O Pacto MMX (d.C.)

A igreja Matriz de Senhora Santana, século e meio de história contemplava do alto de sua majestosa torre, Santana que desce pro Ipanema. Santana de ruas que sobem, de ruas que descem, num bailado de paralelepípedos. Tudo feito à mão. Mãos calejadas. Pedra cortada, talhada, vendida a dois tostões. Pedra que só ia adquirir valor nas contas oficiais. 

O Rei 
Quando Doutor Menelau Reis, se acordou, já passava de onze horas da manhã. A casa do prefeito, ficava na Rua Coronel Lucena Maranhão. Apenas a alguns passos, do prédio da Prefeitura Municipal. O chefe de gabinete foi até lá. Entrou casa adentro, colou nos calcanhares do gestor municipal, não parava de falar. Colocava-o a par dos compromissos que o aguardava no paço municipal. O prefeito foi até o quarto e passou direto pro banheiro. Hora e meia, ali. Uma mesa posta o aguardava. Apareceu de novo, tomou um gole de café, acendeu um cigarro. Não falou palavra, com ninguém. Saiu pra prefeitura. Seguia-o, o cortejo, sua assessoria, dois ou três bajuladores de plantão e vários mendicantes. Com o secretário de obras, ia falar sobre o projeto de construção do mercado modelo no largo da ponte do urubu que não avançava, porque um inimigo político, o coletor estadual Heitor Matias Vieira não vendia, nem aceitava a desapropriação de um terreno dele, naquela área. Terreno, muito importante pra continuidade da obra. 

E então, como pegar Heitor? Se ele não precisava do município pra nada! O cargo do estado lhe dava autonomia. Emprego bom, bom salário. Além do mais, era de família tradicional. Tinha fazenda, muito gado, dinheiro no banco. Influência política: amigo de deputados e do governador. Morava sozinho, também na Avenida Coronel Lucena, a esposa fora embora pra Maceió com os filhos. Todos os dias, ia pra fazenda. Todo mundo tem um ponto fraco - Pensava Menelau - Só precisava descobrir, qual era o dele. 

A Dama e o Valete 
Na serra aguda, ali de frente, ficava a chácara do prefeito. Helena, estava naquela manhã junto a cocheira, anexa ao curral. Helena era uma mulher bela. Um gracioso chapéu recobria-lhe a cabeça. Enquadrando-a em moldura diáfana. Vestida numa blusa vaporosa e leve, que lhe desenhava os seios graciosos. Uma calça jeans demarcava suas curvas, território alheio. De onde a imaginação masculina, intrusa, jamais devia ultrapassar. Mesmo assim alguns se aventuravam. Seria insensatez até, não compará-la àquela Helena dos sonhos dos homens troianos. Aquela Helena era da caatinga do sertão. Helena a dama. A primeira dama do município. Naquela manhã resolvera montar um belo cavalo. Dera ordem a Aparecido, pra que providenciasse outra montaria e a acompanhasse, não gostava de cavalgar sozinha. Páris, um arauto de corpo de bronze, parecia bailar ao lombo do cavalo. Um príncipe e uma rainha, saídos de um conto de fadas, comparação perigosa. Uma luz tênue os envolvia, uma densa neblina esvoaçante no ar. A luz do sol, traspassando o cenário dando aspecto de um mundo irreal, imaginário. Páris se pudesse consolidava aquele momento. Eternizaria como nos contos mágicos contados por uma professora que um dia tivera no primário.

Os Cavalos 
Heitor Matias era um Cavalo, indomável, que não se deixava dominar por montaria. Jamais dera o pescoço à canga. Cabeça dura, não ouvia ninguém. Achava que nunca precisaria de conselhos. Sabia exatamente o que devia e o que precisava fazer, não importando de que situação estivesse falando. Era assim, homem, ora sisudo, ora brincalhão. Ia à troça se o momento assim o permitisse. Na praça da Bandeira reunido com amigos gostava de fazer piada do prefeito de sua terra. Menelau Reis outro cavalo. A estranha e contundente comparação servia pra enfatizar a personalidade forte, bruta, daqueles homens talhados no mármore do orgulho e na frieza de pensamentos. Não dava pra classificá-lo de irracional, pois o que mais usava era a razão, o raciocínio. Não dava pra dizer que eram destituídos de emoção, porque a própria frieza e a indiferença, também eram emoções. 

Menelau 
O prefeito, se acordou, consultou o relógio de pulso. Passava de uma hora da madrugada. Tentou coordenar as idéias. Onde se encontrava, naquele momento? No prostíbulo de Eneida, às margens da BR 316, próximo a vila de Areia Branca. Colocou-se sentado a cama, viu que na cama havia alguém. De fato havia uma mulher nua, dormindo ao seu lado. Não lembrava quem era. A mulher estava de bruços e virada para o lado contrário. De modo que ele não via seu rosto, somente uma vasta cabeleira negra e sedosa. Era uma mulher de corpo formoso. Rebuscou as lembranças: Chegara ali completamente bêbado. Saiu da cama, só aí notou que também estava nu. Apossou-se de uma toalha, pegou água mineral num frigobar. Tentou lembrar, dos fatos acontecidos antes dali. Retomar até onde lembrava, estava na prefeitura e o amigo Virgilio chegou, por volta das cinco da tarde. Depois de tomarem várias cervejas na Sorveteria “O Pinguim”, fora em casa, pegara aquele litro de uísque. E agora estava ali, no cabaré de Eneida. Resolveu que iria passar a noite. Não pretendia voltar pra Santana aquela hora da madrugada. Vestiu-se e saiu do quarto, foi até o bar na parte da frente do prostíbulo. Eneida aproximou-se e foram os dois pra uma mesa. 

Eneida 
Pra dizer quem ela é, precisaremos voltar quinze anos, no tempo. Eneida era uma jovem garota de dezessete anos, uma galeguinha sarará, comprida e magra. Os peitos, duas pequenas bolinhas que marcavam a blusa vaporosa. Pernas longas e finas. Os quadris, só promessa de quando se tornasse uma mulher. O ventre liso, sempre exposto, devido a suas roupas extravagantes. Estudava no Ginásio Santana. Após as aulas, ia pra Praça da Bandeira, flertar com os meninos estudantes. Um moço da cidade se engraçou daquela garota. O estudante, do terceiro ano de contabilidade, Heitor Matias, rapaz metido a garanhão. A fama de conquistador e namorador ia longe, muitas meninas, já tinham sido, sua namorada. As filhas dos amigos de seus pais, empresários e comerciantes. Essas, ele respeitava, e o namoro não passava de muitos beijos e amasso na porta de casa. Não pensava em casamento. Pensava em sair de Santana, se formar em uma faculdade da capital, queria ser agrônomo. Quando botou os olhos na moça, quis a todo custo ficar com ela. Se engraçou da galega Eneida, e jogou todo seu charme, não poupando galanteios a menina. Assim que teve oportunidade de conversar nos corredores da escola iniciaram um namorico. As amigas até que tentaram alertá-la para o perigo. Moço da cidade, quando quer ficar com menina do sítio, o interesse é outro. 

Na Festa da Emancipação política do município. Após as apresentações na Praça da Bandeira. Os dois, tomaram muitas cervejas na sorveteria “O Pinguim”. Na época ele já tinha carro, e a chamou pra saírem, só os dois. Ela não aceitou, só iria se junto fosse uma amiga. Aceitou, enquanto sua cabeça ia traçando um plano pra ficar a sós com ela. Levou as duas pra outro bar afastado. E depois de muitas rodadas de cervejas, as duas estavam bêbadas. Ele se prontificou pra levá-las em casa. Não adiantou dizer que não, as convenceu. E Heitor mostrou o tipo de homem covarde que sempre fora. Só se revelando nas sombras, quando a vítima está dominada e indefesa. Primeiro deixou a amiga em casa. Em vão tentou relutar: um rapaz de porte atlético, como era Heitor no vigor da juventude, metro e noventa de muito músculo e força bruta. Debalde uma frágil ninfa, nas garras de voraz gavião. Ele a desvirginou. A possuiu, contra sua vontade. No lugar do coração de Eneida ficou o ódio. Sevado à dezoito anos, ódio, por aquele homem, que marcaria daquele dia em diante, o resto dos anos de sua vida. Disse a si mesmo que um dia se vingaria. Heitor nem sabia, mas esse dia estava bem próximo. 

Um Jogo 
Menelau gostava de jogar baralho, não era dos bons, mas jogava. Frequentava a sala vip do Tênis Club Santanense. Passava dias seguidos jogando sem parar. Só quando estava no limite da estafa física e mental, parava. O que ganhava dos colegas de carteado, não se comparava as pequenas fortunas que já perdera. Sentou-se a mesa com Eneida. Ela providenciou dois maços lacrados de Copag. Conversavam enquanto distribuía as cartas. Eneida tornara-se em uma mulher formosa. Agora aos trinta e poucos era uma mulher completa. Desejada pelo prefeito. Só tivera uma filha, que de modo algum lhe havia tirado a formosura. A filha se encontrava longe dali. Em São Paulo, bem casada, bem sucedida. Outro pesadelo repousava sobre a vida de Eneida. Mais uma história escabrosa, que teve a participação de Heitor. Usou dos mesmos artifícios contra a mãe na juventude, ele usara com sua filha, desta vez, depois de velho. Por acaso ele encontrou-se com Cassandra, a filha de Eneida, na Santa Casa de Misericórdia em Maceió. Ofereceu-lhe uma carona. A moça não viu mal nenhum nisso, aquele homem era influente e respeitado. -Que mal havia em aceitar uma carona? A demais Junior um amigo, que morava no povoado Areia Branca também viria. Foi sua perdição, dar confiança a quem não merecia. Foi só seu amigo descer no povoado, e Heitor partiu pro ataque: Fazendo-lhe uma pergunta: 

-De quem é filha, essa menina tão bonita?
Quando ela disse, acabou rindo à beça. Cassandra não sabia, porque ria. Só entendeu quando viu o revólver apontado pra ela. Seguido da ordem pra tirar toda a roupa. Era noite. Chorando muito, obedeceu. E ele fez tudo exatamente como fizera com a mãe. Desvirginou-a com brutal estupro. Ainda chorando a menina chegou a casa. A mãe ficou alucinada. Ainda assim determinou que a filha ficasse calada, não dissesse nada daquilo a ninguém. E ambas guardaram o segredo como havia determinado. Tocaram a vida normalmente. Tempos depois Cassandra conheceu um rapaz que veio de São Paulo. Namoraram e casaram, e foram embora. 
O pôquer do prefeito e Eneida continuava. Lembrava de Heitor, porque só era em que o prefeito falava o tempo todo. Já passava de três da madrugada quando uma ideia lhe ocorreu:

-E se fizesse uma aposta de peso com o prefeito?
–Vamos apostar alto prefeito?

Sempre jogava apostado com a dona do cabaré. Ela tinha algum dinheiro guardado. Considerava o prefeito um freguês, no pôquer. Numa rodada de dez, sempre ganharia mais de seis partidas. Era um jogo equilibrado, com uma pequena vantagem pra ela. Mas ele não perdia a esperança de reverter esse quadro em seu favor. Nunca se sabe. Jogo é jogo! O prefeito olhou pra Eneida curioso. Será que teria a oportunidade de conseguir o que tanto queria? 

–Vamos Eneida!... Deixe de suspense!... 
–A aposta é a seguinte: Se eu perder, passo uma noite com você! Disse ela. 
–Com tudo que eu tenho direito? Quis ele saber. 
–Sim faremos amor! Meu querido! Do jeito que você quiser! Por uma noite inteirinha... 
–E se eu perder?... 
–Manda matar Heitor. 

Ele ficou extasiado. A primeira reação foi rir muito. Riu a bandeiras despregadas. Ela continuou séria. Menelau foi ao quarto, e pegou o litro de uísque . Tomou um trago, tão grande, no próprio gargalo da garrafa, que o conteúdo deu uma baixada considerável. Voltou à mesa. Agora já não ria mais. Depois ouviu Eneida explicar porque desejava tanto aquela morte. Um pacto então foi firmado e assinado em folhas de caderno.
Uma semana depois Heitor Matias estava sentado à sala de casa, era noite dessas calorosas de verão. Depois da janta, alguém chamou-lhe à porta. Ao abrir perguntando quem era, recebeu três balaços de trinta e oito. Meio século já se passou desde então. E o Mártir dos Vieira, hoje é apenas nome de rua em Santana. Nome de rua que já causou até certa polêmica. Por que Mártir? Se seu nome era Matias? 

O Pacto MMX d.C. (depois de Cristo) 
Vinte séculos antes lá na Galiléia, terra de Jesus, outro rei jogador, também apostara alto. Em um jogo perigoso. Herodíades, cheia de ódio, combinou com Salomé que pactuou com o rei. Pediu num prato a cabeça de João, o profeta. O rei pra não voltar palavra atrás, assim procedeu. Tudo por uma noite de prazer, por uma dança sensual. Em Santana, Heitor tinha esperança de subir ao poder, de ser o Messias de sua terra. João o batista, anunciava a verdade e denunciava a luxúria e o pecado nas altas cúpulas do governo. Tiveram ambos mortes planejadas. Odiados por denunciar contra os governantes em público. Em Santana um ímpio. Na Judéia um justo. Um proclamava as margens do Jordão, o outro nas praças às margens do Ipanema. 

Fabio Campos

Nenhum comentário:

Postar um comentário