A Árvore

Três árvores se faziam plantadas no meio de uma floresta. Mas era uma floresta de mentirinha. Bem como irreais as três árvores. Possuidoras seriam, das vontades humanas. Sendo tudo, parte de uma fábula. Dizia que a primeira árvore queria ser uma arca. Precioso baú cravejado de brilhantes, que encerrasse importante tesouro. A segunda gostaria, de quando crescesse, seu tronco servisse para construir uma bela caravela. Pra que nela, pudesse navegar importante monarca. Por fim a terceira, um imponente mastro queria ser, para figurar em lugar alto, e que todos a admirasse. Tempos depois, eis que seriam, as três árvores cortadas. E os troncos, tomariam cada um, destinos diferentes. O primeiro, transformado em manjedoura, justamente aquela que abrigaria o menino Deus, em Belém. O segundo viraria a canoa que o rei dos reis usaria pra atravessar o lago Tiberíades, na Galiléia. O terceiro tronco, pelas mãos de um carpinteiro acabou virando a cruz, na qual seria pregado o filho de Deus.

Cícero, acabara de ler a mensagem na tela de seu computador. Era como que adormecesse pra um sonho, ou talvez acordasse dele. Não sabia bem explicar, só sabia que depois de lê-la, voltou muitos anos no tempo. Ali, sentado do jeito que se encontrava, olhando pro visor da máquina. Adentraria à um túnel. Àquela luz intensa lhe transportaria, pra época em que ainda era menino. Morando ali mesmo, em Santana do Ipanema, sua terra natal. Estudava no Grupo Escolar Padre Francisco Correia. Depois das aulas, a prainha, nas areias do rio Ipanema, o campinho de futebol. No cair de uma tarde como aquela, na companhia de outros dois amigos, Miguel e Daniel. Olhavam os três, pro serrote da microondas. E ponderou:

-Êi?! Vamos escalar a Serra da Microondas?... Só que tem um detalhe, não será pelo caminho que todos sobem...Vamos pelo lado da frente, pelo meio da mata. Topam?
-Eu topo, desde que não seja mais hoje, já está tarde...
-Eu também topo, outro dia...Que tal sexta-feira?

No dia marcado, lá estavam os três, às seis horas da manhã. A caminho de escalar a Serra da Microondas. Exatamente às nove horas atingiriam o cume. Fariam o reconhecimento do local. Fotos ao lado da estátua do Cristo redentor, incrustada na enorme pedra. Ao contemplarem a figura divina, retratada toscamente no concreto, de branco caiada, se lembrariam de fazer uma oração. E rezaram o Pai Nosso. Cícero localizou as ruínas do que seria um dia, uma casa de máquinas. Abrigaram-se do sol ali. Quando bateu a fome lancharam, pois haviam levado suprimento de água, frutas e biscoitos. Miguel ponderou:

-Sabem que dia é hoje?
-Claro! Sexta-feira.

-Eu me refiro a data de hoje! Oito de agosto de 1980. Vamos gravar nossos nomes e essa data, em algum lugar. Algum tempo, quando qualquer um de nós voltar aqui, verá se ainda se encontra. Que tal?
-Pensando melhor – disse Daniel – vamos decidir desde já, uma data, pra voltarmos os três novamente aqui. Que tal daqui a trinta anos?!

-Bacana! - Disse Cícero – E se cada um de nós, procurasse uma pequena planta para replantá-la aqui em frente. Quando  voltarmos daqui a trinta anos, veremos, quais conseguirão crescer e vingar até lá.
E assim o fizeram. Cícero encontrou um pé de Pião Roxo. Daniel uma muda de Cássia e Miguel uma algarobeira. Os três meninos, amigos inseparáveis de terna infância, depois de cumprirem solene acordo, passariam todo aquele dia brincando, no entorno do cume do maciço. Encontraram colméia de abelhas, uma cobra livrando-se da velha pele. E um ninho de urubus, num instinto de defesa, os filhotes da ave regurgitavam, causando nos meninos a impressão que se enojavam deles. E quando o sol despencou pros lados do serrote do Cruzeiro, o bosque de verde exuberante se fez esmorecido. O céu se fez tinto nos capuchos de nuvens e alaranjado tornou-se o firmamento. Entregues a brincadeira de atirarem flechas de pegas-pinto uns nos outros. Os três se puseram a fazer o caminho de volta. E como brinquedo esquecido, já nem se lembravam do acordo firmado lá no alto, coisa de menino.

Trinta anos havia se passado. Ali estava Cícero. Depois de ler aquela fábula, retornou no tempo, e relembrou o pacto dos amigos de infância, lá no alto da serra. Ainda não era agosto, estávamos em abril de 2010, pouco importava se alguns meses faltavam para se completar o tempo, precisava retornar lá no alto. Mas o acordo dizia, os três deviam subir! Não ele sozinho. Aonde estariam os outros amigos agora? Em que a vida os haveria de tê-los transformado? Bem sabia em que, ele mesmo, havia se tornado. Um professor de história. Plágio do Cícero orador de Roma. Onde estariam o arcanjo, e o profeta bíblico, seus amigos?

O Orador
Depois daquela infância, vivida de forma tão intensa, Cícero teve que encarar uma idade adulta. Forçosamente teve que abdicar da juventude, perderia o pai aos quinze anos. Cedo à responsabilidade de homem. Caíra o esteio da casa, assim diziam os mais velhos. Aos filhos que ainda permaneciam dentro de casa, agora o jugo da manutenção da casa. A ele, e seus irmãos menores a obrigação de garantir o sustento deles próprios. Viúva e órfãos sofriam, acostumados que estavam com o provimento garantido pela figura paterna, agora ausente.  Foi tudo tão difícil. Pra ganhar algum, entregaria jornais, venderia revistas em quadrinhos e livros no meio da feira. Muitas outras coisas faria, pra conseguir alguns poucos trocados, tinha que ajudar no sustento da casa. O tempo, senhor da razão, passou voando e Cícero conseguiu, a duras penas, terminar o curso de magistério, se tornaria um professor. Um orador eis o que era. Graças a sua eloquência não foi difícil desposar a uma jovem, chamada Maria. Sairia da casa materna, e de Santana do Ipanema. Foi-se, deu de iniciar, a construção de seu próprio lar, ao lado de sua amada. O orador, mal se apercebeu as três décadas passando, num misto de moinho e carrossel, em sua vida. Pintando-lhe de branco, os cabelos. Os três filhos nascendo e crescendo em seu derredor. Quinze anos de sua vida conjugal passaria longe de sua terra natal. Mas um dia voltaria. E agora lá estava. Diante do computador com uma missão que completaria dali a quatro meses, bodas de pérola. Não estava disposto a esperar, tempo demais já havia se passado.

O Profeta
Daniel depois daqueles dias pueris, tomaria um destino quase semelhante ao de Cícero, com o atenuante de não ter que pra isso, perder o pai. Pouco quis saber dos estudos, depois do primário no Padre Francisco Correia. Daria preferência ganhar dinheiro, à conhecimentos contidos nos livros. Se fossem aqueles amigos, os três porquinhos, Daniel com certeza seria o Prático. Se descobriria em diversas profissões, à medida que ia deixando pra trás a infância. Em algumas delas, simplesmente pra manter-se empregado e remunerado, outras porque gostava, porque tinha vocação. Seria ajudante de pedreiro, auxiliar de marceneiro, mecânico de moto, estudante, e ao mesmo tempo desistente, de um curso de eletrotécnico. Seria ainda vigilante de supermercado e frentista. Cícero por algumas poucas vezes ainda o veria. Teve pena ao ver, aquele alegre menino de um dia, transformado num velho senhor cheio de preocupação e seriedade. Tornou-se fumante, rugas marcavam-lhe a fronte. Por certo nunca mais o veria dando aqueles dribles, que só ele sabia dar, nos moleques, no campinho da prainha. Sabia que já fora embora de Santana várias vezes. Por fim procurou saber, através de alguns contatos telefônicos, e descobriria que naquele exato momento Daniel se encontrava em Natal, no Rio Grande do Norte, novamente casado e feliz. Sua primeira esposa continuava em Santana, criando três filhos deles. Talvez conversaria com os filhos dele. Desistiu eram só três crianças.

O Arcanjo
Dos três amigos, Cícero sabia que, um, não adiantaria mais ir procurar. Pra refazerem juntos, o caminho, a serra microondas três décadas depois, era Miguel. No tempo que morava em Maceió, ficou sabendo, através de um dos irmãos, o trágico e prematuro fim que tivera. Miguel ainda na juventude, amorosamente se envolveria com uma garota, de nome Lúcia. Nesse tempo, ambos estudavam no Colégio Estadual Mileno Ferreira, a menina, apenas treze anos tinha. E engravidara do nosso amigo, que passaria a ficar preocupado com essa situação. Não teve a aprovação da família pra o que acontecera, a menina também não. Miguel assim como Daniel, gostava de jogar bola. Toda a sua meteórica existência dedicaria a isso, pois somente praticando aquele esporte, se sentia realizado. Nunca mais o veria, dobrando-se em maravilhosas gargalhadas, ao ver os meninos se enfurecendo por suas jogadas de craque.  As cobranças dos familiares eram muito fortes, achavam que jogador de futebol nunca lhes acenaria futuro promissor. Um dia, seu pai, um policial reformado, chegou à casa. Tirou a camisa, colocou-a no descanso da cadeira. A carteira, os óculos, o crucifixo, o revólver.  Todos os pertences, à mesa. Foi tomar um banho. Miguel chegou da rua, vinha do campinho, estava todo suado. Passou direto pro quarto. Sua mãe olhando pra mesa observou: E o revólver, não estava lá, ainda à pouco? Naquele instante, ouviu-se o estampido. Miguel cometera o suicídio.

Cícero escolheu, a manhã daquela sexta-feira santa pra subir a serra. 

Subiu sozinho. Lá no alto, tudo tão diferente. Vestígio nenhum de onde haviam colocado seus nomes e a data. No local onde tinham cultivado as plantinhas, muitos arbustos. No entanto um caule meio retorcido, com alguns galhos quase sem folhagem, lhes indicaria haver ali, um pé de algaroba. Seria a mesma que Miguel plantou? Sentir-se-ia como aquele tronco, triste, sozinho, silencioso. Seus dois amigos também acabariam como aquela árvore, Miguel como arcanjo que era, saíra voando, feito folhas ao sabor do vento. Daniel, descido a cova dos leões, fez-se mártir de si mesmo. Sentia que ele estava ali, feito raiz sobre a terra, nutrindo-se, vivo, pois sabia que um dia os três se encontrariam ali. E Cícero acabaria lembrando-se da frase com que o autor encerrava a fábula, a moral da história: “Nossos planos, nem sempre são aqueles que Deus tem para nós, Embora Ele na sua infinita sabedoria, escreve certo por linhas tortas.” Deu por encerrada sua missão ali. Antes de descer a serra, olhou mais uma vez pra árvore, pro Cristo ali de braços aberto. Sabia que o verdadeiro, lá do alto, o espreitava.  

Fabio Campos           

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