Paranóia Caleidoscópica


Já se havia iniciado a quaresma. Santana do Ipanema punha-se novamente esmorecida. Um esmorecimento largo, estendido sobre coisas e gente. Todos carregados de salubridade, tudo numa oxidação demasiadamente lenta.  Não fossem as notícias vindas de longe, tudo parecia estragado, irremediavelmente mofado. A quarentena da igreja, feito vírus, atingia em cheio, o centro vivo da plebe. Ninguém animava-se a nada. Sentimentos feito pintura desbotada, em ruínas. Gosto de cabo de guarda chuva na boca, com destaque pra os que se esbaldaram nos dias frívolos de momo. Tudo parecia contaminado por uma ressaca moral, que se impunha, mil vezes pior que a etílica. Cura-se esta, com hidratação, a outra encravava um ressecamento na alma.

Professor Pascoal acabara de sair da escola. Pronomes, substantivos e verbos ainda esvoaçavam  adiante de suas vistas. O cérebro viciado de tantas repetições, infelizmente não conseguia se desvencilhar facilmente dos contextos alienantes. Não dera pra disfarçar, os alunos sempre acabavam percebendo, sua dificuldade pra concentrar-se, manter-se lúcido. Parecia estar depressivo,  numa semi estado de letargia. Pensamento vagabundo. Sentia-se um traste.  Não era um bom professor. Pra isso, teria que ser bom ator, e não era.  À noite pausa na paranóia, a universidade, o curso de artes plásticas refrigério pra mente. Gioconda e seu sorriso enigmático povoando suas fantasias. Oh! Monalisa...te amo! Meu amor platônico! Isso o fez trazer à vida, no seio do seu lar!

Perguntou só por perguntar, como havia sido o carnaval dos colegas. Embora não tivesse o menor interesse em ouvir o que diriam. Apenas fingia que ouvia. Com uma nitidez que o impressionou, veio-lhe o pensamento quase que materializado, dizendo que: “Felicidade não existe. E que "Ser feliz era um estado de espírito”. Por frações de segundo teria se sentido feliz, na festa da carne, pouco importava se sob efeito de alucinógeno.  E tinha os colegas e alunos que tiveram oportunidade de tê-lo visto fantasiado e completamente embriagado. Não ficou constrangido, porém não queria mais falar nisso, nem sobre o problema que enfrentara no período que antecedera a festa do carnaval. Achava deselegante, inconveniente.

Ainda na sexta-feira, que antecedeu ao frevo, a discussão que levaria a briga, o bate-boca com a esposa. E Pascoal saiu de casa. Tudo porque, devido à situação financeira desfavorável, não iriam passar o carnaval na praia, aonde sempre iam. Por outro lado precisava daquelas férias. Não as férias do carnaval, férias da companheira. Forçosa parada no relacionamento conjugal, num momento quiçá, tão oportuno. Pausa no compromisso de marido, na responsabilidade de dono de casa. Talvez aquele fosse um carnaval inesquecível, de uma forma ou de outra seria. Lembrava-se pra confortar-se de três de seus colegas, que antes do período de frevo, haviam confidenciado estarem se divorciando de suas esposas. Não sabia bem ao certo se isto lhes servia de consolo. Quem sabe servisse. Afinal, depois de tantos anos de convívio, parecia que inevitavelmente precisavam dar um tempo. Ambos, carecidos de um tempo. O mestre Leonardo da Vinci havia lhe ensinado a ficar olhando a chuva, enquanto molhava um velho muro baldio. Formavam-se imagens incríveis.

Pascoal, foi dividir espaço no apartamento de Victor, um sobrinho. Um rapazola que conquistara cedo independência. Tudo tão bagunçado. Poria ordem ali. Talvez não. Talvez não tirasse nada do lugar, quem sabe aquela desordem era o estilo jovem de viver. Tinha que adaptar-se àquele modo de vida. Aprender novo jeito de ser, tinha um mundo novo a conquistar, vida nova pela frente. Era fascinante pensar em algo novo quando tudo parecia ruir. Afinal estava tudo tão estragado, podre. Os hábitos do jovem acabariam por influenciá-lo. Animou-se a frenquentar uma academia de musculação. Isso de alguma forma trazia um pouco de ânimo na abalada auto-estima. Encher de ácido lático os músculos, tornando-os inflados, fazia-o sentir-se o Adão de Michelângelo na Capela Cistina.  Reaprender como preparar algo pra comer. Lavar as próprias roupas, refazer despesas. Tudo parecia rodopiar na cabeça. Nada disso tinha um sentido ruim nem bom, ou lhes causasse sensação de perda.

Muito pior do que tudo o que lhe acontecia era o pensamento fixo. Prisões, cárceres de ferro e concreto, jaulas, masmorras. Nenhuma dessas clausuras, que apenas prende fisicamente, tem comparação como o aprisionamento ocasionado por um pensamento implacável, martelando à mente humana. Não há nada pior que uma idéia fixa, apossando-se de sua alma. Sufocando-lhe a sobriedade. Extirpando-lhe a capacidade de discernir entre real e imaginário. Arrancando-lhe a lucidez. Definhando-lhe o espírito, amofinando as vontades. Caso não se tenha forças pra estancar tais divagações, antes. Certamente hão de matar-lhe! Como uma maldita planta que vai se arraigando, envolvendo com seus tentáculos, e quando menos se espera, domina-lhe totalmente. O pensamento de matar, de destruir é muitas vezes mais poderoso que o pensamento de uma boa ação, de fazer o bem.

Foi à casa de sua mãe. A casa que o viu nascer e crescer. Seus olhos buscavam coisas que o confortasse,  que o acariciasse. Buscava na verdade, a si mesmo. Viu Guernica, de Pablo Picasso, feito manchas e desenhos, nas paredes de sua infância.  Deitado na cama que um dia fora sua, olhava pras telhas. Velhas telhas que lhes viriam ainda menino, desocupado de alucinações. Talvez aquilo tudo fosse apenas um sonho, quem sabe poderia fechar os olhos e ao abrir, lá estaria ele. Como gostaria de encontrar a si mesmo. Ele de verdade, e se acaso sentisse medo, correria aos braços da mãe. O simples ato de pensar fazia-o suar, aumentavam-lhes os batimentos cardíacos. As coisas se faziam derretidas feito queijo aquecido. O relógio na parede se alongando gelatinoso, flácido, trazendo pra ali um quadro surreal de Salvador Dali.

E se morresse? Não poderia morrer, não antes de vingar-se. De que mesmo iria vingar-se? Tinha consciência que vingança, não levaria a coisa alguma. Certeza nenhuma, de nada. Trazia à cintura, o revólver emprestado de um amigo. Pelo fascínio que tinha por armas de fogo, trazia o frio metálico apertado contra o ventre, por puro deleite. Acariciava-o como a uma mulher sensual. Não fazia sexo à dias. Sentia-o junto ao pênis, o aço gélido, rijo. A arma dando-lhe ilusória sensação de poder, de virilidade. O revólver, os projéteis exacerbavam erotismo. A forma fálica da bala, a empunhadura remetendo a anatomia dos testículos, o cano, o órgão sexual masculino. E lhes vieram novas e lascivas alucinações. Via mulatas exuberantes, de seios volumosos, coxas grossas, de lábios carnudos, como que saídas, de quadros pintados por Di Cavalcanti. E fazia amor com elas. Tão excitado estava, que não teve como evitar o ato de amor solitário, o orgasmo. Certeza não tinha, se aquilo tudo acontecia, ou se apenas dormia e sonhava.

Fabio Campos

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