Quilômetro 184 da BR 316

O endereço aludido ao título dessa história, caro leitor e leitora, fica nas proximidades do sétimo Batalhão da Polícia Militar de Alagoas, companhia de Santana do Ipanema. Justo neste local, vamos nos encontrar neste momento, no leito da pista asfáltica federal. Cuja mão, leva os viajores rumo à capital alagoana, e contra-mão, os devolveria a cidade de Santana. Há um sol, de nove da matina, arestado pro lado leste que vem aquecer o asfalto. Liberando no ar, vapores do betume recém colocado. O céu límpido, azulado, quase desanuviado, denuncia ser dessas, uma manhã setembrina. De onde estamos da pra ver, ao norte, o esverdeado sopé do serrote dos macacos. Um rapaz segue calmamente, guiando uma moto em direção a cidade de Dois Riachos. De repente escuta, vindo de sua retaguarda, o frenético barulho da sirene de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal. Com um sinal de mão, um dos patrulheiros o obriga a parar no acostamento. O que guiava permanece ao volante, e o outro desce para abordar o jovem motociclista:  
-Documento da moto e habilitação, por favor!
O que fora solicitado foi prontamente atendido.
-A fivela da parte inferior do seu capacete não está abotoada. Por quê?
-Dessa vez, por descuido. Mas sempre coloco...
-Não está colocada agora! Isto é uma infração e vai lhe custar uma multa!
-Só por isso?!...
-Depois desta, nunca mais esquecerá de colocar! Além do que isto poderia lhe custar à vida, sabia?
O rapaz, de nome Luiz, morava em Dois Riachos, onde tinha uma oficina de conserto de motos, era o filho primogênito de Dona Carminha, professora aposentada. Havia passado o final de semana na casa de uma tia, em Santana do Ipanema. Ali, namorava uma moça, chamada Bruna. Naquela manhã de segunda-feira retornava pra casa.
De repente uma caminhonete desenvolvendo alta velocidade, surge na curva. O motorista é surpreendido ao ver a blitz, é um rapaz, ele não tem habilitação, sozinho conduzia o carro do pai até o sítio onde moravam ali próximo.  O nervosismo e a velocidade exacerbada, o faz perder o controle do volante. E atira-se implacavelmente contra o acostamento, onde se encontravam o policial e o motociclista. O guarda foi atingido na perna, enquanto que o corpo de Luiz foi arrastado por vários metros junto com sua moto que ficou despedaçada.
Luiz estava morto. Foi tudo tão rápido. Ainda ele, nem se apercebera do que acontecera, e seu corpo ensanguentado, estava lá estendido ao chão. Via a si mesmo, no chão, inerte. Apenas via, nada sentia. Não havia mais respiração, não sentia o peso do seu corpo, o incômodo do calor, a sudorese. Nem a luz do sol nos olhos, nem a boca seca, nada disso mais incomodava. Não entendia o porquê daquela paz indescritível da qual se sentia envolvido. Paz que o ato de estar vivo jamais poderia lhe proporcionar. Nada do que acontecia ali, parecia ter mais interesse algum. Nada daquilo fazia mais parte dele. A leveza do seu ser, noutra dimensão, sem as intempéries do corpo e do espaço físico, fazia-o incrivelmente despreocupado, mesmo diante do que acabara de acontecer. Já muitos carros que passavam haviam parado pra ver o acidente, um aglomerado de gente em torno do sinistro. Alguns, muito aflitos, outros, apenas curiosos. Ninguém o percebia ali em pé. Todos queriam ver, ou fazer algo, pelo seu corpo. O jovem motorista infrator fora preso. O guarda com a perna quebrada socorrido. Quanto ao seu corpo, Luiz o viu seguir na mala da viatura, envolto num cobertor. De repente um homem veio vindo em sua direção. Olhava diretamente pra ele. Aquele sim, teve certeza que lhes via. Era um senhor de mais ou menos setenta anos, moreno de cabelos e bigode grisalho, com calma perguntou-lhe:
-Isso aconteceu com você?
-Sim...
-Comigo foi à muito tempo. Eu vinha da roça com um carro de boi carregado de palma. Era noite, nessa mesma curva, apareceu outro maluco num caminhão...
Apontou o local. Haviam construído, um daqueles santuário em miniatura. Aonde os familiares costumam depositar mortalhas e acendiam velas em dia de finados. Luiz pra lá olhou, e conseguiu ler, o que havia escrito numa cruz de ferro preta, em letras brancas: Antonio Calixto. Uma estrela indicava a data de nascimento, era de 1925; uma cruz assinalava a data do dia fatídico, que estava apagado, só dava pra ver, mês e ano, outubro de 88.
Um garoto de aproximadamente oito anos, do nada, apareceu ali. Olhou pra Luiz e seguiu até onde estava o burburinho. Apenas Seu Antonio e Luiz conseguiam vê-lo. E o velho Calixto que ainda permanecia ao seu lado comentou:
-Tá vendo esse menino? Chama-se Pedrinho era filho de compadre Ismael. Foi atropelado lá adiante, vinha da escola de bicicleta. Era por volta do meio-dia, um caminhoneiro encandeou-se com o sol, passou por cima que nem viu!
Alguns anos se passaram desde então...
Em Santana do Ipanema, Valkíria irmã de Bruna, namorava Roberto, que estudava do Ginásio Santana, filho de Messias, ex-bancário aposentado. Valkíria uma menina ainda, só quinze anos tinha. Acabaria por engravidar do namorado. Por várias vezes pensou em provocar aborto. Tinha medo, da reação de Dona Corina e Seu José de Arimatéia, seus pais que eram feirantes. Tinha medo de que a expulsasse de casa, mas nada disso aconteceu. Faltando pouco mais de duas semanas para o seu filho vir ao mundo  Valkíria, teve complicações, na gravidez de alto risco.
Levada às pressas ao hospital Doutor Arsênio Moreira, foi imediatamente encaminhada pra Maceió. A ambulância que a conduziria tinha acabado de chegar da capital alagoana, e já voltava com a nova paciente. A noite já se fazia. Ao chegar no quilômetro cento e oitenta e quatro, o motor da viatura médica principiou um incêndio. O motorista imediatamente parou o automóvel de socorro. Pobres homens aflitos, o pai de Valkíria e o motorista, a muito custo conseguiram apagar o incêndio iniciado. Arrefeceram o calor do carburador, a origem do problema. Inevitavelmente uma pequena mangueira ficou destruída pelas labaredas que se iniciou no motor. Iriam passar horas ali até que alguém os socorresse. De repente, da escuridão da noite, apareceu um rapaz que se prontificou a ajudar. Disse o mancebo que entendia um pouco de mecânica de carro. Levou o motorista até o acostamento e pediu que pegasse um pedaço de mangueira preta de sua moto que ele havia deixado ali, e o orientou como fazer uma gambiarra pra tirar o veículo da pane. E realmente serviu. A ambulância seguiu viagem, e Valkíria pode salvar-se, e a seu filho. Passado o susto, o médico que a socorrera comentaria que se demorasse um pouco mais, teriam ela e o bebê morrido. De volta a Santana do Ipanema, na porta do hospital, o motorista da ambulância, contaria o sucedido aos colegas. Um dos amigos lhe perguntaria:
-E esse rapaz que lhe ajudou no reparo da ambulância, por acaso você o conhece, sabe seu nome?
-Ah! Isso eu fiz questão de perguntar, onde ele morava e seu nome, pois prometi um dia ir visitá-lo! Mora em Dois Riachos e chamava-se, Luiz.

Fabio Campos 

Nota do autor: Os contos "Liras de Minha Rua"(20.06.13); "O Crime da Rua Tertuliano" (22.02.13)e "Negrão dos Cavalos"(04.05.12) estão com gravuras atualizadas

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