Esquizofrenia - Chopin nº 5


Professor Einstein, dava uma pausa na sua caminhada matinal, sentado a um banco, na praça da Bandeira. Costumava sair levando um livro, pegava qualquer um na estante. Sempre assim, começava a ler determinado autor, e desistiria caso se tornasse enfadonho. A leitura era pra exercitar o intelecto, “para acordar os neurônios” dizia. No momento lia, A Hora da Estrela de Clarice Lispector. Fechou o livro. 

Pra onde fora as cores? O que acontecera com as cores das coisas? Tudo tornara-se insuportavelmente desbotado. Nuvens mofadas, num céu incinerado. As casas todas, grafite, como se feitas a lápis. A rua, numa vã tentativa de imitar a cor de pedra que um dia tivera. A cor asfalto foi parar sobre a pele das pessoas. E dessas, não dava pra ver-lhes nitidamente a fisionomia. Todos andavam como se caminhassem em câmara lenta, pareciam não fazer parte da cena, feito vultos intrusos, flutuando, vindos de uma outra dimensão. Certeza tinha que não estava louco. Até porque não era a primeira vez, já perdera a conta das vezes que aquilo acontecera. Talvez nas outras ocasiões estivesse sob forte tensão emocional e não percebera tão nitidamente como naquele momento. 

Mas é claro, pra tudo tem que existir uma explicação. Sempre que o mundo lhes pareceu sem cor, havia um pensamento a amofinar-lhe as entranhas. Desejou que alguém lhe reconhecesse e lhes dirigisse um cumprimento, talvez assim retornasse, daquele estado letárgico. Melhor não. Não estava a fim de falar com ninguém. Rejeitou com veemência a ideia de iniciar uma conversa com alguém, tanto que um calafrio percorreu-lhe a derme. Ativando as células, uma descarga elétrica percorrendo o corpo via coluna espinhal.  Uma vez no cérebro a centelha de fogo tornou gélida, nuca, testa e têmporas. Um fio de suor trouxe-lhe a realidade. Um sol vinha vindo. E derramava-se, preguiçosamente por cima das coisas que existiam para a maioria das criaturas, assim como por sobre o ápice piramidal da capela de senhora Assunção.

Havia um pensamento fixo. E isso o impelia a voltar pra casa. Parecia também haver um incômodo. Embora não tivesse certeza do que realmente o incomodava. Talvez fosse a inveja que sentia das pessoas que vivem suas vidas pura e simplesmente por viver. O carroceiro que passava, tão resignado em ser carroceiro, ia gastar a vida nos afazeres cotidiano da porta do mercado da carne. O vendedor de pipoca, que lá ia pra esquina, angariar centavo a centavo, na venda do seu produto. Por acaso pensariam aqueles em dias melhores? Perspectivas para si. Achavam-nas medíocres. Só sentiu-se um pouco mais seguro dentro de casa.

- Einstein! Venha tomar café...
- Só depois do banho.
- As contas pra pagar hoje, estão na porta da geladeira.
- É tudo isso que está aqui?!
- Só isso meu querido!
- Pôxa! Desse jeito! Não tem salário que dê...
- Topa assaltar um banco?
- Droga! Porque tem que falar tamanha besteira!
- Calma! Estressado...

Ficou perplexa diante da reação dele, tinha dito só de brincadeira. Por que assim reagira? Sentira-se vasculhado bem dentro de seu ser. Viu-se invadido nos seus mais secretos pensamentos, num lugar em que ninguém tinha acesso, só ele. E mesmo assim só nos dias muito sombrios. Pois a idéia de roubar um banco, ele a tinha. Não de brincadeira, mas de verdade, tudo planejado minuciosamente. Desde a hora de entrada até a fuga. Vez ou outra ia lá, na gaveta de sua mente onde essa idéia estava bem guardada, escondida. Analisava e sempre a revisava, tudo nos menores detalhes. Sempre descobria falhas, refazia tudo mentalmente, corrigia o que possivelmente poderia dar errado, tornava a guardá-la. Se tudo desse certo como previa nem precisaria matar ninguém. Por isso aquela reação, ao ver exposta, trazida dos recônditos do seu ser, um segredo que julgava só seu. A idéia que tinha de roubar um banco.  

Crime e Castigo de Fiodor Dostoievsk a leitura que iniciara, sentado nos imensos batentes da arquibancada do ginásio de esporte Cônego Luiz Cirilo Silva. Não lia mais, porém não fechou o livro, passeava com as vistas por cima das palavras. Gostava dessa brincadeira, fixava os olhos nessas - “Crime” e “Castigo” – Diziam coisas dentro do contexto. E lidas isoladamente? Amava as palavras. Escritas, possuíam sabor. Umas adocicadas, outras azedas. Faladas, vibravam no ar. Faziam-nos um afago, ou davam-nos chicotadas. Acariciava a brancura das páginas, inalava o cheiro inebriante do nanquim exalado das palavras impressas.

Sabia que tinha em suas mãos o poder de mudar tudo que o rodeava. Sentia que só ele mesmo poderia mudar aquela situação que julgava estar colocado. Embora não tivesse certeza disso, menos ainda vontade pra realizá-lo. Odiava-se por isso. Odiava-se por não ter certeza das coisas. Ódio ao comodismo, a índole permissiva, tão perniciosa. Ao mesmo tempo, inquietante e terrivelmente acomodada. Esperar, esperar, era o que fazia da vida. Esperava demais que as coisas acontecessem por elas mesmas. Detestava a maldita ideia de acreditar em destino. Nada de relevante via no trabalho que realizava todos os dias. Tudo apoiado num falso moralismo. E havia uma crítica construtiva, que fazia de si mesmo. O auto-elogio, um maldito câncer que fazia se consumir, num apodrecer-se de contentamento. Os cursos que já fizera que só serviam pra encher gavetas, reais e mentais. 

Não, não iria rememorar a trajetória de sua vida, isso era sempre muito deprimente. Até porque sobrevinha sempre com muita ênfase os maus momentos, pontilhando cada palmo de sua existência, As boas coisas, além de esporádicas, dificilmente lembraria. Por que não era como as outras pessoas que simplesmente viviam suas vidas e as gastavam a seu bel-prazer? Tudo o que tinha era migalhas de vida. Miseravelmente agarrado aquela condição feito avaro verme.  Se não era uma pessoa má; por que assim se sentia? Filosofou de si e pra si que sofrimento é caminho para o alto. Ódio a filosofia barata, puro ópio da religião? Precisava encontrar um desses livros de alto ajuda. Tinha o tão recomendado, O Diário de Um Mago de Paulo Coelho, emprestado de uma amiga. Acha que o jogou em algum lugar, quando chegasse à casa, iria procurá-lo. Se o encontrasse talvez começasse a ler.

Não sabia o porquê, mas estava se sentindo terrivelmente infeliz naquela segunda-feira. Não existia um motivo. Não entendia porque precisava de um miserável motivo, pra se sentir assim. Não hesitaria em chorar em plena sala de aula. Tudo dependeria deles.

- Professor o que o senhor tem?
- Como assim?
- Não sei. O senhor não parece bem.
- Nada! Não tenho nada! São as preocupações da vida que infelizmente acabamos trazendo pra sala de aula. Gente por favor, desculpem-me! Por hoje é só...

Depois da escola foi à igreja. Precisava confessar-se. Por dias seguidos fora à igreja, no fundo achava bom não encontrar o pároco. Rememorava a listas dos pecados que escolhera contar, se por acaso encontrasse o padre. Contaria da idéia fixa de morte que tinha. Será que contaria, do desejo que já sentiu de matar, de morrer? Pensava talvez, na expressão de perplexidade do presbítero se resolvesse contar todos os pecados. Precisava pelo menos dizer, do ódio que sentia por sua mãe, de quando a visitava. Sentados, ela a uma poltrona, ele a uma cadeira. Diante do silêncio dos dois, a sexagenária viúva, acometida de alzheimmer, começava a contar repetidamente as mesmas histórias. De anos ruins de sua infância, de anos de seca e fome, e de como tio e primo dela haviam cometido suicídio. Contava esquecia e tornava a contar. O ódio por conta de que repisava tanto aqueles momentos ruins, com riquezas de detalhes.

-Meu tio chamava-se Manoel. Era dono de muitas terras. Um dia chamou os empregados, distribuiu as tarefas de cada um na roça. Entrou em casa. Foi até o espelho. A mulher pensou que ele fosse fazer a barba. Passou a navalha no pescoço, o jato de sangue espirrou na parede. Caiu morto.
Vinte anos depois, com o filho dele, do mesmo jeito. Foi em casa, deu um abraço na esposa e na filha, depois foi pra fazenda. Na mesma casa grande onde o pai se matou. Trancou-se no quarto, tirou os sapatos deixou ao pé da cama e deitou-se. Pegou o revólver apontou pra o próprio ouvido e apertou o gatilho.  

Não considerava a si mesmo, nem a sua mãe pessoas más, embora, gostaria imensamente de entender porque se lhes sobrevinham, quase num mórbido prazer, os pensamentos ruins, os bons que um dia vivera, raramente revivia. E se em si, lhes vinha uma adversidade, a exemplo da faltava dinheiro pra suprir as despesas mais prementes, achava muito natural que pensasse em cometer um delito, como assaltar um banco, ainda que outras pessoas pudessem pagar com a vida, caso o desatino não saísse exatamente como havia planejado. Mesmo já passado dos trinta, nunca se acostumara com aquela idéia de Deus, concebida desde a infância. Um Deus com cara de velho barbudo, sisudo e pronto para punir-nos caso cometessemos pecados. Um Deus frio, sem coração, impiedoso que não quer que julguemos os outros, mas que não hesitaria em nos julgar e nos condenar. Ódio ao Deus humano, feito nossa imagem semelhança possuidor também de nossos defeitos.

No silêncio da casa materna, onde tudo permanecia impregnado de passado. Encontrou na instante da sala, um livro que julgava perdido, Insônia de Graciliano Ramos. Entregou-se a leitura. Não precisava olhar, muito embora sentisse, por cima dos móveis, das louças, da xícara de café. No som que fazia a colherzinha no descanso do pires, depois de misturar o açúcar. No sorver do líquido quente. Em tudo via a presença do velho pai, que de lá de dentro do retrato, na moldura oval, lhe fitava. Olhar sereno, alheio a tragicidade daquele instante. Envolto numa aura de vulto histórico como quem dizia: contemplo agora o que fiz. O mundo iniciou nauseante rodopio. Como um imenso carrossel de tudo, de todas as coisas. O ar doía ao entrar nos pulmões, mudado de estado, não mais gas, agora líquido, e em ebulição. Entrando pelas narinas, feito larva incandescente de vulcão. De certo destroçaria os pulmões quando chegasse ali. Veias e artérias arrebentariam a qualquer momento. O coração, em instantes explodiria. O cheiro nauseabundo do mundo. Certeza não tinha, se dormira, se desmaiara.

-Einstein meu filho! Levante-se daí, vá pra cama. Já é noite.

A semana, a um só tempo findava e se iniciava. Era domingo. De dentro de casa dava pra ouvir o silêncio por cima das coisas, por cima das pessoas. Entregues de corpos, ossos, almas e músculos, totalmente, a uma feliz preguiça. O mundo parece aguardar, numa eterna iminência de acontecer algo trágico. São assim os dias de domingo. Se parece esses dias, com aqueles infinitésimos segundos em que o filme fica mudo, antes de explodir uma bomba atômica. O silêncio o incomodava. Bastava se fazer, e uma voz, sua voz (conhecia pelo timbre) vinha lhe incomodar, mesmo sem falar nada. Cobrar-lhe-ia um balanço emocional da semana que se fora. Atitudes, sentimentos, o que fizera consigo mesmo? Num velho álbum de artes, Van Gohg apareceu-lhe tristemente com a orelha decepada. É bem provável que tudo se acabe num dia como esse. Um dia assim, em que o mundo parece está atirado às baratas. Encheu a casa de Chopin. Franz Kafka, A Metamorfose, nas mãos.


Fabio Campos  

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