No tempo em que Santana do
Ipanema se resumia a um arruado de casebres, que se iniciava lá pras bandas do Bebedouro e
vinha, se alternando entre grotas e alamedas, até a velha rua da cadeia. Vivia
em terras da antiga fazenda Picada, dos irmãos Rodrigues Gaia, um peão que
atendia pelo nome de Pedro. Aqui no sertão, além de ser o homem que lida com a
vacaria; o menor em conhecimento num grupo, um aprendiz, dir-se-á também que é
um peão. No jogo de xadrez, uma peça assim denominada, é impedida pelas regras
de mover-se pra trás, também nesse ponto o peão do jogo se parece com peão do
sertão.
O
Peão. Muito antes dos primeiros raios de sol derramar seu clarão por cima da
terra, por cima dos homens e de toda criatura que Deus pôs no mundo começa o
dia pra ele. Seu despertar é com o cantar do galo. Banha o rosto com o orvalho
da manhã. O pipilar dos passarinhos, o mugido do gado preso no curral querendo
ganhar o pasto, o ranger da porteira se abrindo, música pros seus ouvidos. A
lâmina d’água, na beira do rio, seu espelho. Os dentes limpos com casca de juá,
se lhes punha o frescor do campo na boca. Nosso personagem tem o nome daquele,
que cuida das porteiras do céu. Aquele que, antes mesmo que o galo cantasse,
negou a Cristo três vezes. Pedro de feições severas como à daquele. Rosto de
pedra, de Pedro. Nem parece triste nem alegre, um alguém que apenas vive a
vida. Um ser aparentemente conformado com o ato de viver pura e simplesmente.
A Dama. Numa casinha de taipa na
encosta do rio, pela portinhola que dá acesso a cozinha surge Maria Madalena. É
uma mulher bonita. Um olhar mais acurado se descobriria naquela Madalena,
traços muito parecidos com os da mulher de Magdala lá da Judéia. Sua vasta
cabeleira, de cabelos lisos, se derrama feito cascata negra sobre a espádua de
seu colo firme. Assemelha-se a mulher judáica, também no jeito de olhar o
mundo, de olhar os homens. Já sofreu tanto quanto àquela. Saiu da infância e da
inocência cedo. Tudo nela também foi tão precoce. O corpo de mulher, o
despertar do desejo nos homens. Seu corpo atraia os olhares masculinos, os
olhares de cobiça dos machos. Ela toda é flor, uma rainha. Mulher como aquela
ninguém nunca a terá por inteiro. Nunca a terão. Ainda que venha a ser possuída
por todos. Nunca será de um alguém apenas. Povoa os sonhos de quem deitava-lhes
olhar, sonhos que virariam fantasias, que poderiam virar pesadelos.
O Cavalo. Na entrada da Maniçoba,
numa casa alpendrada, simples e bela, morava João, um belo mancebo de corpo
escultural, de ancas firmes, nádegas arrebitadas, cabelos de crina, lembra um
cavalo. Mora com sua tia Dona Ana. Ele é irmão de Madalena e ajuda na igreja do
padre José de Albuquerque, é coroinha nas missas. Pedro nutria por João
verdadeiro ódio. Apenas o aturava por ser seu cunhado. Tudo nele irritava-o! O
jeito afeminado. Os segredos confidenciados com sua companheira. As conversas
veladas, segredos compartilhados só dele e dela. O ciúme desbotava-lhe a alma,
corroia-lhes as entranhas. Sentia às vezes como se o casal de irmãos
conspirasse contra ele. Aquela intimidade, quase incestuosa, mexia com seus
nervos. Por vezes, um fio gélido desceu-lhes espinha abaixo. Seguido de um nó
na garganta quando encontrou Joãozinho - era como sua mulher chamava-o -
deitado sobre seu colo, cabeça apoiada entre aqueles seios que ele julgava
propriedade sua, na intimidade de seu quarto. Não admitia tal invasão de
privacidade. Intimidades exageradas!
Engolia em seco. Pouco importava ser ele seu cunhado, irmão dela! Pra
Pedro, ele era um macho como outro qualquer, pois tinha um cacho entre as
pernas. Isso era suficiente pra cegá-lo de ódio e desconsiderar o grau de
parentesco. Não existiam laços de família nessas horas. Falava mais alto, o
homem possessivo, ciumento. Quando brigava com o companheiro era com seu irmão
que ela buscava consolo. João sabia das intimidades do casal. Sabia quando e
como aconteciam as relações sexuais entre eles, ou quando a irmã estava
naqueles dias. Se algum dia já sentira atração sexual por outro homem,depois de
Pedro ou se já pensara algum dia deixá-lo. João era seu confidente. Ambos
cúmplice de segredos. Segredos que não ousavam guardar nem pra si mesmo.
Contavam sempre um pra o outro. Ele a tinha em suas mãos, literalmente. Assim
como ela, possuía sua alma feminina, mais que a de seu companheiro. Pedro é
homem. E coração de homem é terra de ninguém.
Num sábado, Pedro de pé à porta
da igreja matriz de Senhora Santana. Perdido estava em pensamentos, muito
distante dali. Pensava em Madalena de como a conhecera, revirava suas memórias.
Suas lembranças voltaram anos atrás quando viu sua mulher pela primeira vez.
Conhecera ainda menina-moça quando Dona Ana, tia dela, trabalhava de cozinheira
na casa grande da fazenda do seu patrão Cristóvão Rodrigues Gaia. Nas
oportunidades que tinha quando passava por ali, ia lá pedir água pra beber só
pra vê-la, iniciaram assim um namoro e daí foi questão de tempo para o pedido
de casamento. Casou-se na capela de São José ali no sítio que lhe viu nascer, o
Bebedouro.
O Bispo e a Torre. Nessa mesma
época veio a Santana do Ipanema o bispo Dom Teófilo Bernadoni da arquidiocese
de Penedo pra acompanhar o início da construção da nova torre da matriz de
Senhora Santana, nessa ocasião rezou uma missa, e no seu sermão teria se
referido com que altura iria ficar a igreja com aquela reforma: “A nova torre
desta igreja terá 41 côvados de altura, isso caros fiéis, corresponde a mesma
altura da arca de Noé. É do conhecimento de todos nós, de uma cheia do rio
Ipanema, ocorrida no inverno passado, que chegou perto das escadarias dessa
igreja. Para que Deus na sua bondade divinal, olhe pra esse povo com infinda
misericórdia e nunca mais o rio venha a ameaçar a santa nave-mãe, igreja de
Senhora Santana, firmaremos com o criador esta aliança de que a igreja tenha a
altura da nau do patriarca Noé. Seus três vãos de portais de formato ogivais
venha lembrar aos santanenses, os três pilares da igreja, o pai, o filho e o
espírito santo. Também os três com quem Jesus esteve na transfiguração, Elias,
Abraão e Moisés, assim seja!”
O padre da freguesia de Senhora
Santana recebeu o bispo na casa paroquial. E com ele esteve a confessar-se. O
padre contou ao Bispo que teve um sonho, uma revelação. Sonhou que entrava na
capela do Bebedouro e um anjo de luz lhes apareceu dizendo:
“-José, sabemos desde o alto, que
é de profunda vontade tua, que a nova igreja da vila da Ribeira do Panema, a
matriz que ora ganhará torre alta, tivesse como padroeiro o santo esposo da
virgem Maria, que também tu, trás no teu nome. Mas é da vontade do filho de
Deus é que a padroeira desse povo seja a sua avó Ana. Deves falar com o
fazendeiro Rodrigues Gaia dizei a ele que chegou recentemente no Convento dos
Franciscanos Capuchinhos na cidade de Salvador uma imagem de Senhora Santana
vinda de Portugal especialmente pra isso. Ele deve ir a Bahia adquirir essa
imagem e trazê-la a esta vila que se emancipará da comarca de Porto da Folha,
que prospera sob a égide de Nossa Senhora do Ó.”
Pedro manifestou sua vontade de
confessar-se com o bispo. Confessou-se de um pecado mui grave que lhe punha
tribulações na alma: O desejo de tirar a vida de seu cunhado João. Foi muito
aconselhado a destituir-se desse pensamento ignóbil e prometeu não fazer
aquilo, e do presbítero recebeu a indulgência e uma penitência, para que todos
os anos reunisse os vaqueiros, e rezassem com o pároco novenário a Santa Luzia,
que passaria daquela data a ser a protetora oficial do largo do Bebedouro, uma
imagem sua deveria figurar naquela
capela.
Muitos anos se passaram desde
então. João foi levado pelo padre José
pra o convento de Penedo e acabaria por ordenar-se padre. Nunca mais voltaria a
Santana do Ipanema. Ali descobriria que seu pai era um rico e aventureiro
comerciante, que nunca assumiu a paternidade, fruto de um caso extraconjugal
com uma baronesa do cacau. Pedro
perderia Madalena para sempre por conta de uma gravidez complicada. A criança,
um varão, teria sido criada por Dona Ana, a quem poria o nome de Francisco e na
idade madura se tornaria intendente municipal.
Pedro morreria sem saber nunca que Madalena perdera a virgindade por
conta de um estupro do seu patrão Cristóvão Gaia a quem devera a vida inteira
respeito e subserviência, era dele filho bastardo. E que João nunca fora irmão
de verdade de sua esposa que ela na verdade, era filha legítima de Dona Ana,
que há muito está viúva de Seu Joaquim. Nada disso sabia Pedro. Só quem sabia
mesmo dessa história eram três pessoas, o padre João, Dona Ana e o patriarca
fundador da vila de Sant’Ana, Cristóvão Rodrigues Gaia.
Fabio Campos
Nenhum comentário:
Postar um comentário