Um Par de Oxford Preto e Branco


Na Santana do Ipanema, dos tempos que a travessia do rio se fazia à canoa, chegaria um regimento, advindo da capital do estado. Designado pelo então governador Osman Loureiro de Farias, atendendo ordens expressas do caudilho gaúcho, Getúlio Dorneles Vargas, presidia nossa nação à época. A missão da companhia, combater e expurgar de vez, o cangaço do sertão, tendo a frente o coronel Lucena Maranhão. Se estabeleceriam no pomposo quartel da polícia militar, ao largo do Monumento, defronte, a capela de Nossa Senhora Assunção. 

Por essa época viveu Antonio Francisco Rodrigues Martinho, filho do capitão Fernando Guedes Martinho e Souza, um maceioense que acabaria se tornando santanense. Seis, seria o número de filhos do capitão, todos nascidos em Santana do Ipanema. Dentre os que nasceram varão, Antonio Francisco, acabaria sendo uma exceção, dos que ingressariam no serviço militar. Antes mesmo de findar o ginasial, teria tido uma longa e séria conversa com seu pai, sobre seu futuro. Ao dizer que não tinha interesse de seguir a carreira militar, muito entristecido ficaria o capitão, que almejava futuro brilhante, também pro primogênito, na garbosa infantaria da polícia militar de Alagoas. O capitão tinha muito orgulho de pertencer ao quadro de dedicados homens que defendiam as fronteiras de seu torrão, e de combater o banditismo no estado. Grande admiração tinha, pelo nosso passado histórico, principalmente o legado deixado por dois bravos homens, Marechal Deodoro e Floriano Peixoto. O filho mais novo acabaria, se tornando, seu filho pródigo. Assim como aquele dos evangelhos, pediria ao pai os espólios antecipados, e partiria. E nada o destituiria do pensamento que tinha de ir embora pra Recife, onde continuaria os estudos. Seguiu pra capital pernambucana, pra estudar na escola de comércio, quando retornou a Santana já era homem feito. Carecendo de por a cabeça no lugar, pensar em casamento. Deixar pra trás a vida boêmia, que vivera nos bordéis da Veneza do capibaribe. Quão difícil seria, uma vez boêmio, sempre boêmio. 

Filho de família tradicional, recém formado, bem aquinhoado, e um belo mancebo. Com esses atributos, grande alvoroço nas mocinhas casadoiras, causaria o retorno de Antonio Francisco, a Santana do Ipanema. Ainda sem saber o que queria da vida. Entregar-se-ia primeiramente ao prazer de redescobrir sua terra. Os colegas, os momentos da terna infância que vivera tão intensamente. As idas ao rio Ipanema, as brincadeiras nos arredores. Muitas seriam as noitadas de farras, em louvores pela volta do venturoso Antonio. Tantas e tão efusivas comemorações pelo seu retorno, que incomodado ficaria o capitão, acostumado à sobriedade e a parcimônia. Cobraria um ponto final nos exageros daquele espalhafatoso regresso. 

Era pedir demais. O convívio na grande cidade, acabaria por lapidar na índole daquele rapaz, o gosto pelas coisas prazerosas. Paixões desenfreadas. Apurada sensibilidade, gosto pela arte de bem viver. Dotes que já possuía desde antes, ainda que meio rude. Uma particularidade, os amigos observaram em Antonio, desde que chegara jamais fora visto em trajes corriqueiros. Ainda que tivesse na intimidade do lar, nas frívolas horas de matinê, ou mesmo nas idas ao campinho de futebol. Ainda mais estranheza causaria, vê-lo, a contemplar as convidativas águas do Ipanema, que tantas vezes mergulhara. Sem se animar a livrar-se das vestes de gala, e atirar-se ao rio, como se era de esperar. Trajado em impecável terno de linho, e sapatos Oxford. Detenha-mo-nos nesse ponto, os sapatos de Antonio. Esse acessório do vestuário, era o que mais chamava a atenção nele. Como se lhes imprimisse personalidade nova. Dotando-o de caráter, imputando-lhe certa notoriedade. Descrevamos pois, o ponto crucial, para o qual convergia todos os olhares, de quem fitava Antonio por inteiro: Os sapatos eram, envernizados e pintados em duas tonalidades. Preto na biqueira e calcanheira, e branco no peito do pé onde ficam as amarraduras. Talvez lhes dessem os sapatos, o ar e a graça de um gentleman americano, quiçá de um ator italiano, ou de um cantor de bolero, ou mesmo de um sapateador. Teria Antonio aprendido a sapatear? Para os colegas não passava de um almofadinha. 

Francisco gostava de dançar, promoveu uma festa por sua conta na chácara da família, o sarau culminaria com muita bebedeira e orgias madrugada a dentro. Severa reprimenda receberia do pai por isso. Mas o tempo senhor da razão lhes cobraria responsabilidade, e lhes viria na forma de um casamento. Tomou como esposa a senhorita Francisca Leopoldina de Alcântara e Silva. Filha de rico e influente comerciante de Santana. Dono de uma loja de tecidos, e de vasta extensão de terras e de cabeças de gado bovino, dentro da freguesia sob a égide de Senhora Santana. Empregava-se no comércio de tecidos, duas formosas senhoritas Adélia e Joana. Antonio acabaria seduzindo Adélia, mantendo com ela, um secreto relacionamento amoroso. 

Muitos anos se passariam. Antonio, contando com a idade de cinquenta anos, ficaria órfão. Primeiro a mãe, doente de catarata, cega e acometida de erisipela, veio a falecer. Um ano exato do luto materno, e findou também os dias do velho capitão. Coincidências à parte, teve a maldita febre-de-santo-antonio, catarata e glaucoma, ficando cego, nos últimos anos de vida. A moléstia cutânea causava, em pessoas branca, um escurecimento da pele, nas partes mais afetadas, no caso os membros inferiores. O litígio da herança, causaria certo desentendimentos entre Antonio e os irmãos, coube-lhe por direito, entre outros bens, a chácara da família. Mantivera o romance, já não mais secreto, com Dona Adélia que já lhes dera três filhos, daria guarida a concubina na chácara. Dona Francisca resignada vivia comodamente a função de matriz, esposa de papel passado. Dando a Antonio igual número de filhos que lhes dera a filial. Contando Antonio sessenta janeiros de existência, viu suas vistas darem sinal que os próximos janeiros viveria na escuridão. Antonio ficou cego. Nas tarde quentes de verão, ficava sentado numa preguiçosa na varanda da casa. E quando chegavam seus amigos pra visitá-lo, passava tardes muitos agradáveis, fumava cachimbo e conversando sobre tempos idos. Vaidoso que continuava sendo, mantinha os mesmos trajes dos tempos de moço, os olhos, agora sem vida, encobertos com óculos escuros. Terno, gravata e os Oxford nos pés. 

Antonio conversava com os amigos, muitas histórias contadas pelos pais e avós. E se algum deles, fazia referências aos sapatos, causa de admiração pelo fino trato, dispensado a eles. Contava que o seu avô vivera no tempo da abolição da escravatura. E que um dia lhe falara, sobre um negro. Naquela época escravo não podia usar sapatos! Eram proibidos por lei de usá-los! Somente se adquirissem carta de alforria. O fato antigo trazido ali, era motivo pra gargalhadas entre eles. Contaria que determinado escravo de seu avô, após comprar a própria liberdade, a primeira coisa que providenciou foi a compra de um par de sapatos. Só que incomodaram tanto, nos pés desacostumados com o artefato, que só restou ao pobre negro, possuí-los sem poder calçar. E os ostentava com muito orgulho pendurados ao ombro. Antonio continuaria, a despeito da idade e da cegueira, frequentando a chácara onde vivia Adélia. Tateando com a bengala saia de sua casa no largo do Monumento, e ia até as margens do Ipanema. Fazia a travessia de canoa, e de carro de boi chegava à chácara. Uma vez no alpendre da casa, deitava-se a uma rede. Pedia a Adélia que lhes servisse um café, e que lhes trouxesse brasas pro seu cachimbo. A mulher atendia aos pedidos do velho Antonio, muito embora sem o auxiliar na tarefa de acender-lhe o pitador de fumo. Tentando empreender tal tarefa sozinho, acabava sempre queimando os dedos. E Adélia, ainda que presenciasse a cena, mantinha-se calada, e ria em silêncio da desgraça do homem cego. 

Um dia repicaram tristemente o sino da matriz, anunciando a morte de Antonio. Foi providenciado o funeral. Seus filhos vieram pro seu sepultamento, mesmo os que se encontravam distante vieram. O padre Cirilo teria sido chamado na noite que aconteceu a travessia derradeira de Seu Antonio Francisco, para administrar a extrema unção no enfermo. Os últimos meses de vida, Antonio viveu em cima de uma cama, não queria mais ver amigos, isolou-se do mundo, apenas Adélia cuidava dele. Sua esposa, à muito, que tinha ido pra capital, morar com uma das filhas. E um pedido de Antonio foi atendido, queria ser sepultado trajado no seu impecável terno de linho e gravata e calçado nos seus sapatos Oxford, preto e branco. 

O cemitério Santa Sofia jamais teria visto tanta gente, a acompanhar um féretro de tão importante significado por estas plagas. O túmulo da família fora previamente preparado para receber o esquife. Todas as honras e pompas que o momento exigia, foram dedicados ao velho Antonio, presentes autoridades, que discursaram com eloquência e provocando comoção entre os presentes. Caiu a tarde prenunciando a noite, e todos retornariam pro seus lares. Deixando o campo santo praticamente deserto. Não fosse a presença do coveiro. O negro, Cícero de Jerusa. O afro-descendente ali sozinho, cumpria a tarefa de calafetar com argamassa o postigo que lacrava o túmulo. De repente, foi acometido de repentina lembrança, a curiosidade que todos tinha, pelo mistério do velho Antonio manter os pés, encoberto pelos sapatos por tantos anos. 

Não pensou duas vezes, iniciou-se na tarefa de desmanchar o que já havia feito. Abriu o caixão, e ávido, pôs-se a tirar os sapatos do defunto. Boquiaberto, contemplou um par de pés totalmente pretos, desnudos, os mais pretos que um dia já vira num homem branco. Mais do que os ele próprio possuía. A vergonha da doença fizera com que Antonio escondesse a erisipela dentro do par de Oxford, por toda sua existência. E meses depois, na mais festiva noite, a de São João, no povoado Jorge, um negro desfilava feliz da vida, por entre fogueiras e estouro de rojões, era Cícero de Jerusa. Atraindo a atenção da negrada pro seus pés, calçados num reluzente par de sapatos Oxford preto e branco.

Fabio Campos             


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