Sempre retorno a rua em que morávamos quando criança.
Fisicamente ou em reminiscências revejo nossos vizinhos. As fachadas das casas,
a calçada, as ruas. Os raios de sol nos céus matutinos. Crepúsculos de nuança vária
que anunciava luares de magnífico sertão. De tudo que recordamos o que captou a
visão, ficou com muito mais ênfase do que tudo se nos imprimiram os outros
sentidos. Muito embora o que ouvíamos, se nos chegava ainda com muita nitidez,
mesmo que agora tudo parecesse fazer parte apenas de um sonho.
O cantar dos passarinhos, na copa das árvores dos quintais,
sacudindo as cortinas do dia. O halo gélido do alvorecer, a alma das manhãs
esvoaçante feito nuvem indo, se desfazendo em orvalho. Embaçando as vidraças,
umedecendo os biscuits na parede, as porcelanas no bufê. A hortelã deixando
fluir sua essência sobre as coisas, misturando-se ao aroma encorpado de um café
recente saindo do bule. Sinfonia de pardais. Eram esses alguns dos sons que
anunciavam o dia. A cada dia.
O tilintar dos talheres, nas cozinhas das casas, prenunciavam as mesas postas. As
bocas e as mãos alvoroçadas das mães acordando os filhos pra iniciarem suas
jornadas. Ouviam-se por toda a vizinhança a cada manhã. Eram os sons de Deus. Atividades
e vozes humanas vinham e acordavam o dia. A casa de Seu Cariolano ficava longe,
porém voando ia o pensamento e trazia nitidamente o som à sala de estar, um relógio de pêndulo. Sóbrio,
resignado no seu ofício de ficar feito soldado britânico, fazendo a guarda da
rainha. Tendo a obrigação de a cada hora se anunciar, com seu som gélido, inquisidor.
Lento e pausadamente dizendo: agora é tal hora! Na casa de Seu Leopoldo, som
nenhum, durante toda a manhã, ia se ouvir. Uma só vez o silêncio seria
estilhaçado na manhã daquela casa, o estridente despertador na penumbra do
quarto, exatamente às seis. Acordando as coisas, muito embora sem nada
conseguir tirar da apatia em que tudo se encontrava. Os sapatos comportados
permaneceriam lado a lado. Gravatas, calças de linho e paletós tontos, do
cheiro de naftalina, continuariam hibernando no roupeiro. Seu Leopoldo já havia
ganhado o caminho da fazenda Boa Vista, o seu mundo. À cozinha, Dona Maria preparava
o café dos meninos.
Os Vanderlei Tenório. A casa de Doutor Aderval, deitava arquitetura, tudo tinha
cara, cheiro e dedo do arquiteto que pensou em tudo, tanto e tão bem. Esmero no aproveitamento
dos espaços. Pecou na acústica, longe se ouvia o clap-clap das galochas de
borracha branca de Dona Déa no piso de mosaico. Certamente metida naquele
macacão de brim azulsíssimo, com marca de laticínio nas costas. Um chapelão de
palha com uma flor de palhinha, com um colorido desbotado pelo sol. Voz
enfática, estridente, ricocheteando nas paredes, resvalando pelos umbrais,
ganhando o céu, ganhando a vizinhança. As recomendações a empregada doméstica
antes de sair, diziam dum cuidado a ser dedicado aos cães e pássaros. As mãos
girando a maçaneta, o molho de chaves chacoalhando, rapidamente recolhido, indo
parar no bolso do macacão de jeans índigo blue. Agora na rua som metálico de
baldões de leite, vazio chocando-se num lastro de reboque. Agora, acionando a
ignição do jipe, o ronco do motor se afastando, em poucos instantes estaria,
pisoteando com aquelas galochas as touças de bosta de bovino, retidas no
curral. Acompanharia a ordenha ouvindo vez outra o mugido longo e plangente das
vacas, entremeado pelo alegre som acobreado dos chocalhos.
Os Laranjeiras. Dona Maria Laranjeiras tinha um piano. Todos
os dias ao cair da tarde Dona Maria tocava ao piano. E também dava aulas de
flauta doce e cítara. Àquela casa respirava-se arte. Dona Maria Ourives ensinava
esculpir na madeira. Dentre os discípulos havia os gêmeos Kéops e Jacó. Eram
meninos ainda. Eram filhos de Doutor Adelson Isaac de Miranda. Zezinho filho de
Dona Maria pintava quadros, naturezas mortas, paisagens, cenas urbanas.
Impressionou o menino que um dia eu fora, uma paisagem bucólica noturna, a
beira do mar com luar. E da casa repleta de artes, cordas e pinos traziam
músicas natalinas longe dos natais, músicas de ninar longe de criança pra
embalar. Marchinhas carnavalescas longe do carnaval. Marcha nupcial sem
casamento, marcha fúnebre sem velório nem defunto. Também alegres sonatas que
faziam pardais e pardocas se bicarem como se contagiados pela melodia se
preparassem para acasalar. Nas paredes quadros impressionista, cubista,
desenhos de Alberto, o outro filho de Dona Maria que também era artista. Por
sobre os móveis, partituras, pincéis, espátulas. Um tanto considerável de frascos
de tintas na mesa, produzindo uma profusão de cores, feito um caldeirão de um
bruxo fazedor de arco-íris. Formões, cinzéis, pincéis, toras de tronco
espalhados no chão que virariam belas peças depois de talhadas. A casa ateliê,
era o país dos sonhos de qualquer artista. E ficava logo ali, a duas casas da
minha.
Os Carvalhos. Gilvan Carvalho tocava violão. Gilvan filho de
Dona Glorinha, era nosso vizinho pelo lado da nascente. A parede do nosso
quarto ficava encostada na parede de sua casa. Todos os dias, Gilvan dedilhava as
cordas do pinho, tentando arrancar dele uma música que Jamais saíra. Tive
vontade de aprender violão, contagiado pela persistência, insistência,
determinação do vizinho. Num dia de sábado, na feira do passarinho, o menino
que um dia eu fora, por conta própria, compraria um violão. Às escondidas no
quarto iniciaria sozinho pelo mavioso caminho das cordas. Aprendiz de violão.
Duas decepções se seguiriam inibindo as vontades de ser um futuro violonista.
Primeiro Marquinhos de Seu Breno alegaria que seria muito complicado dar aulas
de violão a aprendiz esquerdo. Concluiríamos que não apenas o violão, mas o
mundo fora, feito para os destros. Meu pai ao ouvir certa vez o som das cordas,
ainda que abafadas pelas paredes do quarto, na hora da janta faria um
comentário que acabaria de vez com o sonho do futuro ex-violonista.
-Se encontrar um dia um violão nesta casa. Quebro na cabeça
do violeiro!
Ó mundo ingrato! Perdestes um violonista, porém ganhastes um
eterno apaixonado pelo violão. O menino que um dia fora, havia se contaminado,
continuou encantado pelo som produzido pelas cordas do violão, do violino, do
violoncelo, da cítara, da guitarra, do baixo, do bandolim, do cavaquinho, do
birimbau. Nas noitadas de seresta à Praça da Bandeira. Nas passeatas garbosamente
desfilavam, as Liras de vinte e poucos anos.
Fabio Campos
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