RUA DE ZÉ QUIRINO
Seu Fernando lá ia tangendo o
burro carregado com quatro ancoretas, cheias de água do Ipanema. Ao trote do
animal a carga balançava, emitindo um som característico, dentro dos cilindros
de madeira. Seguiam pela rua de Zé Quirino, deixando para trás um rastro, feito
uma sangria desatada que pintava o leito da rua de rio. O sol se espreguiçando por cima das árvores e
dos telhados das casas, enquanto os passarinhos engaiolados de Seu Carlitos,
pendurados no pé de amêndoa esticavam as cabeças tentando receber os primeiros
raios de quentura da aurora. Dona Zefinha cumprimentava Seu Fernando, mas não é
água que aguardava. Esperava à porta, outro homem com outro jumento, que vinha
da Maniçoba, o vendedor de leite de Seu Zé Urbano. A buzina estridente
anunciava, Seu Pedro, vindo do comércio à guisa de um carrinho de pão.
RUA DA CADEIA
Quando o vendedor de leite
chegasse Dona Edite ia perguntaria como estava Seu Zé Rosa, vigia do açude do
Bode, se melhor de saúde. E iria reclamar do leite, pois, se cozido deixava uma
crosta no fundo da panela. Tinha achado estranho também o cheiro, ia querer
saber o que as vacas estariam comendo. Dona Carmelita, metida no seu roupão
rosado, com suas chinelas fazendo chap-chap na calçada, estava indo até a
Mercearia de Seu João Frade, comprar fósforos, ovos e manteiga. Precisava
preparar o café da manhã de Seu Otávio, o marido, e dos três filhos que iriam
pro seus destinos dali a pouco. Os filhos iriam pra o grupo escolar Padre
Francisco Correia, o marido pro mercado. Seu Benigno morava na casa amarela, de
batente alto na entrada, a esposa Dona Marcolina acordava as filhas, Vitória,
Valéria e Valkíria. Ele trabalhava no setor de Endemias da Secretaria Municipal
de Saúde, pouco faltava pra se aposentar. Enquanto não chegava esse dia, cumpria
rigorosamente seu ritual, vestido em sua farda cáqui, pondo seu chapéu
engraçado, de caçador de borboletas, iria fazer visita às casas, olhar os
depósitos d’água. Investigar, checar, recomendar.
RUA NOVA
Interessante como as casas se
pareciam com seus donos. Na casa de Dona Cristália, As louças de porcelana, na
cristaleira de Dona Cristália. Na casa do Mário Nambu que era caçador, três
biscuit na parede da sala, três gansos branquinhos voam pra canto nenhum,
parados. Seu Tributino fazia tarrafas feito o apóstolo Pedro. E tinha filho
chamado Jesus, a esposa é Maria e as paredes repletas de imagens de santos.
Dona Mariquinha mãe de Gilvan quando fosse perto de dez da manhã iria até a
farmácia de Seu Aleixo comprar pílulas pra sua enxaqueca. O rádio, o tempo todo ligado, era escutado
pelos seus três gatos angorás. E escutariam até meio-dia. À tarde eles dormiam,
quando acordavam tomavam leite desnatado, mesmo assim se tivesse música à
vitrola. Os meninos, Dionísio, Paulo e Manoel, filhos de Seu Zé Preto, de volta
da escola passavam direto pro Panema. Iam jogar bola no campinho da ponte
quebrada, até o sol ficar a pino, e só iriam pra casa quando estivessem com
muita fome. Chegariam em casa suarentos e afobados, deixariam roupas largadas
por todo canto e Dona Celina a preta velha, em vão reclamariam, como faziam
todos os dias. Enquanto os meninos sonhavam um dia ser jogador de futebol.
Quando era dia de feira, a rua
ficava ainda mais agitada. Do bebedouro passa em agitado tropel, um menino
montado numa mula tangendo umas reses pra intendência e sempre acabavam fazendo
a todos entrarem pra suas casas. Maria Lula que vinha do comércio trazendo uma
cesta na cabeça teve que entrar na casa de Dona Antonia lavadeira até os
bovinos se irem. Foram-se, mas deixaram um trilho de esterco enchendo a rua do
cheiro de curral. No final da tarde, mais alvoroço. Suburbanos bêbados lavados, voltam pra seus quixós,
balançando suspensa num dedo o que chamavam de feira, os moleques apupavam. Uma cachorra vira-lata no cio, passara com
seis ou oito cachorros à reboque, um deles conseguira o coito mas ficaram enganchados. Festa pros
meninos, desespero pros cães enlaçados pelo sexo.
RUA DE SÃO PEDRO
O prédio da Perfuratriz de tão
antigo tornou-se triste. Na festa de São Pedro barracas, bandeirolas coloridas
e gambiarras de luzes perpassavam suas calçadas e fachadas e nem assim
conseguiam alegrá-los. Os festeiros, transeuntes noturnos beneficiados pela
escuridão, aproveitavam o ermo dos cantos do velho prédio e aliviavam a bexiga.
Meninos atiravam contra suas paredes desbotadas todo tipo de sorte. Bala de
atiradeira, roqueira, bomba de cordão, pichação, riscos de carvão e giz,
arremedo dos sexos, o do homem, uma tesoura o da mulher um triângulo, mais
parecia um remendo costurado. Uma propaganda eleitoral antiga, pinchada por
Albertino das tatuagens desafiava o tempo, “vote em Oceano Carleal”, ao lado do
dizer, o desenho de uma mão fechada, com o dedo polegar hirto. Hoje em dia nem existian mais aquele Oceano,
nem Carleal, nem Albertino. Só o prédio velho, a parede e a mão dizendo:
Bacana! Que nunca se cansava. Jovens
casais sentados nos batentes centenários, enamorados se beijavam, fazendo pouco
caso, de que o espaço que ocupavam era parte da história daquela rua. No meio
da festa, uma briga. Dois amigos, Alípio
e preto Paulo, um jogador do time do
Ipanema o outro do Ipiranga, embriagados se desentenderam e trocaram sopapos. Falaram
que a contenda teria se iniciado, motivada por futebol. Só alguns sabiam a causa
verdadeira, era a mulata Albertina (Tina), bonita e namoradeira dera bola pros
dois. Os Soldados Martins e “Caçador” acabara levando os dois jogadores, pra
passarem a noite na cela da Cadeia Pública no início da rua do sebo.
RUA DA PRAIA
Portando balas de barro de louça
e atiradeiras, os meninos perseguiam os saguis, bizungas e pardais do pomar de Seu Abdon Soares e Dona Pretinha.
Pomar de belo coqueiral que acenavam pros quintais das casas e os urubus que
vinham pousar-lhes nas palhas. Os moleques se arriscavam a roubar goiabas e
maturis de caju no quintal de Lelé pai de
Erasmo, Manoel e Tião, tinham um cachorro pastor alemão. Gritaria na rua, um palhaço encimado numas
pernas de pau anunciava: – Hoje tem
espetáculo! A molecada que o acompanhava, respondia: -Tem sim senhor! As oito
horas da noite... Foi-se o palhaço, rua em balbúrdia. Os meninos Ciço de Preta,
Milton e “Quélo” engendrados na tarefa de desvencilhar umas pipas dos altos
galhos de um pé de fícus, defronte a casa de Seu Pinpin, o funcionário da
companhia da Luz alertou pra o perigo, mas menino só tem medo de lobisomem e
alma penada, de descarga elétrica não. Um dia um cano d’água quebrou no meio da
rua, bem na frente da casa de Seu Filemon. Água de festa, brincar de construir,
barragens em miniaturas com barro e areia na sarjeta, festa que termina em
resfriados, e despesas com xarope na farmácia de Seu Aleixo. Depois de feito o reparo hidráulico mais
serviço pros garis da prefeitura.
A RUA, TRISTEZA E ALEGRIA
O ano inteiro a rua é uma festa.
No carnaval, os caretas mascarados, “os bobos” com seus gritos estridentes e os
estalos de relho, em perseguição aos meninos medrosos, o mela-mela faz a rua
brincar carnaval, faz a rua sorrir, os blocos e as troças emprestam idéia de
anarquia, bagunça, uma desordem organizada.
Na quaresma a rua fica triste, macambúzia. Nos dias “grandes” da semana
santa, o ápice da melancolia representada nos mendigos que angariam um “jejum”
de porta em porta. Tirante a algazarra da malhada a “Judas”, a rua só
volta a sorrir com a chegada dos festejos juninos, do bom São João, de Santo
Antonio e São Pedro, soltar fogos, enfeites folguedos. A rua toda é uma só
família. Bandeirinhas, fogueiras, fogos, iguarias de milho, quadrilha. Na devoção ao dia de Corpus Christi vem a
procissão, a rua se preparou pra esse momento. Plantas e oratórios expostos,
nas portas das casas, velas acesas e imagens de santos nas janelas abertas de
batentes forrados com colchas coloridas. A procissão se vai, a rua fica e dá
adeus a procissão, agora só ano que vem. E voltará a se alegrar no dia da
pátria. Os meninos do grupo escolar, fardados, orgulhosos desfilam pra seus
familiares que acenam das portas. Vem
chegando o fim do ano,a rua vai ficando colorida pouco a pouco. Uma comissão de
garis, passa pedindo “as festas”. Pedro
Forte pintou a frente da casa, Mané Guarda, motorista do DNER também. Uma aqui,
outra ali, e a rua vai ficando bonita pra o fim de ano. Zé Rosa morreu, lá vem o féretro pela rua,
Quincas sapateiro e Juca Alfaiate, nas alças dianteiras. Consternação a rua
para e olha. Toinho das Máquinas à calçada com Seu Sebastião, filosofa: -É o
destino de nós todos...
A RUA E O RIO
E vêm as trovoadas. A rua
alagada, o mundo tingido de chumbo, o céu ameaçava desabar sobre a cidade. Nos
interiores das casas pouca luz, sobra umidade. As casas frágeis pra os rigores
de muita água sucumbem a infiltrações. Sudorese nas paredes e cimentados. Tão
bom tomar café dentro de casa, agasalhado, olhando a chuva da tarde pela
janela. Desce a enxurrada pela rua em direção ao panema. O rio toma água nas
cabeceiras e vem fazendo a festa, arrastando tudo onde antes era rio, mas o
povo esqueceu. A cheia enche a rua do cheiro de rio. Cheiro de barro, cheiro de
piaba, cheiro de lama. E o rio arrasta mato, leva um cavalo morto, trás muitas
cobras, atordoadas, que buscam nova moradia.
O FIM
Noutro dia, a rua amanheceu
bonita de céu azul e alvas nuvens.
Vicença foi comprar pão pro café da manhã na bodega de Seu Carlitos. O
marido Zé fogueteiro e os três filhos, ficaram fabricando fogos, pra vender
pelos festejos juninos. De repente um estrondo balançou a rua. Alarido,
correria, Vicença na bodega também queria saber o que houve. Voltou pela mesma
calçada. A rua, as casas, tudo igual, tudo no mesmo lugar, menos sua casa,
virada numa imensa flor de horror despetalada. Flor de escombros.
Fabio Campos
Fabio Campos
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