A Maldição

A Maldição É dessas histórias, que não se costuma contar a qualquer um, a qualquer hora, impunemente. Sem correr o risco de ser tachado de mentiroso. Preciso pois, que preparemos o espírito pra contá-la. Bem como, preparado esteja o coração de quem vai escutar. Na verdade a história, de uma garota comum. Eudócia é o nome dessa menina. 

Eudócia  Nasceu no meio de uma família pobre, como é a maioria das famílias, dos roceiros de nosso sertão. Uma menina, como qualquer jovem de hoje em dia. Ajudava nos afazeres domésticos, estudava e sonhava. Nos seus sonhos, um príncipe encantado lhes aparecia, montado em seu cavalo, e a resgatava, levando-a embora daquela vida. Numa geração de treze, era a oitava. Apenas ela, do sexo feminino. Uma ruiva flor de açucena, nascida entre abrolhos e facheiros. 

A Casa de Eudócia  Ficava no sítio Mulungu, à margem da estrada que leva à Camoxinga dos Teodósio. Na altura da localidade chamada Baixio, zona rural de Santana do Ipanema. Um casebre de taipa. Ampliada tempos depois com alvenaria, ficaria ainda mais tosca. Duas caídas dágua, uma terminava em alpendre na frente. A parte detrás, mais antiga, de chão batido, se transformaria na cozinha. Ali, o massapé segurava uma coberta de palhas de coqueiro secas. Ao lado, uma frondosa craibeira. Não sei se fruto da imaginação, mas na hora do por do sol, olhar aquela rude edificação contra o crepúsculo, tinha-se a impressão que uma figura fantasmagórica pairava por sobre aquele sítio. No passado fora a morada dos avós maternos de Eudócia. Num dia muito sombrio, o velho Tomaz cedo acordou, deu de cabo dum machado. E a machadadas mataria Agripina, a esposa que ainda dormia. Em seguida enforcou-se na velha craibeira. Dona Idalina, a mãe de Eudócia, era só uma criança nesse tempo, quando se acordou, encontrou o que já havia se consumado. 

Os Pais de Eudócia  A mãe era uma mulher branca, muito gorda. Foi criada por uma tia solteirona, que fazia quitutes por encomenda. De tanto experimentar e sovar massas, Dona Idalina ganhou braços gordos, seios e ventre volumosos. Cariolano, seu marido, era primo legítimo. Casou por interesse, achando que a prima, herdaria os bens da tia. Quebrou a cara, ela nada herdou. A mãe de Eudócia ficava sôfrega, vermelha e suarenta quando tinha que realizar tarefas que exigia esforço físico, mais do que suportava. Mal dizia, a céus e terra, e a vida que levava. Se lavasse roupas, se acendesse o fogo, se alimentasse as galinhas, mordia a língua e xingava. Como xingava! Se tivesse que tirar água da cisterna, puxada à balde, blasfemava contra o céu. Todo ser a sua volta, vivo ou inanimado, era réu de culpa. Simplesmente por existir e se fazer presente em sua vida. O pai, figura deplorável, trajava camiseta de meia com mangas compridas, encardida, colada aos músculos flácidos, Uma ou duas vezes por ano, talvez mudasse as vestes que mais lhes parecia uma segunda pele. Cariolano, usava um fino bigode, tinha sobrancelhas exageradamente grossas que terminavam unidas. Quando tirava o amarrotado chapéu da cabeça, exibia um cabelo ralo e ensebado. Numa imensa testa, mais alva que o resto do rosto, curtido pelo sol. No canto da boca, de lábios fissurado, inseparável cigarro de fumo, apagado, gosmento. Uma vez, Eudócia ainda menina, ao voltar do riacho, percebeu movimento estranho no aceiro da roça. Por entre arbustos, em surdina foi averiguar e viu, o pai fazendo sexo com a jumenta pretinha, a montaria da família. Nunca contaria isso a ninguém. 

Os Irmãos de Eudócia  Tinham os nomes dos doze apóstolos. Sugestão de compadre Hercílio, o farmacêutico. Todos possuiam, algum tipo de mazela física: Estrábicos, surdos-mudos, lábios leporino, gagos, síndrome de Down. O primogênito ainda engatinhava, e já padecia de poliomielite. Só Eudócia não apresentava defeito visível. Dentre sua irmandade, tinha Felipe. Sempre pensativo, parecia preocupado com alguma coisa. Como se algo grave estivesse na iminência de acontecer. Algo que nem ele mesmo sabia o que era. Fitava os dedos das mãos como se contasse. O semblante serrado, testa franzida. Angustiado. Sempre na iminência de choro. Choro que não saía. A junta médica da previdência social julgou-o mentalmente incapaz. Era aposentado por invalidez. Olhando apenas, ninguém dizia que era. Não fosse aquele ar melancólico. Como se aguardasse a vinda do anjo que iria anunciar o fim do mundo. Gostava muito de lê. E lia a bíblia, o único livro de que dispunha em casa. Felipe, o outro, perguntou a Jesus: 

-Mestre! Quando acontecerá a consumação dos tempos? 

Todos sabem o que lhe respondeu Jesus, “nem aquele, sentado à direita do pai, na Corte Celeste, lhes é dado a conhecer.” E agora, este Felipe, irmão de Eudócia. Estava ali, a refletir a resposta que Jesus lhes havia dado, naquele dia, lá no mar da Galiléia. Não se conformava com tal resposta. Por isso o ar preocupado. Teria que ir ele mesmo, perguntar diretamente a Deus. Sabia, tinha certeza que a ele, o Pai contaria. Na certa não contara ao filho porque, era mestre. Professor costuma falar muito. Ia acabar contando sem querer, a um dos doze. Ele prometeria não contaria pra nenhum de seus doze irmãos. Não era de falar muito, ficaria fácil guardar consigo. Só assim acabava com aquela angústia. 

O Dia da Maldição  Aquele dia fora especialmente preparado para o que ia acontecer. Desde a manhã que chovia, e era chuva arredia. O vento soprava, trovões e relâmpagos riscavam num céu feio, ameaçador. Dona Idalina cedo iniciara seu rosário de lamúrias e imprecações contra os acontecimentos pluviais. São Pedro, de sua boca recebeu condenação. Eudócia não se animou a sair da cama, pra nada. Era uma sexta-feira treze, do mês de agosto. Não foi a escola. Estaria realmente na cama? Dona Idalina, ainda mais furiosa por isso, mal disse por ter tido uma filha mulher. O dia continuava seguindo seu percurso. Concluindo a primeira metade, sem que houvesse trégua do dilúvio. Serviu-se o almoço e Eudócia nada de sair da cama. Estaria morta? Veio a hora do Ângelus, e ao invés de rezar uma Ave-Maria, Dona Idalina pronunciou mais uma, desta feita, a mais horrenda das imprecações, contra a própria filha, exclamou alto: 

-Levanta-te dessa cama satanás! Antes, tivesse eu parido uma porca! 

A chama do candeeiro projetava no teto sombras dantescas. Felipe que se mantivera calado até então. Como se tivesse encarnado o profeta das margens do Jordão, a voz como de trovão, irrompeu dirigindo-se a mãe: 
- Malditos! Hipócritas! Lobos em pele de cordeiro! Vós, vos assemelhais, as raposas do deserto que saem dos seus covis, em busca de suas vítimas e as devoram, feitos loucos, as devorais com a ganância e a baba do demônio. Blasfemas pelo Demo que vos possui, e te faz agir com bestialidade! 

Dito isso, um trovão mais forte estrondou forte. E um raio rasgou o céu enchendo de clarão as trevas. O raio caiu em cheio sobre a craibeira, que prateou-se de faíscas de fogo. A um galho refletido de luz, viu-se surgido o velho Tomaz, pendurado pela corda. E todos na casa ouviram nitidamente ele clamar com voz lúgubre, vinda das profundezas da terra: 

-Vem Eudócia! Tua mãe quer que nos acompanhe! 

Nesse instante, Eudócia que permanecia inerte, sobre os lençóis, sumiu por entre as cobertas. E um vulto escuro na penumbra do quarto, saltou pela janela. Outros raios se sucederam, e alumiaram uma imensa e negra porca, molhada pela chuva, no meio do terreiro. Os grunhidos, característicos do paquiderme passou-se a ouvir. Cada vez com menos intensidade, porque ia se afastando. até desaparecer na escuridão da noite.


Fabio Campos

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