O retrato era de 1948.
Emoldurado, há muito pendurado na parede do velho quarto. Nele havia um homem
de pé, aparentava ser mais alto do que era, talvez pelo fato de estar de
paletó. Ao seu lado, sentada numa poltrona, uma mulher, de vasta cabeleira negra,
num vestido estampado, tinha ao colo o filho do casal. O menino, que aparentava
seus quatro anos de idade. Uma miniatura do pai no traje. No semblante, mais se
assemelhava a mãe. Não fosse aquele
registro, eternizado em preto e branco, ainda mais se destacariam as flores
amarelas no vestido azul, e as rosas vermelhas do jarro na mesinha forrada com
rendinha de filó, ao lado da poltrona. O casal trazia na face uma serenidade
boa. Um quê de dizer-se somos felizes, sendo quem somos e estamos. Sem nada
precisar dizer, diziam duma cumplicidade de esperanças, de destinos
entrelaçados. Pareciam entregues assim à vida, sem prenunciar o que lhes
reservava o porvir. Faziam por onde eternizar no quadro de papel, aquele
momento, por motivos muito significativos: Fora por aqueles dias que haviam se
mudado pra aquela casa, também o garoto iniciava idade nova.
Antes haviam morado na Rua Nova,
mudados estavam pro Largo do Monumento. Na antiga morada, quando chovia,
entrava água dentro de casa. No último inverno fora tanta chuva que o muro do
quintal não suportou, veio a baixo. Pro menino uma festa, dali por diante nada
mais o prenderia. A mãe quando menos esperava ouvia Seu Fernando, o tangedor de
mulas com carga d’água do rio, chamando na porta. E lá ia ela encontrá-los. Entre
o sorriso amarelado de fumo do almocreve e o sorriso de dentes falhados do
traquino, vindos da beira do Ipanema. Entre as ancoretas no lombo do muar vinha
menino. Nas noites frias de inverno mosquitos e vaga-lumes emprestavam a noite
o cintilante e mágico pisca-pisca de luzinhas verde pirilampo. Dava pra ouvir os
tenores grilos, as sopranos jias, punham-se a executar melodiosa sonata,
madrugada à dentro. Cantavam tendo-lhes a janta farta a esvoaçar, no etéreo
perfume das águas barrentas e frias, cor de café com leite do rio com cheiro de
piaba. A casa ficava do lado que as moradas tinham entradas altas, cheias de
degraus. A vizinha do lado esquerdo chamava-se Otília. Pobre Otília, cedo ficara
viúva, muitos filhos pequenos pra criar sozinha, um deles sofria das faculdades
mentais. Em tempos “de lua” não deixava ninguém dormir. Tinha dias de sair
nuzinho pela rua, dizendo que o mundo ia se acabar. Quem se acabou mesmo foi
ele coitado, numa de suas crises, saindo de casa em disparada atirou-se no
leito da rua, e foi parar embaixo do caminhão de Seu Mané Guarda, que culpa
nenhuma teve.
A morada da Rua Nova durou pouco
mais de dois anos. Antes residiram no início da Barão do Rio Branco, do lado
que as casas ficam olhando pra torre da igreja, recebendo na fachada o sol
matutino. Era uma casa pequena. Uma salinha acanhada, na parte da frente ornada
por um centro de umburana envernizado com esmero. Uma cadeira preguiçosa e um
sofá de palhinha trançada; contíguo, havia o único quarto, uma cama de casal,
com respaldo de travesseiro alto, torneado, num tom verniz cor de vinho, sempre
bem forrada com forros bordados, frisado com renda, e detalhes que traziam
perus e guinés em alto relevo. Ao canto um berço bem cuidado, sob um
mosquiteiro suspenso por cordão que se prendia aos caibros do teto. Ali nascera
o menino do retrato, aparado por Dona Mãezinha parteira. Por fim a cozinha: Mesa e cadeiras, um guarda-louças
e um fogão à carvão, forjado em folhas de zinco, esmaltado de branco, e estanho
nos gradis e grelhas. No canto oposto ficava a latrina. A porta dos fundos dava
pra o “Panema”. Nos dias quentes de verão
pela tarde, a mulher sentava-se na porta da frente com o menino ao colo, que naquele tempo ainda mamava. Foi numa dessas tardes, veio vindo uma novilha lá da beira
do rio, e encontrando a porta dos fundos aberta meteu-se casa à dentro. Aos
gritos a mulher pediu ajuda aos estivadores que ficavam sentados nas portas dos
armazéns ali de frente. Muito embora desnecessário o socorro. A rês assustada
com o alarido, deu-se pra trás e foi-se embora.
Antes da Barão do Rio Branco, o
casal morou na Rua da Poeira. E teve muito anterior a tudo isso, o dia em que
recém-casados chegaram a Santana do Ipanema, vindos de Olho D’água das Flores.
Tiveram que atravessar de canoa, o rio Ipanema cheio. Bravio, a toda largura,
assim estava o rio, e era quase noite. Na travessia a mulher clamava a Deus e
aos céus, rezava e chorava tanto e com igual intensidade, tinha medo que a
canoa virasse, pois não sabia nadar. Era a primeira vez que ela vinha a Santana
do Ipanema.
No 07 de setembro de 1944,
amanheceu no Largo do Monumento, um pelotão de “praças” e reservistas
convocados pelo Serviço Militar. Perfilados de frente ao Quartel da Polícia, no
oitão da capela de Senhora Assunção. Ao mastro acenava vez outra, a bandeira
nacional. Incautos cidadãos prestavam juramento de defender, com a própria vida
se preciso fosse, a honra da nação brasileira. Iriam pra Itália lutar na
segunda Guerra Mundial. O prefeito dirigiu-lhes gloriosas palavras. Falou do
que dizia o Jornal de Alagoas do dia anterior, notícias de que Getúlio Vargas
lá no Rio de Janeiro, declarava total apoio da nação brasileira aos aliados,
principalmente ao governo americano na pessoa do presidente Franklin Roosevelt.
O que se comentava em caserna, a boca miúda, pois era uma missão secreta, era
uma mensagem chegada dos Correios e Telégrafos. Recebida e lida pelo comandante
do batalhão Coronel Lucena Maranhão, avisando-o sobre a instalação de bases
militares de tropas americanas, na barreira do inferno no Rio Grande do Norte e
no território de Fernando de Noronha.
Quanto ao casal da fotografia,
anos antes dos pracinhas irem pra guerra, quando nem mesmo ainda era um casal,
antes mesmo de se dar em casamento. Lá em Olho D’água das Flores, a época, ele
trabalhava de padeiro. Era um santanense que morava de pensão. E todos os dias de
ida pro trabalho passava em frente à casa da bela mulher de vestido estampado na fotografia.
Naquele tempo quando se tinha intensão de namorar com alguém, namorava-se inicialmente através de carta. E numa daquelas vezes,
ao vê-la à janela, o homem de paletó no retrato, parou, tirando o chapéu perguntou-lhe:
-Você aceita uma carta minha?
-...Aceito.
Fabio Campos
Nenhum comentário:
Postar um comentário