Páscoa!


Quaresma, as pessoas ficam mais religiosas por essa época. Fazem-se mais penitências, pagam-se promessas. Pensa-se mais em Deus. A igreja Matriz de Senhora Santana fica, com suas portas abertas praticamente o dia inteiro. Os sertanejos, santanenses, têm a oportunidade de recolher-se naquele lugar sagrado, envolvente, místico. E ter um diálogo com o Altíssimo, pois Igrejas são aqui na terra, janelas abertas pra o céu. Canais de sintonia com Deus. Uma fresta de luz para o alto. Do alto da torre da Igreja Matriz de Senhora Santana, século e meio contempla essa paisagem deslumbrante que se descortina a sua frente. 
A Matriz é uma construção imponente. Inspirada nas grandes catedrais bizantinas do século XI e XII. Em estilo gótico. Aspiração a uma representação material da Jerusalém Celeste. A luz dos vitrais no seu interior, oportuniza ao homem admirar um esboço da glória de Deus, ainda aqui na terra, e ter consciência da sua condição de mortal. As paredes do interior da nave vão libertar-se da mera função de apoio, vão se expandir em altura, permitindo a ideia de amplitude, tornando o espaço gracioso e de uma      leveza extraordinária.

Quinta-feira Santa


Logo mais a noite, tudo far-se-ia luz. Repicava o sino. Suspenso no ar, tilintava o turíbulo, nas mãos do coroinha, lançando perfume de incenso no ar. A última ceia de Cristo era revivida na missa do quinto dia maior. Enquanto o padre seguia o rito de banhar os pés dos doze mancebos, cânticos os envolvia. Maria das Graças, sentada na terceira fileira, tão distante do ato litúrgico. Seu pensamento vagando levava-a a Belém. Via sua mãe Clotildes agonizando, semi-inconsciente. Morria, consumida por um câncer de mama, na fase terminal. Tudo que havia de se fazer, tinha sido feito, agora era só esperar a última hora. Os olhos serrados no frio e alvo leito do hospital. Seu pensamento voou ainda mais. Vinte e tantos anos antes. Ela ainda criança, o pai Dilermano, todos os dias, brigas e mais brigas com sua mãe. Chegava a casa bêbado, quebrando tudo que ia encontrando pela frente. Chorava indefesa, angustiada.



A agonia de Jesus no Jardim do Getsemâni. Dali iria entregar-se a cruz. O suor, o sangue, o pedido pra Deus afastar o cálice amargo. Mas que a vontade do pai, prevalecesse sobre a sua. Maria das Graças era só uma criança. Nada entendia. O porquê de seu jardim destruído. Sua mãe tendo que sair às pressas de casa. Levando apenas ela, e alguns pertences. Entraram num ônibus, viajaram muito. Recordava-se que acabou dormindo de tão cansada e com fome. Adormeceu nos braços de sua mãe. Acordou num lugar estranho, demorou a acostumar-se com o ambiente. Tinha medo. Era um quarto de hotel. Sujo e apertado, tinha só uma cama de solteiro, um criado-mudo. Reconheceu os pertences da mãe. Ela a havia largado ali? Onde estaria sua mãe? Desceu da cama. Foi até a porta, estava encostada. Abriu-a. Havia um corredor, ouviu pessoas conversando. Caminhando descalça, chegou a uma espécie de bar. A mãe estava a uma mesa, conversava com um homem. Não era seu pai. Ambos bebiam cerveja, Clotildes fumava. Chegou sem ser percebida. Puxando-a pela blusa, falou: 


-Mãe! Estou com fome... 

Foi parar no colo do estranho. Ganhou afagos, e uma refeição que só lhe ocorrera consumir, em ocasiões especiais, refrigerante e biscoitos. Noutro dia, seu pai chegou naquela pensão. Nova briga entre eles, e Dilermano a resgataria. Levou-a até a casa de vó Guilhermina, contou tudo o que estava acontecendo, e terminou lhe fazendo um pedido:

-Mamãe, a senhora pode ficar com Maria das Graças...é só por uns dias! Até que eu resolva minha situação.

Dias depois, Dilermano foi embora pro Rio. Clotildes, de lá mesmo, na pensão do interior de Pernambuco onde se encontrava, foi embora pra Belém, sua terra natal. Vinte e sete anos havia se passado. Clotilde nunca mais voltaria a Santana do Ipanema. Nem mais veria Maria das Graças. Algumas poucas vezes, enviaria alguns presentes, por ocasião de seu aniversário. Quando completou doze anos, vó Guilhermina, faria uma viagem ao Rio, pra rever seus primos. Levou Maria das Graças, que reviu o pai. Conheceria novos irmãos, pelo lado paterno. Convidada foi pra ficar, mas não quis. Era muito criança, pra decidir-se sozinha. Ademais os laços afetivos da avó-mãe Guilhermina falaram mais alto, voltaria pra Santana. Naquela quinta-feira a notícia que chegava de Belém, sua mãe estava nos últimos instantes de vida, morria em sua agonia. E Maria das Graças viveu o seu caminho da dor. Viveria assim o seu martírio.

Subúrbio do Rio. Era uma outra Quinta-feira, não tão Santa.


O mancebo escreveu uma carta. Nela dizia tudo o que ia fazer. Entrar na escola que um dia estudara e matar. Mataria doze! Simbolicamente, os doze discípulos, os doze alunos do mestre Cristo, também os que um dia, riram dele. Todos que não acreditavam no que ele dizia. Deus que o perdoasse pelo que ia fazer! Dizia na carta. Exatamente as oito e trinta horas da manhã seria a hora fatal, pois a soma dos números, daria igual a onze. Do dia sete de abril, outra vez onze. Como também o ano, tudo pra aludir ao onze de setembro fatídico em solo ianque. Entraria pelo portão principal, levando uma mochila. Quem ia desconfiar de um ex-aluno entrando numa escola, com uma mochila? Convenceu o porteiro, dizendo que ia pegar o histórico escolar. A câmara do circuito interno registrou, o momento exato que ele, de arma em punho, cruzou os corredores. E entrou em uma sala de aula. Ali atirou em oito crianças. Novamente municiou a arma no corredor e entrou na sala oposta, novos disparos e mais crianças mortas. Doze, o saldo de vítimas. Doze mais um! Jesus e seus doze, todos martirizados. Todos tiveram suas vidas tiradas. Deus os receba em sua glória. Nos degraus do corredor, tombaria pelo fuzil do soldado, o anjo mensageiro da morte. Se a câmara não tirasse de foco, daria pra ler o cartaz pregado à cima de sua cabeça: Feliz Páscoa! Um coelho dentuço segurava um ovo colorido. Corredores, lugar de passagem. Lugar de Páscoa.


Fabio Campos

Sanctus Dies Santus


Maximiliano, treze anos tinha. Menino com nome de gente grande. Morava no conjunto habitacional Alto da Boa Vista. Nome bonito, vista bonita. Apelido feio: Favela da tripa. Da sua casa via-se o belo santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, o arrojado prédio do Fórum da Justiça Desembargador Hélio Cabral de Vasconcelos. 
Antes, vivera na rua da praia. Sua mãe, ele e mais seis irmãos, numa casinha de taipa. Até que veio a última grande cheia do rio Ipanema, e tiveram que ir praquele cortiço, ao lado da Universidade Estadual. A casa ali era melhor, mesmo assim tinha saudade da antiga morada. Era domingo de ramos, ia o cortejo pelas ruas de Santana do Ipanema. Com folhas de palmeira e galhos de tantas outras plantas, ia o povo, acenando hosanas, perfumo de incenso no passeio. Ramos também na favela, diamba passando de mão em mão, fumo fluindo, aroma da Canabis sativa.

No outro dia, Maximiliano decidiu, não iria à escola Padre Francisco Correia. A professora de religião pedira, pra cada um, comprar, alguns enfeites pra páscoa da escola. Nada havia comprado, não tinha dinheiro. Foi até a banca de Cds e Dvds de seu primo, em frente à matriz de Senhora Santana. Pediu a Tiago, algumas mídias pra vender aos colegas, ganharia comissão. Pedro um de seus amigos compraria, só pra ajudá-lo. O filho do dono de um dos barracos à cabeça da ponte, Recanto da Amizade, era apreciador daquele tipo de diversão. Gostava dos jogos videogames e filmes de Sexo Explícito. Venda garantida. Nas primeiras horas da tarde, Tiago e o primo, desmontaram a banca, desceram pela rua professor Enéas, guardariam os pertences, e de lá tomariam outro destino. Iriam a um lugar chamado de “escondidinho”, lá pra bandas dos curtumes, na beira do Ipanema, próximo a Maniçoba. O que iam fazer: Ouvir músicas, tomar banho nos poços formados no leito do rio, fumar pedras de crack. 

Rio Ipanema de cenário deslumbrante. Ainda que fosse verão. Pequenas nesgas de água, poços aqui e acolá. Espelhos dágua, resplandeciam um magnífico azul. Nuvens alvíssimas, num céu parnasiano cobalto! Bailar de cisnes, ora na água, ora no ar. A imponente colina da microondas ao fundo. Distante o balir de ovelhas. A brisa assobiando, cantava música de fina areia esvoaçando no ar. Tudo ali remetia à distante Jordânia. Não seria aquele o místico e sagrado Monte horebe? Não seriam àquelas águas, reflexos do lago Tiberíades? Maximiliano e Tiago deitados na relva, próximo ao areal, entregues aos sonhos e delírios. Lembravam-se de Verônica, a menina mais desejada de sua sala. Ia pra escola, vestida numa sumaríssima saia. Bastava sentar e aquelas pernas, maliciosamente, prendia a atenção deles. Deixada propositadamente à vista daqueles olhos cobiçosos, uma nesga da gruta do amor, contida na lingerie. A fatia triangular de calcinha creme à mostra. Sob a luz ambiente tornava-se turva, deixando transparecer a nuança dos primeiros pêlos púbicos que recobria como relva, seu sexo pungente. Os meninos vagavam em fantasias com aquela visão. Verônica era irmã de Joãozinho, um menino que tinha fama de afeminado. Tiago fez de tudo pra ficar com ele. Numa daquelas idas ao Ipanema João faria amor com eles, depois de uns tragos num cigarro de maconha, soltou a língua. Disse que beijava sua irmã na boca. Disse que apesar dos dois ficarem muito excitados, fazia aquilo, só pra treinar beijos. Ver quem beijava melhor. Não havia desejo sexual entre os dois. Ela sabia que o irmão gostava de homens. Disse que costumavam assistir a filmes pornôs juntos. Pedro perguntou-lhes, se ela toparia fazer sexo a três, como nas cenas mostradas nos Dvds eróticos que assistiam. Ele respondeu que nunca havia perguntado isso a ela. 

Lembrar-se-iam de uma festa que foram na casa do amigo Manoel, próximo dali, na beira do Panema. Num lugar mais abaixo do “Escondidinho”, após o Bebedouro. Voltariam de tardinha, completamente bêbados. Maximiliano entraria numa roça e atearia fogo num milharal seco. O fogo tomou proporções incontroláveis. Atingiu alguns casebres, e ameaçou incendiar a Escola Municipal Senhora Santana. Magnífico! Que fogaréu. Foi sua maior façanha até então. Precisava se superar. Cometer um crime de maior proporção, seria legal. Talvez assaltar garotas quando voltavam da escola, ou arrombar um mercadinho na calada da noite. Motivo pra isso tinha: Impressionar Verônica! Ela um dia deixara escapar que era fã do traficante carioca Beira-Mar. Diria que quando fosse a Maceió iria fazer uma tatuagem no braço, com as iniciais do comando vermelho. Pronto! Ele já tinha um esboço do plano. Também tinha, muito, muito tempo pra planejar. Bem sabia, quando chegasse a hora, ia precisar estar como estava naquele momento. Anestesiado. Como se em outro mundo. Um mundo surreal, de visões fantasmagóricas, de sons inaudíveis. Onde tudo parecia flutuar. Do jeito que estava naquele momento, uma coisa tinha de sobra: Coragem. 

A noite se avizinhava. O sol, cansado da lida diária, ia se deitando devagar, proporcionando um espetáculo de cores, forjadas por Deus. Reclinado sobre o batente da porta de casa, Maximiliano dormiu. Sonhou um sonho em que beijava Verônica. Quando acordou já era noite. Em casa, apesar de rodeado de tantos, sentiu-se sozinho. 

Maximiliano estava lívido, Visível era, o quanto estava perturbado. Dona Denise, sua professora de religião, ali na sua casa. Uma certeza, aquela visita inesperada, tinha a ver com suas faltas às aulas. Sua mãe ofereceu uma cadeira pra ela sentar. Logo ficaria rodeada de crianças. Umas da casa, outras da vizinhança. Distribuiu entre eles, doces e chocolates. Era domingo de páscoa. Chamou Maximiliano pra conversar na frente de casa, gostara da bela vista proporcionada dali, fazia jus ao nome do Conjunto. Os carros passando na pista, ao longe. Ainda ele não recuperara a fala. Mesmo porque nada tinha a dizer. Era todo ouvidos. 

-Então Maximiliano, por que faltou esses dias a escola?... 

-Não tive como comprar os bombons que a senhora pediu. 

-Mas eu disse que não era obrigatório, só era pra levar se pudesse... Ficou com vergonha por não poder?... 
-Foi. 
-Na quarta-feira foi muito bom. Falamos sobre o significado da páscoa. A maioria pensava que é uma festa só pra consumir chocolate.

-E não é professora? 

-Claro que não. Ovos de chocolate é invenção do comércio pra vender. O começo dessa celebração, está na Bíblia, no velho testamento, livro de Êxodo. Vem de muito tempo esta história. Você Maximiliano, é um dos filhos de Deus! Isso foi sacramentado quando seus pais resolveram lhe batizar. Você era muito pequeno, nem se lembra de ter assumido esse compromisso. Mas foi pelo batismo que você se tornou um cristão. A páscoa é uma festa que celebra a libertação dos primeiros cristãos, que estiveram presos, cativos do Faraó, no Egito. Moisés e Abraão foram os responsáveis pela libertação do povo de Deus. Daquela época vem a festa da páscoa. Comia-se, pães sem fermento, com ervas amargas, e carne de carneiro sem sal. E em pé! Nem podia sentar-se, pode? Nós passamos o filme na escola, pena que você não foi. Perdeu, mas posso emprestar-lhe. Muito tempo depois de tudo isso, Jesus Cristo veio ao mundo, pregou o reino de Deus, mas os fariseus os condenaram a morte. Sabendo antes, de tudo o que ia lhe acontecer, Jesus quis celebrar uma nova páscoa. E na última ceia com os doze apóstolos, disse: “Já não precisamos mais matar um carneiro. Eu sou o cordeiro descido do céu.” E deu-se em forma de pão e vinho aos doze, pois sabia que ia morrer crucificado. Jesus morreu numa cruz por nós, por mim e por você Maximiliano! Viu como você acabou perdendo aulas muito importantes? Por isso fiz questão de vir dá-las hoje a você. Em sua casa... 

-Professora, depois que a senhora contou tudo isso, estou ainda mais envergonhado. Tive pensamentos muito ruins por estes dias. Quando acontece festa como essa da páscoa, que a gente não tem como comprar ovos de chocolate, pras pessoas que a gente gosta muito, nem bacalhau e coco pros de nossa casa fazerem um almoço legal, fico ainda mais revoltado. Vontade de fazer besteira! A gente tem raiva, se revolta. Se acha a pior pessoa do mundo, e pensa em fazer coisas ruins. Já odiei tanto meu pai, por ter deixado, eu, meus irmãos e minha mãe sozinhos. 

-Maximiliano! A história que contei sobre Jesus. Pense, como ele também ficou sozinho. Como se sentiu abandonado, Jesus também sofreu tanto, e era tão pobre! Mas tinha uma missão a cumprir, e foi até o fim. A tristeza, às vezes virá em nossa vida, isso é perfeitamente comum. Jesus também se entristecia, porém nunca ficou revoltado. Quando a revolta lhes vier: Lembre-se dele, olhe pra esse céu que nos cobre agora! Saiba que ele está lhe olhando, lá de cima. E se preocupa com você, com cada um de nós. Já é quase noite, preciso ir. Amanhã lhe aguardo na escola. Pra você, e sua família desejo uma Feliz Páscoa!


Fabio Campos

A Maldição do 13



Cadeia Pública de Santana do Ipanema. Uma velha gaiola, de mil e trezentos metros quadrados, de barro de massapé, cimento e ferro. Construída em meados do século vinte. Agonizante miniatura de Carandiru. Na década de setenta ganhou pavimento superior para alojamento da guarnição. Adentrar a seu interior é o mesmo que descer aos recônditos dos velhos grilhões do tempo da inconfidência no Brasil imperial. 

As oitenta e quatro vidas desumanamente enclausuradas naquelas masmorras, pelos mais variados casos. Desde assassinatos, tráfico de drogas, roubos e furtos a outros tantos pequenos delitos. Na manhã do dia 02 de fevereiro de 2007 chegou o octogésimo quinto preso, João dos Santos. 

A viatura chegou levantando poeira. Ainda algemado foi tirado às pressas de dentro do camburão e conduzido ao primeiro andar, para ser interrogado pelo delegado. Foi colocado dentro de uma pequena sala mal arejada por um ventilador de teto e iluminada apenas pela luz natural que vinha da janela. Sentado a uma cadeira em frente ao birô do delegado, João aguardava. Pouco precisou esperar, não demorou a chegar. 

-Bom dia! Por favor queira responder as perguntas que eu lhes fizer. É um procedimento de rotina, mas que fique claro, constará dos autos do processo. Tudo que for declarado aqui pode ser usado contra, ou a seu favor no julgamento. O senhor pode ainda, se recusar a responder, caso entenda que poderá prejudicá-lo. Se não puder arcar com as despesas, o estado lhe providenciará, um advogado. O senhor já tem um? 

-Não tenho não senhor. 

-O senhor chama-se João dos Santos? É casado, alagoano, agricultor tem quarenta e nove anos, nasceu no dia 11 de janeiro de 1958? 

-Sim senhor. 

-O senhor foi preso esta manhã no Sítio Queimada do Rio, zona rural deste município, depois de empreender fuga ontem à noite, de sua própria residência no Povoado Quandu, zona rural de Poço das Trincheiras, local onde aconteceu o crime. Foi pego por nosso efetivo policiamento, pelo flagrante delito de assassinato do senhor Antonio Vieira, homem branco, viúvo, aposentado, aparentando 67 anos. Para cometer o homicídio o senhor usou arma branca, uma faca peixeira. E para consumar o ato o senhor desferiu treze facadas na vítima. O senhor confirma tudo isso? 

-Sim. 

- O senhor sabe ler e escrever? 

-Não senhor. Malmente assino o nome. 

-E contar? 

-Uma conta, sei tirar. E cubar terra, aprendi com meu pai. 

-Seu João. Estive cá comigo, analisando os números que envolvem este caso. Não que eu seja muito ligado a números. Mas o senhor haverá de concordar que há muita coincidência aqui, veja: O senhor deu no homem, treze facadas pra assassiná-lo. Tanto o seu nome João dos Santos, quanto o da vítima Antonio Vieira, possuem treze letras. A sua idade 49 somando dá treze A idade da vítima 67 anos, também treze. Na data de seu nascimento temos treze duas vezes. Tanto o lugar onde aconteceu o crime, como também aonde o senhor foi preso, treze letras. Até o dia de hoje, dia da sua prisão 02 de fevereiro de 2007 a soma, treze. Você acaba de dá entrada aqui como o preso número oitenta e cinco; oito mais cinco, treze. E a cela que você vai ocupar, por ser, a que temos menos detentos, claro, será a de número treze. Aqui pra nós, o senhor não concorda que o número treze parece que lhe persegue? 

-Não tinha reparado nisso não... 

O soldado que fazia a guarda e se mantivera calado até então, pedindo permissão fez esta observação: 

-Quando pegamos o foragido doutor, era 6:25 da manhã! 

- Até eu, José Hugo Lessa, delegado que ora faço este interrogatório e decreto oficialmente sua prisão Seu João, também 13 letras no nome... Antes de despachá-lo para o cárcere, quero que saiba, sua permanência nesta cadeia será por poucos dias, logo o senhor será transferido pra penitenciária Estadual Dr. Ciridião Durval na capital. É lá que aguardará o dia do julgamento em júri popular. Dependendo de quem lhe faça a defesa, pode pegar de dez a treze anos de reclusão em regime fechado, porque foi um crime com requintes de crueldade. Como o senhor é réu primário, ao cumprir um terço da pena, de acordo com seu comportamento, será solto em seis ou sete anos. Gostaria que me respondesse ainda duas perguntas: 

-Que motivo o levou a tirar a vida de Seu Antonio? E o que o senhor estaria fazendo na Queimada do Rio? 

- Seu doutor delegado, Seu Tonho Vieira era meu sogro. Ele veio me afrontar dentro da minha casa! Disse na minha cara que a própria filha dele que vive comigo me corneava! Me chamou de corno! O velho não gostava de mim porque eu tirei de dentro da casa dele, a filha que ele mais gostava. Eu não aguentei o que ele disse, e fiz o que fiz... Agora, fui pra Queimada do Rio pra casa do meu pai, arranjar um dinheiro pra ir embora pro sul. E o resto o senhor já sabe. 

-A sua esposa, presumo que seja mais nova que o senhor? 

-Tem treze anos. 

No dia 10 de março, João foi transferido pra capital. Às 9:40h. deu entrada no Ciridião Durval, onde passou a ocupar junto com outros detentos a cela 013A do pavilhão 12-01B E no lugar de pessoa, passou a ser números: 12.37. Tinha uma esperança que viu realizar-se, chegar a Maceió pelo litoral, e assim pode ver o mar pela primeira vez. Achou tão bonito o mar, o cheiro da maresia veio pelas frestas do gradil de aço da viatura. Entrou na penitenciária ainda com o mar na pele, nos olhos, boca e narinas, por isso não sentiu de cara a terrível presença das masmorras estadual. Isso ele só iria digerir aos poucos. 

O primeiro contato com os colegas de cela, ocorreu de forma muito natural. Eram todos homens marcados por um único desígnio. Forçados a permanecer ali, por um tempo imensurável, pelos crimes que cometeram. Assemelhavam-se a viageiros duma nave cujo destino fantasticamente os espreitavam: A sobrevivência. Condenados a um mundo vertiginosamente inferior ao externo. Submundo. Os que lá se encontravam, avaliavam o novo tripulante, a cima de tudo respeitavam-no. João notou que ali não era muito diferente da cadeia de Santana do Ipanema. Existiam regras a serem seguidas. O líder do grupo procurou-o pra colocar-lhe a par destas. Ganhou o apelido de “sertão”, era o único do grupo vindo dessa região. Aprendeu novas gírias. As camas, folhas de concretos chumbadas na parede, eram apelidadas de jumenta. Se dotadas de colchão jumentas com sela. Não havia nenhuma desocupada, claro. Mas algumas estavam à venda. João comprou uma com sela, por R$ 50. Quem não podia adquirir uma, dormia “na praia”, era a dormida no chão. Um encarcerado, por assalto a mão armada, perguntou a João se ele era um “Maria da Penha”. Ele não sabia o que era isso. Explicou, tratava-se de quem “pegou cadeia” por agredir mulher. Fosse a própria, ou qualquer outra, por espancamento, estupro, etc. Não era. Os dias foram se sucedendo e muita coisa João, aprenderia, diferente do seu mundo. Aquele que deixou lá no sertão, onde podia andar pela caatinga, ouvir os passarinhos cantando com o nascer do sol, o cheiro bom de mato molhado. Lidar com a roça e com o gado, tudo isso ia ficando cada vez mais distante. Seu mundo, antes tão real, agora só em sonho podia ver. Ao despertar, acordava pra aquele pesadelo que parecia não ter tempo pra acabar. 

“Almas sebosas” era gente do mal, eles próprios consideravam irrecuperáveis, pra vida do outro lado. No outro mundo. Através deles, João conheceria o crack. A maconha já conhecia. Fazia rir a todos, com seu jeito desengonçado, a contar histórias vividas no sertão. De quando experimentou maconha pela primeira vez. Tinha dezesseis anos. Seu pai, o obrigara, a ele e a um irmão, a roçar o mato de duas tarefas de palmas. O irmão antes de iniciar o serviço acendeu um cigarro da diamba dizendo que depois de uns bons tragos, faria o serviço tão rápido que nem notaria. Ele resolveu experimentar, mas ficou tão alucinado que do serviço nada fez e acabou levando uma baita surra de chicote. 

“A Mula” da prisão, muito diferente daquela que João conhecia lá no sertão. Ali, eram os que traziam drogas pra dentro do presídio. No sertão fazia serviço pesado. Tantas vezes sonhara cavalgando, e acordava sentindo o cheiro de gado, capim e do seu cavalo que tanto amava. Considerava o cavalo o mais belo animal que Deus pos no mundo. Outro dia João ficou profundamente chocado, muito embora, fez o possível pra que os demais não percebessem. Chegou à cela um estuprador, que tinha vitimado e feito morta uma criança de apenas quatro anos. Fizeram-no vestir uma saia, maquiaram-no como a uma mulher, e teve que desfilar entre eles. Depois, um a um, praticaram-lhe sevícias assustadoras. Até uma garrafa lhe introduziram, até que sangrasse. Sem direito a contestação passaria aquele, a ser o que supria as necessidades sexuais de todos. 

Havia entre eles, um plano de fuga. Cavavam secretamente um túnel. No dia que conseguiram chegar a parte externa, a informação “vazou”, houve um motim. Várias celas foram incendiadas. Um esboço de inferno fez-se ali. Gritos, tiros, bombas de gás, correria. João resolvera que não iria tentar a fuga. Não via vantagem nisso. Melhor pagar pelo que fizera, queria ficar quites ao menos com a lei dos homens. Nesse dia três morreram e outros dez ficaram feridos entre os detentos. 

Achava ruim os dias de visitação pública. Quase todos recebiam parentes e amigos. Pra visitá-lo ninguém. Uma vez uma evangélica, bonita moça conversou horas com ele, e antes de ir-se, lhe deu um exemplar dos evangelhos, de nada lhes serviria. Acabou pros colegas as páginas se prestariam perfeitamente, pra fazer cigarro de maconha. Num dia desses, um advogado a ele se apresentou, como sendo Rogivaldo Reis, baixinho e mal encarado, que falava muito rápido, lhe procurou pra dizer sobre o andamento do seu caso. Ficou sabendo sobre a data seu julgamento. 13 de março de 2008. 

E naquele dia aprazado João foi julgado perante treze jurados. Revelado o escrutínio, dez condenando, e apenas três lhe inocentavam. Exatamente às 13:00h. Perante a assembléia de pé, ladeado por dois policiais, cabisbaixo ele ouviu o veredicto, pronunciado pelo doutor juiz de direito Abelardo Souto: 

“O réu, senhor João dos Santos, foi julgado pelo presente jurado e declarado culpado pelo crime de assassinato do senhor Antonio Vieira, no dia primeiro de fevereiro de 2007. Está condenado a cumprir, desde esta data, a treze anos de reclusão em regime fechado!” 

Seu João dos Santos ficará preso até 03 de maio de 2021. A depender de um bom comportamento poderá adquirir liberdade em 2013. Provavelmente no dia 01 de outubro, claro. 


Nota do Autor: 

O Conto é baseado em fatos reais. Surpreso ficamos ao ver a data que concluímos o conto! Pura coincidência! Acredite se quiser! 


Fabio Campos 13 de outubro de 2010. S. do Ipanema – AL.

Esquizofrenia - Chopin nº 5


Professor Einstein, dava uma pausa na sua caminhada matinal, sentado a um banco, na praça da Bandeira. Costumava sair levando um livro, pegava qualquer um na estante. Sempre assim, começava a ler determinado autor, e desistiria caso se tornasse enfadonho. A leitura era pra exercitar o intelecto, “para acordar os neurônios” dizia. No momento lia, A Hora da Estrela de Clarice Lispector. Fechou o livro. 

Pra onde fora as cores? O que acontecera com as cores das coisas? Tudo tornara-se insuportavelmente desbotado. Nuvens mofadas, num céu incinerado. As casas todas, grafite, como se feitas a lápis. A rua, numa vã tentativa de imitar a cor de pedra que um dia tivera. A cor asfalto foi parar sobre a pele das pessoas. E dessas, não dava pra ver-lhes nitidamente a fisionomia. Todos andavam como se caminhassem em câmara lenta, pareciam não fazer parte da cena, feito vultos intrusos, flutuando, vindos de uma outra dimensão. Certeza tinha que não estava louco. Até porque não era a primeira vez, já perdera a conta das vezes que aquilo acontecera. Talvez nas outras ocasiões estivesse sob forte tensão emocional e não percebera tão nitidamente como naquele momento. 

Mas é claro, pra tudo tem que existir uma explicação. Sempre que o mundo lhes pareceu sem cor, havia um pensamento a amofinar-lhe as entranhas. Desejou que alguém lhe reconhecesse e lhes dirigisse um cumprimento, talvez assim retornasse, daquele estado letárgico. Melhor não. Não estava a fim de falar com ninguém. Rejeitou com veemência a ideia de iniciar uma conversa com alguém, tanto que um calafrio percorreu-lhe a derme. Ativando as células, uma descarga elétrica percorrendo o corpo via coluna espinhal.  Uma vez no cérebro a centelha de fogo tornou gélida, nuca, testa e têmporas. Um fio de suor trouxe-lhe a realidade. Um sol vinha vindo. E derramava-se, preguiçosamente por cima das coisas que existiam para a maioria das criaturas, assim como por sobre o ápice piramidal da capela de senhora Assunção.

Havia um pensamento fixo. E isso o impelia a voltar pra casa. Parecia também haver um incômodo. Embora não tivesse certeza do que realmente o incomodava. Talvez fosse a inveja que sentia das pessoas que vivem suas vidas pura e simplesmente por viver. O carroceiro que passava, tão resignado em ser carroceiro, ia gastar a vida nos afazeres cotidiano da porta do mercado da carne. O vendedor de pipoca, que lá ia pra esquina, angariar centavo a centavo, na venda do seu produto. Por acaso pensariam aqueles em dias melhores? Perspectivas para si. Achavam-nas medíocres. Só sentiu-se um pouco mais seguro dentro de casa.

- Einstein! Venha tomar café...
- Só depois do banho.
- As contas pra pagar hoje, estão na porta da geladeira.
- É tudo isso que está aqui?!
- Só isso meu querido!
- Pôxa! Desse jeito! Não tem salário que dê...
- Topa assaltar um banco?
- Droga! Porque tem que falar tamanha besteira!
- Calma! Estressado...

Ficou perplexa diante da reação dele, tinha dito só de brincadeira. Por que assim reagira? Sentira-se vasculhado bem dentro de seu ser. Viu-se invadido nos seus mais secretos pensamentos, num lugar em que ninguém tinha acesso, só ele. E mesmo assim só nos dias muito sombrios. Pois a idéia de roubar um banco, ele a tinha. Não de brincadeira, mas de verdade, tudo planejado minuciosamente. Desde a hora de entrada até a fuga. Vez ou outra ia lá, na gaveta de sua mente onde essa idéia estava bem guardada, escondida. Analisava e sempre a revisava, tudo nos menores detalhes. Sempre descobria falhas, refazia tudo mentalmente, corrigia o que possivelmente poderia dar errado, tornava a guardá-la. Se tudo desse certo como previa nem precisaria matar ninguém. Por isso aquela reação, ao ver exposta, trazida dos recônditos do seu ser, um segredo que julgava só seu. A idéia que tinha de roubar um banco.  

Crime e Castigo de Fiodor Dostoievsk a leitura que iniciara, sentado nos imensos batentes da arquibancada do ginásio de esporte Cônego Luiz Cirilo Silva. Não lia mais, porém não fechou o livro, passeava com as vistas por cima das palavras. Gostava dessa brincadeira, fixava os olhos nessas - “Crime” e “Castigo” – Diziam coisas dentro do contexto. E lidas isoladamente? Amava as palavras. Escritas, possuíam sabor. Umas adocicadas, outras azedas. Faladas, vibravam no ar. Faziam-nos um afago, ou davam-nos chicotadas. Acariciava a brancura das páginas, inalava o cheiro inebriante do nanquim exalado das palavras impressas.

Sabia que tinha em suas mãos o poder de mudar tudo que o rodeava. Sentia que só ele mesmo poderia mudar aquela situação que julgava estar colocado. Embora não tivesse certeza disso, menos ainda vontade pra realizá-lo. Odiava-se por isso. Odiava-se por não ter certeza das coisas. Ódio ao comodismo, a índole permissiva, tão perniciosa. Ao mesmo tempo, inquietante e terrivelmente acomodada. Esperar, esperar, era o que fazia da vida. Esperava demais que as coisas acontecessem por elas mesmas. Detestava a maldita ideia de acreditar em destino. Nada de relevante via no trabalho que realizava todos os dias. Tudo apoiado num falso moralismo. E havia uma crítica construtiva, que fazia de si mesmo. O auto-elogio, um maldito câncer que fazia se consumir, num apodrecer-se de contentamento. Os cursos que já fizera que só serviam pra encher gavetas, reais e mentais. 

Não, não iria rememorar a trajetória de sua vida, isso era sempre muito deprimente. Até porque sobrevinha sempre com muita ênfase os maus momentos, pontilhando cada palmo de sua existência, As boas coisas, além de esporádicas, dificilmente lembraria. Por que não era como as outras pessoas que simplesmente viviam suas vidas e as gastavam a seu bel-prazer? Tudo o que tinha era migalhas de vida. Miseravelmente agarrado aquela condição feito avaro verme.  Se não era uma pessoa má; por que assim se sentia? Filosofou de si e pra si que sofrimento é caminho para o alto. Ódio a filosofia barata, puro ópio da religião? Precisava encontrar um desses livros de alto ajuda. Tinha o tão recomendado, O Diário de Um Mago de Paulo Coelho, emprestado de uma amiga. Acha que o jogou em algum lugar, quando chegasse à casa, iria procurá-lo. Se o encontrasse talvez começasse a ler.

Não sabia o porquê, mas estava se sentindo terrivelmente infeliz naquela segunda-feira. Não existia um motivo. Não entendia porque precisava de um miserável motivo, pra se sentir assim. Não hesitaria em chorar em plena sala de aula. Tudo dependeria deles.

- Professor o que o senhor tem?
- Como assim?
- Não sei. O senhor não parece bem.
- Nada! Não tenho nada! São as preocupações da vida que infelizmente acabamos trazendo pra sala de aula. Gente por favor, desculpem-me! Por hoje é só...

Depois da escola foi à igreja. Precisava confessar-se. Por dias seguidos fora à igreja, no fundo achava bom não encontrar o pároco. Rememorava a listas dos pecados que escolhera contar, se por acaso encontrasse o padre. Contaria da idéia fixa de morte que tinha. Será que contaria, do desejo que já sentiu de matar, de morrer? Pensava talvez, na expressão de perplexidade do presbítero se resolvesse contar todos os pecados. Precisava pelo menos dizer, do ódio que sentia por sua mãe, de quando a visitava. Sentados, ela a uma poltrona, ele a uma cadeira. Diante do silêncio dos dois, a sexagenária viúva, acometida de alzheimmer, começava a contar repetidamente as mesmas histórias. De anos ruins de sua infância, de anos de seca e fome, e de como tio e primo dela haviam cometido suicídio. Contava esquecia e tornava a contar. O ódio por conta de que repisava tanto aqueles momentos ruins, com riquezas de detalhes.

-Meu tio chamava-se Manoel. Era dono de muitas terras. Um dia chamou os empregados, distribuiu as tarefas de cada um na roça. Entrou em casa. Foi até o espelho. A mulher pensou que ele fosse fazer a barba. Passou a navalha no pescoço, o jato de sangue espirrou na parede. Caiu morto.
Vinte anos depois, com o filho dele, do mesmo jeito. Foi em casa, deu um abraço na esposa e na filha, depois foi pra fazenda. Na mesma casa grande onde o pai se matou. Trancou-se no quarto, tirou os sapatos deixou ao pé da cama e deitou-se. Pegou o revólver apontou pra o próprio ouvido e apertou o gatilho.  

Não considerava a si mesmo, nem a sua mãe pessoas más, embora, gostaria imensamente de entender porque se lhes sobrevinham, quase num mórbido prazer, os pensamentos ruins, os bons que um dia vivera, raramente revivia. E se em si, lhes vinha uma adversidade, a exemplo da faltava dinheiro pra suprir as despesas mais prementes, achava muito natural que pensasse em cometer um delito, como assaltar um banco, ainda que outras pessoas pudessem pagar com a vida, caso o desatino não saísse exatamente como havia planejado. Mesmo já passado dos trinta, nunca se acostumara com aquela idéia de Deus, concebida desde a infância. Um Deus com cara de velho barbudo, sisudo e pronto para punir-nos caso cometessemos pecados. Um Deus frio, sem coração, impiedoso que não quer que julguemos os outros, mas que não hesitaria em nos julgar e nos condenar. Ódio ao Deus humano, feito nossa imagem semelhança possuidor também de nossos defeitos.

No silêncio da casa materna, onde tudo permanecia impregnado de passado. Encontrou na instante da sala, um livro que julgava perdido, Insônia de Graciliano Ramos. Entregou-se a leitura. Não precisava olhar, muito embora sentisse, por cima dos móveis, das louças, da xícara de café. No som que fazia a colherzinha no descanso do pires, depois de misturar o açúcar. No sorver do líquido quente. Em tudo via a presença do velho pai, que de lá de dentro do retrato, na moldura oval, lhe fitava. Olhar sereno, alheio a tragicidade daquele instante. Envolto numa aura de vulto histórico como quem dizia: contemplo agora o que fiz. O mundo iniciou nauseante rodopio. Como um imenso carrossel de tudo, de todas as coisas. O ar doía ao entrar nos pulmões, mudado de estado, não mais gas, agora líquido, e em ebulição. Entrando pelas narinas, feito larva incandescente de vulcão. De certo destroçaria os pulmões quando chegasse ali. Veias e artérias arrebentariam a qualquer momento. O coração, em instantes explodiria. O cheiro nauseabundo do mundo. Certeza não tinha, se dormira, se desmaiara.

-Einstein meu filho! Levante-se daí, vá pra cama. Já é noite.

A semana, a um só tempo findava e se iniciava. Era domingo. De dentro de casa dava pra ouvir o silêncio por cima das coisas, por cima das pessoas. Entregues de corpos, ossos, almas e músculos, totalmente, a uma feliz preguiça. O mundo parece aguardar, numa eterna iminência de acontecer algo trágico. São assim os dias de domingo. Se parece esses dias, com aqueles infinitésimos segundos em que o filme fica mudo, antes de explodir uma bomba atômica. O silêncio o incomodava. Bastava se fazer, e uma voz, sua voz (conhecia pelo timbre) vinha lhe incomodar, mesmo sem falar nada. Cobrar-lhe-ia um balanço emocional da semana que se fora. Atitudes, sentimentos, o que fizera consigo mesmo? Num velho álbum de artes, Van Gohg apareceu-lhe tristemente com a orelha decepada. É bem provável que tudo se acabe num dia como esse. Um dia assim, em que o mundo parece está atirado às baratas. Encheu a casa de Chopin. Franz Kafka, A Metamorfose, nas mãos.


Fabio Campos  

Esmeralda

Na casa da minha infância tinha empregada. Como era casa nos fundos e mercearia na frente, minha mãe precisava sempre dos serviços das empregadas para dar conta dos afazeres domésticos. A primeira delas, que eu lembro, chamava-se Ivanilda. Era uma mulher gigante, de longos braços. Volumosa. Se as páginas dos anos e décadas, não fossem levadas pelo vento, e não passassem sobre sua mocidade. Tornando-a velha senhora de cabelos grisalhos e pele enrugada. E se a mim este mesmo tempo cronológico, tivesse tornado um homem feito, em questão de segundos, ainda pueril ao colo dela, minha opinião sobre Ivanilda seria de uma mulher bem aquinhoada, de porte mediano. Não tinha um rosto belo. O que nessa parte dela se destacava, era uma boca enorme de dentes grandes, não muito alvos, por conta do uso frequente de tabaco. Sobressaia-lhes um sinal, desses que, aparentava-lhes ser uma mosca varejeira que teimosa insistia em pousar-lhe, pro resto da vida no ápice de seu nariz redondo. Ela sorria muito. Lá no âmago do meu ser, alimentava no profundo das minhas entranhas, um desejo secreto de possuí-la. De consumar-lhe o ato carnal. Como meus irmãos mais velhos. Sempre que precisavam, procuravam-na e dela desfrutavam. À tinham, como a um pé de goiaba, que é pra hora que se quer. Ivanilda de pouca brincadeira com menino, tinha outros interesses. Era amante de um rapaz, um pedreiro. Tinha uma mãe viúva pra zelar. Um irmão mais velho, que lhes deitava ciúme. E ela se foi. São Paulo esteve a cobrar-lhe melhor futuro que as cozinhas da casa dos Soares. Mas em substituição a ela viria outra. Esta outra, não sei em que espaço de tempo distanciou-se da anterior.

Na minha memória vem em seguida: Dona Celina. Esta, uma preta muita alta, não apenas pela minha estatura, em desvantagem, a me tornar vítima da ilusão de ótica, da perspectiva enganadora. Pois quem está mais próximo ao chão, observa tudo como sendo sempre muito alto. Já passava da metade de século de existência. E já não acendia o fogo da masculinidade vicejante, nos mancebos da casa. Embora dedicasse certos desvelo e caprichos, a sua surrada aparência. Deitando ao rosto, pó de arroz e um batom vermelho púrpura, aos lábios sem viço, que acusava serem aqueles cuidados com a aparência, tardios. Era uma preta sofrida. Dessas que o azinhavre dos pés e das mãos denunciam a lavagem de roupa com água do rio e sabão da terra pra ganhar o pão. Preta que nem infância tivera. Desde criança tivera que trabalhar nas lavouras de algodão, feijão e milho dos Nobres, Azevedos e Vanderleis. Pra ganhar um prato de comida. Adolescência negada. Ainda com os peitos saindo-lhe botões, foi estuprada, pelos próprios arrendatários das lavouras. A negra conversava na dileta proporção que cumpria seu labor. Misturava verdades e mentiras desenxabidas, em conversas esticadas do tamanho da tarefa que a ocupava. Um dia. Desconfiamos da preta. Eu e meus irmãos. E passamos a vigiá-la, por nossa conta sem nada revelar aos adultos, em surdina. De fato, havia sentido na desconfiança, a preta dera para roubar umas coisas da mercearia de meu pai. Coisa que ela própria puxara para si, a tarefa de varrer o depósito e dali tirar todo lixo. Sua tática consistia em levar dentro das caixas que iam pro lixo, alguma mercadoria de valor, colocada as pressas durante a limpeza. Depois pegava o produto do crime junto a ruma de detritos, alegando precisar daquelas caixas vazias. Quem desconfiaria? Sendo ela matreira e astuciosa esqueceu-se que um dia fora menina. E menino, vê onde ninguém enxerga. Menino é feito de sonho e fantasia. De verdade e de mentira sempre nascente no momento no agora. E Celina se foi. Foi demitida. Foi, levando consigo o bacolejo das pretas das cozinhas de senhores de engenho. Preta saída de um conto muito antigo que fala de pelourinho, e açoite. E vieram outra e mais outras empregadas. Vieram Dulces, Marias e Sofias. E passavam. Passavam como a um folhetim que se segura no lóbulo, e faz as páginas passarem sucessivamente, e as figuras ali dentro, até então estáticas ganham vida. E se repetem. 

E veio Esmeralda. Esmeralda era assim, uma bela mulata. Trazia o castanho dos cabelos dentro dos olhos amendoados. Esguia. Corpo longo. Se na puberdade, alguns anos antes daquele, tivesse tido oportunidade de ter zelo no corpo, talvez tivesse quadril mais sinuoso, sensual, não tão assim de menina pré-púbere. Se não tivesse sofrido tanto na infância, ao desabrocharem seus seios, se pronunciariam mais cheios, talvez. Mais graciosos do que já se faziam. Pode até ser que estes pormenores sejam apenas conotações caprichosas dum observador loquaz, exigente. Mas o que não faltava era graça em Esmeralda. Tinha gestos graciosos no andar e no falar. Na entonação da voz. Isso, dava-lhes um quê, de um bibelô de bailarina. Daquelas da caixinha de música que quando se abre, se põe a dançar. E a melodia subtraída do pequena carretilha vem embalar nossa fantasia, de uma doce inocência, e vinha e esvoaça, feito a única borboleta que escapara dos poetas desatentos. E fazia rodopios no ar, e teimava em fazer um carinho nas pálpebras pesadas do menino exausto. Cansado de tanto fazer estripulias e que caía em um sonho manso, raso e bom, sem ter que fechar os olhos. Um sonho onde havia uma Cinderela. Sem o encanto da noite do baile mas também sem a tristeza e desencanto no olhar, por estar ao borralho. 

Um dia, eu a vi chegar ao quintal, para estender roupas lavadas, de si mesmas. A que se lhes vestia, estava molhada, colada ao corpo. E aconteceu. Ela subitamente baixou a calcinha, levantou o quanto pode a saia, e ali mesmo, no terreiro começou a urinar. Eu estava a um canto que ela não via a mim. A visão que eu tinha era da nudez de suas nádegas e quadril e o sulco que levava ao jato de mijo. Minha reação de espanto, e inquietude fê-la perceber minha presença. Ela então, virou o rosto, em minha direção, calmamente, .E entregou-me, dos seus olhos e lábios, um terno sorriso. O mais lindo que eu já vira em toda a minha vida. Ao término do ato, ela se recompôs. Eu não. E ficamos cúmplices daquele momento (pra mim, de entrega, de amor). Por semanas sonhei com aquela cena. E acordava exausto, e feliz, como a um noivo em noite de núpcias. 

A maior qualidade de Esmeralda, não pertencia ao campo das ninfas, ou mesmo de suas curvas presenteadas por Afrodite. Muito menos ao mundo das habilidades com as louças, as frituras ou como tornar as roupas limpas. Nada disso, o que ela tinha de mais valioso, pertencia a nós, meninos e meninas. Ela sabia contar histórias. Contar “causos”. Histórias de Trancoso. Com uma particularidade gravíssima. Só contava história à noite e teria que faltar energia elétrica. Somente a luz de vela. Para ela, essa era a chave do segredo, do mistério. Enquanto que pra nós, um ultimato severo como fruta terçã. Como se seus personagens carecessem apenas de um fio de luz infinitamente fulgural, de um bastão de parafina e cordão, para saírem do reino encantado onde lá habitavam. Aonde existiam. 

Pedir a Esmeralda pra contar uma história durante o dia, nem pensar! Dizia que criava rabo! Não lembro se o apetrecho caudal seria acrescentado a ela, narradora, ou a nós meros espectadores. Talvez isso nem viesse ao caso. Pois não queríamos rabichos em nós. Muito menos na linda bunda de Esmeralda. Uma noite mágica se fez, chovia. Uma chuva de trovoada. Chuva dessas que molham, torrencial e oportuna. Os raios sibilantes e providenciais logo cuidaram de interromper a energia vinda de Paulo Afonso. Pronto! Momento perfeito, todos à mesa. Preparados pra iniciarmos a maviosa aventura pelo mundo mágico de Esmeralda. Rostos atentos, clareados pela luz tremula da vela. Os olhos não piscavam, os ouvidos tentavam filtrar os sons trazidos pela tempestade. E o vento como quem, a querer vir ouvir também a história, penetravam pelos combogós. Papai sentado numa “preguiçosa” quase na penumbra, fingia cochilar. Talvez tivesse medo de voltar a ser criança. Mamãe inventava de por de molho o feijão, tarefa que prenunciava um outro dia. Mas antes que este chegasse, uma viagem de milhares de anos, por terra muito longínquas, iríamos fazer, ainda naquela noite. 


Fabio Campos

A Confissão

No tempo em que Santana do Ipanema se resumia a um arruado de casebres, que se iniciava lá pras bandas do Bebedouro e vinha, se alternando entre grotas e alamedas, até a velha rua da cadeia. Vivia em terras da antiga fazenda Picada, dos irmãos Rodrigues Gaia, um peão que atendia pelo nome de Pedro. Aqui no sertão, além de ser o homem que lida com a vacaria; o menor em conhecimento num grupo, um aprendiz, dir-se-á também que é um peão. No jogo de xadrez, uma peça assim denominada, é impedida pelas regras de mover-se pra trás, também nesse ponto o peão do jogo se parece com peão do sertão.

      
O Peão. Muito antes dos primeiros raios de sol derramar seu clarão por cima da terra, por cima dos homens e de toda criatura que Deus pôs no mundo começa o dia pra ele. Seu despertar é com o cantar do galo. Banha o rosto com o orvalho da manhã. O pipilar dos passarinhos, o mugido do gado preso no curral querendo ganhar o pasto, o ranger da porteira se abrindo, música pros seus ouvidos. A lâmina d’água, na beira do rio, seu espelho. Os dentes limpos com casca de juá, se lhes punha o frescor do campo na boca. Nosso personagem tem o nome daquele, que cuida das porteiras do céu. Aquele que, antes mesmo que o galo cantasse, negou a Cristo três vezes. Pedro de feições severas como à daquele. Rosto de pedra, de Pedro. Nem parece triste nem alegre, um alguém que apenas vive a vida. Um ser aparentemente conformado com o ato de viver pura e simplesmente.

A Dama. Numa casinha de taipa na encosta do rio, pela portinhola que dá acesso a cozinha surge Maria Madalena. É uma mulher bonita. Um olhar mais acurado se descobriria naquela Madalena, traços muito parecidos com os da mulher de Magdala lá da Judéia. Sua vasta cabeleira, de cabelos lisos, se derrama feito cascata negra sobre a espádua de seu colo firme. Assemelha-se a mulher judáica, também no jeito de olhar o mundo, de olhar os homens. Já sofreu tanto quanto àquela. Saiu da infância e da inocência cedo. Tudo nela também foi tão precoce. O corpo de mulher, o despertar do desejo nos homens. Seu corpo atraia os olhares masculinos, os olhares de cobiça dos machos. Ela toda é flor, uma rainha. Mulher como aquela ninguém nunca a terá por inteiro. Nunca a terão. Ainda que venha a ser possuída por todos. Nunca será de um alguém apenas. Povoa os sonhos de quem deitava-lhes olhar, sonhos que virariam fantasias, que poderiam virar pesadelos.

O Cavalo. Na entrada da Maniçoba, numa casa alpendrada, simples e bela, morava João, um belo mancebo de corpo escultural, de ancas firmes, nádegas arrebitadas, cabelos de crina, lembra um cavalo. Mora com sua tia Dona Ana. Ele é irmão de Madalena e ajuda na igreja do padre José de Albuquerque, é coroinha nas missas. Pedro nutria por João verdadeiro ódio. Apenas o aturava por ser seu cunhado. Tudo nele irritava-o! O jeito afeminado. Os segredos confidenciados com sua companheira. As conversas veladas, segredos compartilhados só dele e dela. O ciúme desbotava-lhe a alma, corroia-lhes as entranhas. Sentia às vezes como se o casal de irmãos conspirasse contra ele. Aquela intimidade, quase incestuosa, mexia com seus nervos. Por vezes, um fio gélido desceu-lhes espinha abaixo. Seguido de um nó na garganta quando encontrou Joãozinho - era como sua mulher chamava-o - deitado sobre seu colo, cabeça apoiada entre aqueles seios que ele julgava propriedade sua, na intimidade de seu quarto. Não admitia tal invasão de privacidade. Intimidades exageradas!  Engolia em seco. Pouco importava ser ele seu cunhado, irmão dela! Pra Pedro, ele era um macho como outro qualquer, pois tinha um cacho entre as pernas. Isso era suficiente pra cegá-lo de ódio e desconsiderar o grau de parentesco. Não existiam laços de família nessas horas. Falava mais alto, o homem possessivo, ciumento. Quando brigava com o companheiro era com seu irmão que ela buscava consolo. João sabia das intimidades do casal. Sabia quando e como aconteciam as relações sexuais entre eles, ou quando a irmã estava naqueles dias. Se algum dia já sentira atração sexual por outro homem,depois de Pedro ou se já pensara algum dia deixá-lo. João era seu confidente. Ambos cúmplice de segredos. Segredos que não ousavam guardar nem pra si mesmo. Contavam sempre um pra o outro. Ele a tinha em suas mãos, literalmente. Assim como ela, possuía sua alma feminina, mais que a de seu companheiro. Pedro é homem. E coração de homem é terra de ninguém.

Num sábado, Pedro de pé à porta da igreja matriz de Senhora Santana. Perdido estava em pensamentos, muito distante dali. Pensava em Madalena de como a conhecera, revirava suas memórias. Suas lembranças voltaram anos atrás quando viu sua mulher pela primeira vez. Conhecera ainda menina-moça quando Dona Ana, tia dela, trabalhava de cozinheira na casa grande da fazenda do seu patrão Cristóvão Rodrigues Gaia. Nas oportunidades que tinha quando passava por ali, ia lá pedir água pra beber só pra vê-la, iniciaram assim um namoro e daí foi questão de tempo para o pedido de casamento. Casou-se na capela de São José ali no sítio que lhe viu nascer, o Bebedouro.

O Bispo e a Torre. Nessa mesma época veio a Santana do Ipanema o bispo Dom Teófilo Bernadoni da arquidiocese de Penedo pra acompanhar o início da construção da nova torre da matriz de Senhora Santana, nessa ocasião rezou uma missa, e no seu sermão teria se referido com que altura iria ficar a igreja com aquela reforma: “A nova torre desta igreja terá 41 côvados de altura, isso caros fiéis, corresponde a mesma altura da arca de Noé. É do conhecimento de todos nós, de uma cheia do rio Ipanema, ocorrida no inverno passado, que chegou perto das escadarias dessa igreja. Para que Deus na sua bondade divinal, olhe pra esse povo com infinda misericórdia e nunca mais o rio venha a ameaçar a santa nave-mãe, igreja de Senhora Santana, firmaremos com o criador esta aliança de que a igreja tenha a altura da nau do patriarca Noé. Seus três vãos de portais de formato ogivais venha lembrar aos santanenses, os três pilares da igreja, o pai, o filho e o espírito santo. Também os três com quem Jesus esteve na transfiguração, Elias, Abraão e Moisés, assim seja!”  
  
O padre da freguesia de Senhora Santana recebeu o bispo na casa paroquial. E com ele esteve a confessar-se. O padre contou ao Bispo que teve um sonho, uma revelação. Sonhou que entrava na capela do Bebedouro e um anjo de luz lhes apareceu dizendo:

“-José, sabemos desde o alto, que é de profunda vontade tua, que a nova igreja da vila da Ribeira do Panema, a matriz que ora ganhará torre alta, tivesse como padroeiro o santo esposo da virgem Maria, que também tu, trás no teu nome. Mas é da vontade do filho de Deus é que a padroeira desse povo seja a sua avó Ana. Deves falar com o fazendeiro Rodrigues Gaia dizei a ele que chegou recentemente no Convento dos Franciscanos Capuchinhos na cidade de Salvador uma imagem de Senhora Santana vinda de Portugal especialmente pra isso. Ele deve ir a Bahia adquirir essa imagem e trazê-la a esta vila que se emancipará da comarca de Porto da Folha, que prospera sob a égide de Nossa Senhora do Ó.”

Pedro manifestou sua vontade de confessar-se com o bispo. Confessou-se de um pecado mui grave que lhe punha tribulações na alma: O desejo de tirar a vida de seu cunhado João. Foi muito aconselhado a destituir-se desse pensamento ignóbil e prometeu não fazer aquilo, e do presbítero recebeu a indulgência e uma penitência, para que todos os anos reunisse os vaqueiros, e rezassem com o pároco novenário a Santa Luzia, que passaria daquela data a ser a protetora oficial do largo do Bebedouro, uma imagem sua deveria  figurar naquela capela.

Muitos anos se passaram desde então.  João foi levado pelo padre José pra o convento de Penedo e acabaria por ordenar-se padre. Nunca mais voltaria a Santana do Ipanema. Ali descobriria que seu pai era um rico e aventureiro comerciante, que nunca assumiu a paternidade, fruto de um caso extraconjugal com uma baronesa do cacau.  Pedro perderia Madalena para sempre por conta de uma gravidez complicada. A criança, um varão, teria sido criada por Dona Ana, a quem poria o nome de Francisco e na idade madura se tornaria intendente municipal.  Pedro morreria sem saber nunca que Madalena perdera a virgindade por conta de um estupro do seu patrão Cristóvão Gaia a quem devera a vida inteira respeito e subserviência, era dele filho bastardo. E que João nunca fora irmão de verdade de sua esposa que ela na verdade, era filha legítima de Dona Ana, que há muito está viúva de Seu Joaquim. Nada disso sabia Pedro. Só quem sabia mesmo dessa história eram três pessoas, o padre João, Dona Ana e o patriarca fundador da vila de Sant’Ana, Cristóvão Rodrigues Gaia. 

Fabio Campos