia. A barra do dia se fazia quando lá ia Jesus mambembe pra casa. Só conseguiu chegar até ao pedestal da estátua da praça São Pedro. Cai Jesus de novo, desta vez aos pés de Pedro. 

Terceiro Dia 

Era perto do meio-dia quando ele despertou. Acordou com a batucada do bloco Intimidade com a Sogra. Animou-se a acompanhá-los e assim o fez. Andaram pelas ruas da cidade. Um rapaz portando um frasco de lança-perfume apareceu ali, atreveu-se Jesus a pedir-lhe um porre, e este o deu. Sem alimentar-se, sustentando-se apenas com a combustão do acetato de etil, nosso folião já dava sinais de enfraquecimento. Um saltimbanco aos farrapos. E a derradeira noite de pândega e furdunço se fez. Ao som esfuziante da marcha vassourinha, que sempre sacode explosivamente a massa humana, encontrou-se Jesus com Neguinho. Seu desafeto trazia uma garrafa de cerveja na mão, imediatamente estourou-a no calçamento e com o gargalo pontiagudo investiu contra sua garganta, estraçalhando aorta e jugular. O sangue brotou em jorro abundante. E Jesus caiu pela terceira vez, morto.




Fabio Campos