O Relógio da Matriz


A pensão de Dona Maria Sabão, funcionava no pavimento superior, do velho sobrado que ladeia a Matriz de Senhora Santana. O prédio era uma construção do final do século XIX. Feita de tijolos massapé, cozidos, dobrados e maciços. Estruturada em uma sapata de pedras. Pedras tiradas do leito do rio Ipanema, pelas mãos negras dos escravos. De linhas retilíneas nas eiras e nas beiras, procurava, se harmonizar com as outras duas construções vizinhas.  A matriz de enormes portais ogivais, e o casarão colonial, em branco e azul, que acessava ao mercado de carne municipal.  Os umbrais das janelas eram altos e largos, como exigiam os Barões do algodão, quando mandavam construir suas edificações. Imaginando um dia, ter que colocar ou retirar, por ali, um móvel.  As más línguas, ouvidavam, que seria pra o caso de precisarem fugir, dos corsários e revolucionários, os inimigos da Corte. Por serem glutões e obesos, careciam de bastante espaço pra conseguirem passar nos vãos das janelas.

O caixeiro viajante, pernambucano Percival da Costa, uma vez por mês, vinha a Santana do Ipanema.  E se hospedava na pensão de D. Maria. A história de Santana de antigamente, pouco lhe interessava. Pois daquela, pouco tinha conhecimento. A que lhe importava, era a Santana de então, a dos anos 70. De como estariam seus clientes. Essa sim, Percival queria saber. Como estaria Veridiana? A essa altura, já deveria saber, de sua chegada. Pois, uma vez em Alagoas, e em Santana do Ipanema, seu grande amor, Veridiana, mulher dama, rapariga do cabaré de Dona Brejão. O carro estacionado, na frente da pensão. Percival subiu os dois lances da escadaria. E o cumprimento formal aos da pensão:
-Bom dia, gente! Bom Dia, Dona Maria, como vai?...
-Bom dia! Percival. Por aqui tudo bem. Como está a família, bem?
Pegou sua chave. O quarto em que se hospedava era cativo. Os dias que ele não estava ali, ficava fechado. D. Maria não o alugava pra ninguém. Por motivos óbvios. Ele deixava alguns pertences e pagava por essa regalia. Percival desfizera as malas na cama. Tomara um banho rápido, e rápida também, fizera a primeira refeição. Ansiava por ganhar o mundo. Queria mesmo era trabalhar. Vender cosméticos, medicamentos, produtos novos. Convencer pessoas a comprar. Gostava de andar no comércio de Santana. De rever e cumprimentar as pessoas.  Realizar as visitas. Os velhos clientes. Fazer novas amizades. Enfim sentia-se realizado fazendo o que fazia.
Consultou compromissos de agenda. Um detalhe, lhe chamou à atenção: a data daquele dia.  A data  estava assinalada na agenda. Era um dia especial.  Percival o sabia. Logo mais a noite saberíamos porquê.  E o dia logo esmaeceu.  E lá estava ele de novo, de volta a pensão e ao velho quarto do sobrado.  Tudo agora era paz.  Já anoitecera.  Rangiam as velhas tábuas do assoalho, quando algum hóspede ia ao banheiro, ou a cozinha tomar água, talvez o único som que se escutava ali. O dia do lado da sua claridade, havia acabado. Todos já haviam se recolhido aos seus aposentos.  O viajor não.  Algo importante estaria pra acontecer. Faltava pouco, pra se saber o que era. Percival tinha sobre a cama, vários livros. Aquela noite era aguardada, a muito tempo. O que estaria para acontecer?  Não sabíamos o que era. Fosse o que fosse, ia acontecer ali, naquele quarto de pensão, naquela cidade, só Percival sabia o que era. Ele estudava.  Enquanto aguardava a hora esperada.  Ele era estudante do curso de farmácia, da Universidade Federal de Pernambuco. Sonhava um dia terminar seu curso e abrir uma farmácia, quem sabe, talvez em Santana do Ipanema. 
O relógio da Matriz de Senhora Santana, inicia as doze badaladas. Avisando que aquele dia, era findo. Um fato, Percival já havia observado. E que Santana inteira já sabia.  Pra avisar, as horas o sino do relógio batia de seu campanário. A quantidade de badaladas, de acordo com a quantidade de horas. Muito embora, a cada meia hora era assinalada com uma badalada apenas.                                                                                                                                                                                                               Isso significava que depois da meia noite, teríamos três vezes, a hora sendo assinalada com uma badalada apenas.
Estávamos na virada do dia 13 para o dia 14 de agosto daquele ano, da década de setenta que terminava com três. Ele abriu um livro de capa preta que sempre trazia no fundo da mala. Dali por diante passou a consultar seu relógio constantemente. O sino da igreja matriz, deu, naquele instante, pela primeira vez naquela noite, a única badalada, anunciando que naquele momento, era doze horas e trinta minutos da madrugada.
Façamos aqui uma pausa, para explicar ao leitor, o que está acontecendo:
 Percival estaria testando uma experiência relatada ali, no seu misterioso livro de capa preta, cheio de versos em um idioma de longínquo tempo e espaço. Eis o que diz:
“Quando os números de uma data, coincidirem de dar 1:13, ou seja, um treze, na sua soma. Se exatamente quando ocorrer, as doze e meia, as treze horas e as treze e meia da madrugada, alguém recitar esses versos do profeta Vishina, o tempo iria parar literalmente em torno de que recitasse, num raio de treze milhas, por treze segundos, de uma hora de tempo, naqueles três momentos. Este fenômeno só iria ocorrer por conta dos versos recitados, e porque entidades contidas neles serão invocadas. Mas não em qualquer época. Somente quando acontecesse um rearranjo dos números do dia, do mês e do ano, especificamente naquela data. Os versos recitados mais a coincidência da data, possibilitará a criação de uma aura de energia cósmica, naquele círculo, compreendido entre o ponto central da recitação, até o limite máximo de treze milhas circunferencial, se estacionará o tempo.” Assim dizia.
 Então: o Dia 13 + o mês 08 + o ano 19 + 73 = 113. Ou 1:13 (ou: um treze). E o porquê dos momentos da hora: 12:30h.,  13:00h. e  13:30h. Se somarmos todos esses números teremos 17;  1+7=8. O número oito deitado, é o símbolo de infinito! O infinito que é a simbologia do tempo, se tornará finito por treze segundos em três espaços de tempo! Tudo vai parar. Tudo que estiver dentro desse perímetro. Por um período de apenas treze segundos. Em três estágios, de treze segundos, vai parar o tempo.  Parecia tão pouco. Seria o tempo que durava a recitação. Até parece que nada de extraordinário poderia acontecer em treze segundos. Segundo o livro, não.
Voltemos à história:
E naquele exato momento, Percival recitou os versos, articulando sua voz, de modo que só ele próprio podia ouvir. Era uma espécie de cântico. Em um idioma desconhecido. E realmente por treze infinitesimais segundos tudo parou. Percival tinha os olhos postos nos versos do livro. Não teve como observar o fenômeno. Se pudesse ver. O ponteiro da Igreja Matriz ficou estático. Assim como os ponteiros do relógio cronológico, no seu braço. Também o Cuco de D. Maria, pregado na parede da cozinha. As hélices do ventilador de teto, tesas. As roupas que tremiam no varal, sob a brisa noturna, retesadas. Um pingo d’água que caía da torneira, como que se estivesse congelado, ligado por um fio à torneira esperando os segundos passarem. Os pernilongos e mosquitos como pregados no ar. Com aspectos de congelados.  A vela, que Dona Maria acendera pra Nossa Senhora da Assunção (depois de amanhã seria seu dia) fizera promessa de acender três velas, por três dias. A chama ficou dura espetando o ar. O ronco do hóspede do quarto vizinho, silenciado.  A coruja rasga-mortalha, as asas estendidas pronta pra iniciar o vôo, suspensa no ar. Dura. Como numa foto tridimensional. O vigia metido no seu capote fazendo a ronda na praça. Virado em estátua. Um sapo na calçada, no exato instante, em que estendia sua língua descomunal em busca da presa. Petrificado. Percival pra comprovar se sua experiência dera certo.  Cuidou de empurrar a folha da janela, no exato momento em que iniciou a recitação. Se não funcionasse a janela iria fechar naturalmente. Por conta da força do impulso. Se funcionasse, a folha da porta não avançaria. E confirmou-se a folha da janela estava lá no mesmo ponto. As doze e trinta, uma badalada apenas. As treze horas, uma outra. E as treze e trinta minutos mais uma. E repetiu-se o fenômeno do tempo parado, parando por três vezes. Percival olhou a rua, tudo normal. Foi dormir.
Manhã do dia 14 de agosto. Percival acordou. Ouviu rumores. Falas exaltadas vinham da cozinha. Gente comovida. Lamurienta. Ainda meio zonzo de sono, vai ao banheiro. Depois de recomposto, foi até a sala de refeições do hotel. Havia um clima de comoção ali. Todos o fitavam a ele muito espantado. Ele queria então se inteirar do que estava acontecendo. E D. Maria, pelos olhares dos demais, foi a encarregada de dar-lhe a notícia:
-Percival, ontem de madrugada ocorreu uma desgraça!
-Como assim?
- Três mortes horríveis!  Veridiana, o filho, e o pai dela!  Dizem que tudo ocorreu entre meia noite e uma da madrugada. O pai, você já conhece a história, era um homem doente, internado à muito tempo no hospital. Vivia ligado nos aparelhos pra respirar. As 12:30h a máquina parou de funcionar, e ele morreu!  O filho bêbado, numa farra na casa de uns amigos, se enroscou num fio de energia elétrica, e caiu dentro dum tanque d’água, morreu era exatamente 13:00h.  Momento que seu relógio no pulso parou. E Veridiana, você mesmo sabe, morava no aterro, perto do Bar de Dona Brejão. Um motorista embriagado perdeu o controle de seu carro. E jogou-se de aterro a baixo. Bem em cima da casa dela. Pelo modo como o carro estragou o corpo. Ela ia se levantando da cama. O relógio de parede esmagado, parou marcando exatamente 13:30h. Coitada! Se tivesse saído dali, pelo menos um minuto antes. Agora poderia estar viva.
E Percival pensativo -Com um olhar no nada- Sorumbático, concluiu: 
-Um minuto, não. Bastariam treze segundos...
Ninguém entendeu. Tampouco perguntou-se mais nada.

Fabio Campos 


Liras de Santana, Liras de Minha Rua

Sempre retorno a rua em que morávamos quando criança. Fisicamente ou em reminiscências revejo nossos vizinhos. As fachadas das casas, a calçada, as ruas. Os raios de sol nos céus matutinos. Crepúsculos de nuança vária que anunciava luares de magnífico sertão. De tudo que recordamos o que captou a visão, ficou com muito mais ênfase do que tudo se nos imprimiram os outros sentidos. Muito embora o que ouvíamos, se nos chegava ainda com muita nitidez, mesmo que agora tudo parecesse fazer parte apenas de um sonho.
O cantar dos passarinhos, na copa das árvores dos quintais, sacudindo as cortinas do dia. O halo gélido do alvorecer, a alma das manhãs esvoaçante feito nuvem indo, se desfazendo em orvalho. Embaçando as vidraças, umedecendo os biscuits na parede, as porcelanas no bufê. A hortelã deixando fluir sua essência sobre as coisas, misturando-se ao aroma encorpado de um café recente saindo do bule. Sinfonia de pardais. Eram esses alguns dos sons que anunciavam o dia. A cada dia.

O tilintar dos talheres, nas cozinhas das casas, prenunciavam as mesas postas. As bocas e as mãos alvoroçadas das mães acordando os filhos pra iniciarem suas jornadas. Ouviam-se por toda a vizinhança a cada manhã. Eram os sons de Deus. Atividades e vozes humanas vinham e acordavam o dia. A casa de Seu Cariolano ficava longe, porém voando ia o pensamento e trazia nitidamente o som à sala de estar, um relógio de pêndulo. Sóbrio, resignado no seu ofício de ficar feito soldado britânico, fazendo a guarda da rainha. Tendo a obrigação de a cada hora se anunciar, com seu som gélido, inquisidor. Lento e pausadamente dizendo: agora é tal hora! Na casa de Seu Leopoldo, som nenhum, durante toda a manhã, ia se ouvir. Uma só vez o silêncio seria estilhaçado na manhã daquela casa, o estridente despertador na penumbra do quarto, exatamente às seis. Acordando as coisas, muito embora sem nada conseguir tirar da apatia em que tudo se encontrava. Os sapatos comportados permaneceriam lado a lado. Gravatas, calças de linho e paletós tontos, do cheiro de naftalina, continuariam hibernando no roupeiro. Seu Leopoldo já havia ganhado o caminho da fazenda Boa Vista, o seu mundo. À cozinha, Dona Maria preparava o café dos meninos. 

Os Vanderlei Tenório. A casa de Doutor Aderval, deitava arquitetura, tudo tinha cara, cheiro e dedo do arquiteto que pensou em tudo, tanto e tão bem. Esmero no aproveitamento dos espaços. Pecou na acústica, longe se ouvia o clap-clap das galochas de borracha branca de Dona Déa no piso de mosaico. Certamente metida naquele macacão de brim azulsíssimo, com marca de laticínio nas costas. Um chapelão de palha com uma flor de palhinha, com um colorido desbotado pelo sol. Voz enfática, estridente, ricocheteando nas paredes, resvalando pelos umbrais, ganhando o céu, ganhando a vizinhança. As recomendações a empregada doméstica antes de sair, diziam dum cuidado a ser dedicado aos cães e pássaros. As mãos girando a maçaneta, o molho de chaves chacoalhando, rapidamente recolhido, indo parar no bolso do macacão de jeans índigo blue. Agora na rua som metálico de baldões de leite, vazio chocando-se num lastro de reboque. Agora, acionando a ignição do jipe, o ronco do motor se afastando, em poucos instantes estaria, pisoteando com aquelas galochas as touças de bosta de bovino, retidas no curral. Acompanharia a ordenha ouvindo vez outra o mugido longo e plangente das vacas, entremeado pelo alegre som acobreado dos chocalhos.   

Os Laranjeiras. Dona Maria Laranjeiras tinha um piano. Todos os dias ao cair da tarde Dona Maria tocava ao piano. E também dava aulas de flauta doce e cítara. Àquela casa respirava-se arte. Dona Maria Ourives ensinava esculpir na madeira. Dentre os discípulos havia os gêmeos Kéops e Jacó. Eram meninos ainda. Eram filhos de Doutor Adelson Isaac de Miranda. Zezinho filho de Dona Maria pintava quadros, naturezas mortas, paisagens, cenas urbanas. Impressionou o menino que um dia eu fora, uma paisagem bucólica noturna, a beira do mar com luar. E da casa repleta de artes, cordas e pinos traziam músicas natalinas longe dos natais, músicas de ninar longe de criança pra embalar. Marchinhas carnavalescas longe do carnaval. Marcha nupcial sem casamento, marcha fúnebre sem velório nem defunto. Também alegres sonatas que faziam pardais e pardocas se bicarem como se contagiados pela melodia se preparassem para acasalar. Nas paredes quadros impressionista, cubista, desenhos de Alberto, o outro filho de Dona Maria que também era artista. Por sobre os móveis, partituras, pincéis, espátulas. Um tanto considerável de frascos de tintas na mesa, produzindo uma profusão de cores, feito um caldeirão de um bruxo fazedor de arco-íris. Formões, cinzéis, pincéis, toras de tronco espalhados no chão que virariam belas peças depois de talhadas. A casa ateliê, era o país dos sonhos de qualquer artista. E ficava logo ali, a duas casas da minha.

Os Carvalhos. Gilvan Carvalho tocava violão. Gilvan filho de Dona Glorinha, era nosso vizinho pelo lado da nascente. A parede do nosso quarto ficava encostada na parede de sua casa. Todos os dias, Gilvan dedilhava as cordas do pinho, tentando arrancar dele uma música que Jamais saíra. Tive vontade de aprender violão, contagiado pela persistência, insistência, determinação do vizinho. Num dia de sábado, na feira do passarinho, o menino que um dia eu fora, por conta própria, compraria um violão. Às escondidas no quarto iniciaria sozinho pelo mavioso caminho das cordas. Aprendiz de violão. Duas decepções se seguiriam inibindo as vontades de ser um futuro violonista. Primeiro Marquinhos de Seu Breno alegaria que seria muito complicado dar aulas de violão a aprendiz esquerdo. Concluiríamos que não apenas o violão, mas o mundo fora, feito para os destros. Meu pai ao ouvir certa vez o som das cordas, ainda que abafadas pelas paredes do quarto, na hora da janta faria um comentário que acabaria de vez com o sonho do futuro ex-violonista.

-Se encontrar um dia um violão nesta casa. Quebro na cabeça do violeiro!

Ó mundo ingrato! Perdestes um violonista, porém ganhastes um eterno apaixonado pelo violão. O menino que um dia fora, havia se contaminado, continuou encantado pelo som produzido pelas cordas do violão, do violino, do violoncelo, da cítara, da guitarra, do baixo, do bandolim, do cavaquinho, do birimbau. Nas noitadas de seresta à Praça da Bandeira. Nas passeatas garbosamente desfilavam, as Liras de vinte e poucos anos. 


Fabio Campos              

Uma Carta. Um Retrato

O retrato era de 1948. Emoldurado, há muito pendurado na parede do velho quarto. Nele havia um homem de pé, aparentava ser mais alto do que era, talvez pelo fato de estar de paletó. Ao seu lado, sentada numa poltrona, uma mulher, de vasta cabeleira negra, num vestido estampado, tinha ao colo o filho do casal. O menino, que aparentava seus quatro anos de idade. Uma miniatura do pai no traje. No semblante, mais se assemelhava a mãe.  Não fosse aquele registro, eternizado em preto e branco, ainda mais se destacariam as flores amarelas no vestido azul, e as rosas vermelhas do jarro na mesinha forrada com rendinha de filó, ao lado da poltrona. O casal trazia na face uma serenidade boa. Um quê de dizer-se somos felizes, sendo quem somos e estamos. Sem nada precisar dizer, diziam duma cumplicidade de esperanças, de destinos entrelaçados. Pareciam entregues assim à vida, sem prenunciar o que lhes reservava o porvir. Faziam por onde eternizar no quadro de papel, aquele momento, por motivos muito significativos: Fora por aqueles dias que haviam se mudado pra aquela casa, também o garoto iniciava idade nova.

Antes haviam morado na Rua Nova, mudados estavam pro Largo do Monumento. Na antiga morada, quando chovia, entrava água dentro de casa. No último inverno fora tanta chuva que o muro do quintal não suportou, veio a baixo. Pro menino uma festa, dali por diante nada mais o prenderia. A mãe quando menos esperava ouvia Seu Fernando, o tangedor de mulas com carga d’água do rio, chamando na porta. E lá ia ela encontrá-los. Entre o sorriso amarelado de fumo do almocreve e o sorriso de dentes falhados do traquino, vindos da beira do Ipanema. Entre as ancoretas no lombo do muar vinha menino. Nas noites frias de inverno mosquitos e vaga-lumes emprestavam a noite o cintilante e mágico pisca-pisca de luzinhas verde pirilampo. Dava pra ouvir os tenores grilos, as sopranos jias, punham-se a executar melodiosa sonata, madrugada à dentro. Cantavam tendo-lhes a janta farta a esvoaçar, no etéreo perfume das águas barrentas e frias, cor de café com leite do rio com cheiro de piaba. A casa ficava do lado que as moradas tinham entradas altas, cheias de degraus. A vizinha do lado esquerdo chamava-se Otília. Pobre Otília, cedo ficara viúva, muitos filhos pequenos pra criar sozinha, um deles sofria das faculdades mentais. Em tempos “de lua” não deixava ninguém dormir. Tinha dias de sair nuzinho pela rua, dizendo que o mundo ia se acabar. Quem se acabou mesmo foi ele coitado, numa de suas crises, saindo de casa em disparada atirou-se no leito da rua, e foi parar embaixo do caminhão de Seu Mané Guarda, que culpa nenhuma teve. 
    
A morada da Rua Nova durou pouco mais de dois anos. Antes residiram no início da Barão do Rio Branco, do lado que as casas ficam olhando pra torre da igreja, recebendo na fachada o sol matutino. Era uma casa pequena. Uma salinha acanhada, na parte da frente ornada por um centro de umburana envernizado com esmero. Uma cadeira preguiçosa e um sofá de palhinha trançada; contíguo, havia o único quarto, uma cama de casal, com respaldo de travesseiro alto, torneado, num tom verniz cor de vinho, sempre bem forrada com forros bordados, frisado com renda, e detalhes que traziam perus e guinés em alto relevo. Ao canto um berço bem cuidado, sob um mosquiteiro suspenso por cordão que se prendia aos caibros do teto. Ali nascera o menino do retrato, aparado por Dona Mãezinha parteira.  Por fim a cozinha: Mesa e cadeiras, um guarda-louças e um fogão à carvão, forjado em folhas de zinco, esmaltado de branco, e estanho nos gradis e grelhas. No canto oposto ficava a latrina. A porta dos fundos dava pra o “Panema”.  Nos dias quentes de verão pela tarde, a mulher sentava-se na porta da frente com o menino ao colo, que naquele tempo ainda mamava. Foi numa dessas tardes, veio vindo uma novilha lá da beira do rio, e encontrando a porta dos fundos aberta meteu-se casa à dentro. Aos gritos a mulher pediu ajuda aos estivadores que ficavam sentados nas portas dos armazéns ali de frente. Muito embora desnecessário o socorro. A rês assustada com o alarido, deu-se pra trás e foi-se embora.

Antes da Barão do Rio Branco, o casal morou na Rua da Poeira. E teve muito anterior a tudo isso, o dia em que recém-casados chegaram a Santana do Ipanema, vindos de Olho D’água das Flores. Tiveram que atravessar de canoa, o rio Ipanema cheio. Bravio, a toda largura, assim estava o rio, e era quase noite. Na travessia a mulher clamava a Deus e aos céus, rezava e chorava tanto e com igual intensidade, tinha medo que a canoa virasse, pois não sabia nadar. Era a primeira vez que ela vinha a Santana do Ipanema.
 
No 07 de setembro de 1944, amanheceu no Largo do Monumento, um pelotão de “praças” e reservistas convocados pelo Serviço Militar. Perfilados de frente ao Quartel da Polícia, no oitão da capela de Senhora Assunção. Ao mastro acenava vez outra, a bandeira nacional. Incautos cidadãos prestavam juramento de defender, com a própria vida se preciso fosse, a honra da nação brasileira. Iriam pra Itália lutar na segunda Guerra Mundial. O prefeito dirigiu-lhes gloriosas palavras. Falou do que dizia o Jornal de Alagoas do dia anterior, notícias de que Getúlio Vargas lá no Rio de Janeiro, declarava total apoio da nação brasileira aos aliados, principalmente ao governo americano na pessoa do presidente Franklin Roosevelt. O que se comentava em caserna, a boca miúda, pois era uma missão secreta, era uma mensagem chegada dos Correios e Telégrafos. Recebida e lida pelo comandante do batalhão Coronel Lucena Maranhão, avisando-o sobre a instalação de bases militares de tropas americanas, na barreira do inferno no Rio Grande do Norte e no território de Fernando de Noronha. 

Quanto ao casal da fotografia, anos antes dos pracinhas irem pra guerra, quando nem mesmo ainda era um casal, antes mesmo de se dar em casamento. Lá em Olho D’água das Flores, a época, ele trabalhava de padeiro. Era um santanense que morava de pensão. E todos os dias de ida pro trabalho passava em frente à casa da bela mulher de vestido estampado na fotografia. Naquele tempo quando se tinha intensão de namorar com alguém, namorava-se inicialmente através de carta. E numa daquelas vezes, ao vê-la à janela, o homem de paletó no retrato, parou, tirando o chapéu perguntou-lhe:

-Você aceita uma carta minha?
-...Aceito.  


Fabio Campos

O Reencontro

Quando a mãe de Mariana morreu, ela não quis aceitar, foi forte demais. Dona Estela morava no povoado Riacho Grande, assim denominado por frei Damião, hoje cidade de Senador Rui Palmeira. Antes da emancipação pertencia a Santana do Ipanema. Dona Estela havia uns três anos, descobrira um câncer pulmonar, em decorrência do tabagismo. Iniciado cedo, aos treze anos. Foram mais de quarenta anos fumando. Depois de descobrir a doença parou de fumar, não por determinação própria, foi obrigada a deixar o vício. Tarde demais. 

Os últimos três anos de sua vida, foi puro sofrimento. Muitos medicamentos, quimioterapia. Foi definhando, perdendo peso, mais e mais. Até o comprometimento total dos pulmões pelo carcinoma, um tumor maligno. Quando ainda conseguia andar, ia ela mesma, para as clínicas de tratamento em Maceió. Vinha a Santana do Ipanema visitar os filhos. Levava, apesar da doença, uma vida praticamente normal. No último ano a situação piorou, consideravelmente. Tinha crises de apneia, tanto dormindo quanto acordada. Alimentar-se, tornou-se um drama, devido à falta de ar, falta de apetite, as dores. Um chiado uníssono no peito. Assustou-se quando teve uma crise de tosse tão intensa que vomitou sangue. Uma febre constante, que nunca a deixava. Junto com a fraqueza física, a invalidez. Confinada em uma cama, foi mais de ano assim. Admoestada por uma tosse crônica que a sucumbia. 

O sintoma que lhe causou mais repulsa foi o surgimento de manchas escuras e pequenas bolhas na pele, talvez pela vaidade feminina, atingida em cheio. Mariana, depois que a viu naquele estágio da situação passou a roer-se de remorso, porque nesse tempo todo que sua mãe esteve doente, principalmente em cima de uma cama, foram poucas as vezes que foi vê-la. Não ia por pura preguiça. Quantas vezes Marcos seu esposo a chamara, pra ir até o povoado, mas ela inventava desculpas, as mais esfarrapadas e acabavam não indo.

Dois mil anos e alguns milhares de quilômetros separam-nos da Judeia de Jesus Cristo. Separados estamos da terra Santa, muito mais pelo espaço físico, que pelo tempo. Próximos de lá estamos, pelo modo de vida, pela religião e até pelas doenças. A lepra vitima ainda hoje tantos sertanejos. Lá na Galileia, havia preconceito pra quem tivesse o mal de Hansen. Os molestiados ficavam isolados, em lugares ermos. Impedidos legalmente de frequentarem lugares públicos. Ir à sinagoga nem pensar! Era preceito religioso: tudo que tocavam tornava-se impuro, até ao por do sol. Jesus tinha profunda piedade dos doentes, pois além do sofrimento físico, eram excluídos descriminados pelos seus mais próximos, e também pelos outros. Os tabagistas assim estão sendo tratados, feito aidéticos. Não faz muito tempo, sinônimo de ascensão social, tornou-se causa de repulsa. Tantas vezes Jesus curou, pessoas privadas da visão; lunáticos, possuídos e leprosos. Quando um leproso ou acometido de gonorreia conseguia a cura, deveria se apresentar ao sacerdote no templo, Cumprir alguns rituais, pagar o dízimo e fazer uma promessa. Tudo isso para ter restituído o direito de voltar a frequentar novamente a sociedade. 

Mariana, contemplava o corpo de sua mãe no esquife. Tudo havia sido cuidadosamente providenciado com o pecúlio da previdência social. Caixão, coroa de flores, lembrancinhas. As exéquias, carro de som pra acompanhar, a taxa do coveiro pra cavar o túmulo. Tentou lembrar-se do último encontro com a mãe ainda em vida. Onde estavam? O que conversaram? Rebuscou a memória. Lembrou: fora lá em Santana do Ipanema, em sua casa, na rua de São Pedro, era um dia de sábado, tinha acabado de chegar da feira, estava na cozinha fumando um cigarro, Dona Estela entrou, com a mão no peito pediu a filha pra jogar o cigarro fora. Pediu e começou a tossir. Uma crise de tosse que quase a fez vomitar, mas nada tinha pra expectorar, engasgou-se com saliva. Teve pena da mãe naquela ocasião. Ela que já fora tão bonita. Até se achava parecida com ela, e olhava, em que havia se tornado por conta da doença. A mãe, tão carente dela, estava ali em sua casa a pedir, a implorar, que ela fosse visitá-la. Nunca mais tinha ido ao povoado. Falou dos outros filhos. Seus irmãos que também não iam. 

–Mas eles são homens defendeu-os. E homem não liga muito pra mãe, só quando estão precisando. Mas ela era mulher. E mulher entende mulher. Tinha alguns conselhos pra dar a ela. Pressentia o fim. E por preguiça, não fora mais vê-la. 

Felipe e André irmão de Mariana estavam no quarto inconsoláveis. Felipe, acabou por dormir, sob efeito de sedativo forte. André apoiado no colo da tia Ester, que também morava em Santana, num choro copioso. Ali, no velório de sua mãe, de repente, passou a sentir muito medo. Medo da morte, medo da doença. Mariana prometeu a si mesma, ia parar de fumar. Quem era sua mãe e no que a doença a tornara. Um corpo mumificado, era no que se assemelhava agora. Um rosto crispado. Uma incógnita pairava sobre sua face, talvez pretendesse sorrir no último momento de vida, ou uma dor tão intensa, causadora do óbito, ficara solidificada na sua fisionomia. As unhas longas, deformadas. Cabelos, lábios, dentes, vias aéreas, pulmões, tudo impregnado de fumo. O mal, como o fogo tragado, consome a folha de fumo seca, dentro do cilindro de papel sedoso e branco, liberando no are nos órgãos, fumaça plúmbea e aromatizada, consumiu também a sua mãe. Fazendo-a aquela criatura que viera do pó, e ao pó tornada. Antes mesmo de descer completamente a sepultura. 

Precisou sair de dentro de casa. Sentia-se tonta, o mundo rodava, as vozes das pessoas pareciam distantes. Tinha os olhos inchados de tanto chorar, Marcos a amparava. O remorso corroia-lhe a consciência. Instintivamente meteu a mão na bolsa pra pegar um cigarro, era compulsivo, ainda mais sob forte emoção. O corpo cobrava uma dose de dopamina, conseguida a preço alto, através da nicotina. Desistiu. Tinha uma noite inteira pela frente. Muito tempo pra pensar. O sepultamento só seria na manhã do dia seguinte. Choro, muito choro, de único sentimento: remorso. O dia seguinte, prometia ser um dia frio, parecia que ia chover. Menos mal, o cemitério era longe. Sob o sol quente com certeza alguém ia acabar desmaiando. O sepultamento seria rápido. Acompanhariam o cortejo os familiares e os amigos da família. Mariana sabia, que aqueles momentos iria lembrar-se pro resto da vida: a música que o carro de som ia tocar, desde que o cortejo saisse de casa até o caixão baixar à cova. Seria uma música que falava de um diálogo que todos nós devemos ter com Deus. Melhor seria se falasse de remorso, combinaria melhor com o sentimento mais reinante, mais presente nos familiares da falecida.

Mariana teria uma noite e uma madrugada inteira, pra pensar. No início da longa noite, seus pensamentos, eram sobre fatos, lembranças, acontecimentos vivenciados com sua mãe. Fazia uma espécie de balanço, de como fora o seu relacionamento com ela. Depois começou a pensar exclusivamente na morte. À pouco relutara em acender um cigarro, justo por medo dela. Mas, quem era, ou o que era, a morte? Quis personificá-la. Afastou a idéia de que fosse tal como a representam nos filmes de terror, nos desenhos e nas cartas do tarô. Não seria um esqueleto encapuzado, portando uma foice. A morte é feminina, é ela: A morte. Portanto, sendo de gênero feminino, é vaidosa. Imaginou-a uma mulher formosa. Por isso o semblante dos moribundos, todos parecem sorri ao contemplá-la. O dito popular a incrimina: “Tem jeito pra tudo, menos pra morte”. É muito poderosa. Seu arsenal é poderosíssimo, desde um simples fio de lâmina, uma faca, uma adaga um facão, um machado, passando pelas armas de fogo, revólveres, metralhadoras, fuzis, bombas artesanais, bombas nucleares, indo pros carros, aviões, trens. Todas as bactérias, os vírus, doenças, peste, fome. Todas as drogas lícitas e ilícitas, também ele: o cigarro. 

Todos os pecados eram armas suas: A inveja, a mentira, a calúnia, o ódio, a gula, a soberba, a avareza, a luxúria, a miséria a preguiça. Tudo pertence a ela: à morte. A maldita preguiça, voltou a pensar nela. Lembrou de outro dito popular que diz: “A preguiça é a mãe da miséria”. A miséria é filha pródiga da morte. Mariana sentiu-se irremediavelmente miserável.

Enquanto todos repousavam, madrugada à dentro, Mariana confabulava: O que seria fisicamente a morte? Um estado de sonolência? Um estado letárgico? Um sono profundo? Ou apenas o cessar das funções vitais. Por que os médicos falavam em tantos tipos de morte? O que pensa o biólogo a esse respeito: que está sacramentada caso ocorra à cessação de sinais vitais, a necrose das células do ser vivo; O médico, vai acreditar que ela se concretizou, ao observar-se no corpo, a morte clínica; O jurista vai apoiar-se na medicina legal que dependendo de uns cem aspectos não-vitais, a validará com um estado de óbito; Há ainda a considerar-se a morte vista sob a ótica social e religiosa. Dizemos às vezes que alguém está “praticamente” morto! Ou, se estaria, um morto-vivo! E o que dizer da extrema unção, administrada a alguém que ainda não morreu, mas já considerada como tal. Levando-se em conta que morte é a ausência de vida, por falta de oxigênio nas células, sejam elas cerebrais, sanguineas, cardíacas - como garantem os médicos, ao afirmar que a falta dele – o oxigênio - no cérebro, causa danos irreversíveis, e a depender da exposição a tal procedimento, instalou-se a morte no ser vivo. Observando por essa ótica, o fumante, está morto desde que iniciou o consumo de tabaco, pois inala fumo, em substituição ao gás essencial a vida. Ora mas essa discussão não vai levar-nos a nada! Morte é morte e pronto. 

E se uma vez personificada fosse realmente uma mulher? Dona Estela, a mãe de Mariana dizia que mulher com mulher se entende. Se pudesse conversar naquele momento com a morte. Teria apenas um pedido a fazê-la, não tinha direito, mas faria assim mesmo. Imploraria até: Gostaria de falar com sua mãe. Não queria fazer como fizeram os familiares de Lázaro, lá na Judéia. Cobraram de Jesus, que se ele estivesse lá, no momento da passagem, seu parente, e ele não teria morrido. E Jesus, cheio de compaixão e misericórdia, para com eles, e seu amigo, o ressuscitou. Pois dizia: ele apenas dorme. Então sua mãe apenas dormia. Precisava falar com ela. Não queria que tornasse à vida. Pra que? Pra sofrer mais ainda! E a doença? Ao invés de querer que a mãe viesse, ela é que queria ir ao seu encontro. Já não temia mais a morte. Se morrer naquele momento significasse, o reencontro com sua mãe, não teria receio algum nisso. Já ia alta a madrugada. Algumas poucas pessoas permaneciam no velório. Sentada no sofá de sua mãe, recusava-se a ir pro quarto. Ali ao lado, junto ao séquito se sentia mais próxima dela. Estava muito cansada. E vencida pelo cansaço adormeceu. Achou que havia acordado, mas não, havia acordado dentro de um sonho. Isso mesmo, apenas um sonho. E lá estava ela, diante de sua mãe. Era um lugar diferente, havia corredores e salas. Ambiente parecido com um hospital. Encontrou-a só, ocupava-se com algo. O que fazia? Aproximou-se, tão absorta estava na sua tarefa, que nem percebeu, sua aproximação. Ela escrevia.

– Oi mãe!
–Oi filha! Deus te abençoe. 

( Parecia tão tranquila ) Não tinha mais aquele ar de preocupação, com tudo e com todos. A aflição com a doença, as angústias. Dava pra perceber no seu semblante sereno, que nada mais daquilo a atormentava. Não perguntou por Felipe, nem por André, nem onde estava Marcos. Ela sempre perguntava. Seria sua mãe mesmo? Tão mais jovem e bonita. Será que ela sabia que havia morrido? Se sabia, não parecia.

–Mãe?! O que está escrevendo?

- Escrevo sobre eu mesma, minha filha. Escrevo pra Deus. Estou agradecendo a vida que ele me deu. Os filhos que tive, você e seus irmãos. É engraçado, quando vivemos, estamos tão preocupados que mal nos lembramos de agradecer. 

–Mãe? 
–Diga. 
– A senhora sabe que morreu?
–Sei sim! Um moço muito bonito me trouxe até aqui, disse pra aguardá-lo. E que, por enquanto ficasse escrevendo. 
–Mãe. Eu vim aqui. Porque preciso lhe dizer algo...
–Fale minha filha.
- Mãe... Eu vim te pedir perdão... Acho que não fui uma boa filha.
–Não diga isso, minha filha. Deus lhe perdoa... E se Ele nosso pai todo poderoso perdoa, eu também perdoo. Fique tranquila, volte. Vá cuidar de Marcos. Vá cuidar de seus irmãos. 

Mariana sentiu uma mão a segurar-lhe fortemente pelo ombro. Dava-lhes solavancos enquanto ainda fitava sua mãe, recusava-se a olhar quem, por trás, lhe puxava e lhe chamava pelo nome:

–Mariana!...Mariana! Acorde! Já é hora de ir pro cemitério!

Era Marcos que a acordava. Ainda sonolenta despertou, se recompôs teria que ir pro cemitério, iria pro sepultamento de sua mãe. A filha de Dona Estela acordou convicta de uma coisa, agora tinha certeza – Da Morte - não tinha mais medo. Bela e sedutora, também a morte tinha uma convicção: De que todos, sem exceção, iriam ao seu encontro um dia. E que ela sempre vencia na batalha contra a vida. Apenas um, somente um, a tinha vencido, o nazareno Jesus Cristo. E prometeu a quem o seguisse também garantir-lhe vitória sobre ela. 


Fabio Campos

O Gato no Espelho

Na décima terceira casa, do lado esquerdo da Rua Nova, em Santana do Ipanema, morava Dona Gertrudes. Hoje seriam apenas dois, os habitantes da casa. Ela e seu gato Felício, mas nem sempre fora assim. Por muito tempo morou também Seu Antonio, esposo de dona Gertrudes. E os filhos que tiveram: Sebastião, João Batista e Maria de Fátima. Por onde andará essas outras pessoas daquela casa? É o que vamos saber agora.

O começo de tudo foi nas proximidades do sítio Batatal. Seu Antonio era mascate nas feiras livre da região. Às terças-feiras ia ao povoado Riacho Grande, no tempo ainda em que se andava a cavalo, e de carro de boi. Levava rapadura do Ceará, querosene e tecidos. Trazia corda de caruá e couro de boi curtido, pra vender na feira do sábado. Numa das viagens de volta, uma trovoada fez transbordar o riacho João Gomes, e ficaram sem condições de passar. Por três dias ficariam debaixo dum trilho de labirinto, ao lado da estrada, esperando a cheia do curso d’água abaixar. No segundo dia em que se encontravam ali arranchados, Antonio, à época, ainda muito moço, mais outros dois feirantes, foram a uma casa lá no sopé do Serrote dos Franças, pedir um pote d’água, pra os que se encontravam na caravana. Farinha de mandioca e rapadura eram os únicos víveres que dispunham. Foi naquela casinha do pé da serra que Antonio viu pela primeira vez a menina Gertrudes. Daquele dia em diante passaria a frequentar as corridas de cavalo à argola, e novenas que aconteciam na região, na esperança de rever Gertrudes, porém somente, sete meses depois, na festa da padroeira Senhora Sant’anna é que veria novamente. De tudo fez para aproximar-se dela. Conseguindo algum tempo, depois de conhecer um de seus irmãos. E tudo se encaminhou dando certo pra namoro e casamento.

A casa da Rua Nova teria sido uma aquisição conseguida com muito esforço, trocada por uma parelha de bois de carro. Havia sido o presente de casamento do pai de Gertrudes, e mais 40 contos de réis, todas as economias de Antonio. Era casa simples, de piso cimentado. De uns três, ou quatro poucos cômodos.  Uma sala de estar, dois quartos, uma cozinha e uma área de serviço que acessava a um acidentado quintal. A área era alpendrada, ao lado tinha um banheiro acanhado e simples. Ali o telhado era tão baixo, que uma pessoa mediana precisava abaixar-se pra não bater com a cabeça. O primeiro filho do casal que nasceu naquela casa foi Sebastião, veio ao mundo no dia do santo que lhes emprestaria o nome. Dona Gertrudes trazia da casa paterna a devoção religiosa. Era fidelíssima aos princípios e sacramentos da fé católica. Os filhos foram todos batizados e crismados na Matriz de Nossa Senhora Sant’anna. 

Aos seis anos de idade Sebastião iniciou o estudo do curso primário no Grupo Escolar Padre Francisco Correia, e na Escola Estadual professor Deraldo Campos cursou o ginasial. Carinhosamente apelidado de Corisco, porque veio ao mundo nas trovoadas de Janeiro, Tião tornou-se assim, um galego esticado, corpanzil de atleta. Divertia-se a jogar bola na “prainha” do rio Ipanema e chegaria ao time do Ipanema Atlético Clube. Já rapaz, foi estudar o curso Técnico, na Escola Agrária de Satuba. De lá mesmo foi pra Maceió, morar numa república com alguns outros santanenses. Conseguiu passar no concurso do Banco do Brasil e só voltaria a Santana do Ipanema, já casado e com um neto encaminhado, pra Dona Gertrudes e Seu Antonio. Ao retornar, encontraria a casa paterna, aumentada de gente, outros dois irmãos que praticamente não conhecia, pois, nem teria conhecimento de que nasceram. João Batista quando veio ao mundo, ele ainda estudava em Satuba. Era portanto uma dezena de anos mais novo que ele. Maria de Fátima era uma menina, oito anos tinha quando ele veio pela última vez na casa da Rua Nova.

Dizemos a última vez, porque Sebastião morrera num acidente de carro. Num final de semana, ao retornar da praia do Francês com a família, seu carro em alta velocidade veio a colidir em uma Kombi, cheia de rapazes embriagados. Sebastião morreu na hora, seu filho e esposa sobreviveram, muito embora o menino ficara paraplégico. por toda a infância. Na juventude, com muita fisioterapia recuperou parcialmente os movimentos das pernas. Seu Antonio depois desse trágico episódio ficou muito triste. E sucumbiu a depressão, que acabaria trazendo-lhe outras doenças. Tornou-se hipertenso, contraiu uma pneumonia. Passado um ano certinho da morte do filho Seu Antonio faleceu.

Ainda restara na casa da Rua Nova, Dona Gertrudes, João Batista e Maria de Fátima. João Batista desde pequeno gostava de mexer em aparelhos eletrônicos. Brinquedos com algum tipo de comando elétrico que ganhava, ele desmontava e refazia dando-lhe outra forma. Tinha um sonho, tornar-se analista de sistema. Teve um pouco mais de sorte que o irmão Sebastião. Foi pra Maceió morar na casa de uma madrinha que custeou seus estudos em escolas tradicionais da capital alagoana. Estudou no Marista e no Liceu Alagoano. Alistou-se no exército para cumprir o serviço militar obrigatório. Acabou tomando gosto, e tornou-se oficial. Era pra o Major Batista hoje estar casado com a odontóloga Lúcia Calheiros, e curtir o fato de ser pai da linda menina Michele, morando no conjunto Aldebaran. Dizemos era pra estar, porque o destino lhe foi cruel. Escalado pra uma missão militar no pantanal mato-grossense, ao participar de treinamento de guerrilha, o helicóptero que tripulava sofreu um acidente caindo na mata, não houve um único sobreviventes.

Numa manhã qualquer do mês de agosto. De um ano em que só existia na casa da Rua Nova, Dona Gertrudes e Maria de Fátima. Uma gata deu de parir uma ninhada de cinco gatos dentro de uma caixa de papelão, no meio da quinquilharia que havia no alpendre detrás de casa. Dona Gertrudes daria todos os filhotes da gata, às pessoas que iam a sua residência comprar cocada, broa, bolo e pastel. Admirados pela beleza dos felinos lhes pediam. E quatro deles foram levados. Ficando apenas um gatinho preto. Como ninguém o levou a dona da casa simplesmente o adotou e colocou-lhe o nome de Felício.

Maria de Fátima nunca saiu de Santana do Ipanema. Quem sabe tivesse um sonho de um dia tornar-se religiosa. Estudava ainda na escola Sagrada Família, das irmãs holandesas quando uma doença acometeu-lhe misteriosamente. Depois de várias idas a Maceió para consultas na Santa Casa de Misericórdia, fora diagnosticada como portadora de leucemia. Dona Gertrudes tentou todas as formas de medicina alternativa pra tentar curá-la. Recomendaram que lhes desse leite de jumenta. Levou-a à lugares de romaria, Santa Quitéria, Juazeiro do padre Cícero. Fez uma promessa a Nossa Senhora de Fátima, sua santa de devoção, e da qual pegou emprestado o nome pra sua querida filha, pois nascera no 13 de maio. Tudo em vão a menina morreu.

No dia do sepultamento de Maria de Fátima. A casa estava repleta, pessoas que vieram prestar condolências a genitora da finada, e fazerem juntos o acompanhamento do féretro à morada derradeira. O sofá por alguns instantes ficou vazio e Felício de um salto o alcançou. O gato acomodado no estofado olhava fixo pro espelho, seus olhos hipnóticos, misteriosos, olhava fixo o espelho da sala, na altura do esquife. As pessoas ali presentes nem imaginavam o que via o gato. Dona Gertrudes chorava consolada por uma amiga de idas a igreja. O que via as pessoas que estavam na sala? Viam a menina deitada ao caixão, um gato no sofá, e a eles mesmos. E Felício, o gato, o que via? Refletido no espelho, via tudo isso e mais, Sebastião, João Batista, Seu Antonio e a própria Maria de Fátima, todos de pé ao lado do caixão.





Fabio Campos