Estrangeiros em Tons de Branco

Havia um anjo, que se punha sentado no pináculo da igreja. Sereno, de pernas cruzadas. Sim, eu o via, estava lá. Aonde os frisos e arcos arquitetônicos arrematavam, entre a cruz e a torre da campânula. De onde estávamos não dava pra ver suas asas. Não precisava, era um anjo, eu sabia. Além de mim, ninguém mais o via. Também ele olhava a rua, o movimento daquela tarde. Para nós tudo era novo, nunca tínhamos visto. Estrangeiros éramos ali. 

As casas. Sem elas não haveria cidade, não haveria a rua que olhávamos. Estavam lá, ainda que desfalcadas, estavam lá. Carregadas de tragicidade víamos as que sobreviveram. Como se nada, nunca tivesse acontecido, lá estavam. Como se nunca tivessem passado pelo que passaram. Convidados que fomos a seguir adiante, fomos olhar o rio. Os visitantes precisavam conhecer o vilão. O fantástico ser monstruoso, a que, num tempo não tão remoto, destruíra a vida de tantos. Era preciso que soubéssemos dos que haviam padecido, e se foram. Saber dos que padeceram e ficaram. O rio, agora um fantasma, de tudo e de todos. Bastariam as nuvens empardecem, e os trovões roncarem pras bandas da sua cabeceira. Assustava a plena luz do dia. O rio que tragara a felicidade e a cidade, e os destinos que levou pro mar. Íamos ver aquele que detinha o poder de decidir quem devia e não, ser feliz. Não sabiam como, nem porque, mas isso era parte de seu poder. Continuávamos andando na rua, de repente uma ponte e o vimos. E lá estava. E se nos mostrou um rio pacato, manso. Tão relegado a rio, tão submisso feito nosso “Panema”. Diferente daquele que pintaram, de uma época não tão pra trás assim. Enquanto captavam os ouvidos atentos os relatos, daquele dia fatídico, os olhares iam lá longe. Os olhos como se quisessem virar rio. Como se os cílios dos observantes, de um momento para outro, se transformassem em tentáculos, ou imensos cordões, que talvez tentassem fazer daquela cidade um descomunal presente, embrulhado com o papel do tempo enlaçado com as lágrimas dos que sobreviveram. As serras eram paisagens novas, e diziam novos relevos, e exigiam que nossos sentidos assimilassem aquela realidade. Paisagem renovada, vistosa, resquícios do que um dia fora: mata atlântica. 

E tudo era úmido. Nada, ou quase nada, remetia ao nosso sertão como de fato o conhecemos. Acontece que pra onde quer que vamos, vai nosso legado conosco. A encosta escarpada ameaçava vir interditar o passeio. Quem sabe naquele dia, uma barreira interrompeu o trânsito? Árvores frondosas, exibiam ventres volumosos de raízes lenhosas, que não conseguiram entranhar a terra escura. A força da enxurrada havia arrastado a porção de terra que as circundavam. E punham a mostra o esqueleto retorcido de carnes expostas, de celulose e lignina lustrosa, feito músculo de negro açoitado, fugidio pro quilombo, logo ali. Castanhais, pinheiros, caramboleiras, tamarindos, felizes pela tarde de sol tímido, anuviado, de tarde chuvosa, revestiam de verde os olhares. Ruas dançantes, num bailado como a um piano que fora estraçalhado, tornado desiguais os paralelos, que subiam e desciam numa sinuosidade desconexa, como nunca quisesse se encontrar. Uma casa, um terreno baldio. Casa, espaço vazio, casa, escombros, casa, ruína de uma casa, encostada noutra casa, que de tanta umidade ameaçava desabar. Tudo refletia umidade. O sol refletia as gotículas de chuvas, faziam reluzentes as folhas verdes. As paredes das edificações choravam sangue de barro vermelho. Descendo desde a cumieira, ora traziam uma linha de molhação, dizendo até onde as águas haviam subido. Infelizmente não conseguiram livrar-se do excesso de água, depois que submergiram nas águas do rio, e nem o tempo conseguira dissimular.

Decidimos que era preciso conhecer o lugar onde éramos estrangeiros. Enquanto íamos andando, a professora ia contando, recordando os fatos que lhe ficaram marcados na alma, naquele dia dantesco. Lembrava dos fatos à medida que ia passando nos lugares onde eles ocorreram. Se lá longe. Ela apontava mostrando. O rio tomou a cidade em questão de minutos. Os que conseguiram se salvar largaram tudo pra trás, não dava tempo salvar nada. Os que se salvaram, lá de cima, da encosta viam uma haste negra e fina tremulando no meio do mar de água barrenta apontando pro céu. Depois que as águas baixaram descobriu-se o que era: os trilhos do trem, retorcidos. A Biblioteca Municipal, A Estação Rodoviária, A quadra poliesportiva, O juizado das Pequenas Causas, agora só havia o terreno vazio, foi o que restou. Os ônibus, os carros de passeio, naquele dia, desciam na correnteza, feito barquinho de papel que os meninos de nossa infância em dia de chuva, punha na sarjeta pra água levar.

"-O rio tomou muita água! -Ligeiro! -Depressa minha gente! -Salvem a si mesmo! Não dá tempo levar nada!” O rio foi até a prefeitura, não respeitou o segurança prostrado a entrada. Molhou e sujou de barro a farda Branquinha do contínuo. Subiu pelas pernas do chefe de gabinete, entrou na sala onde o prefeito despachava. Invadiu, sem pedir licença, que atrevimento! O prefeito e a primeira dama tiveram que escalar os móveis, subiram ao teto da prefeitura. Também até a escola foi o rio, feito menino danado tomou lápis e os cadernos dos pequeninos, se apossou dos livros da professora, apagou a anotação no quadro de giz. A professora não podia por o rio de castigo. Fez o que pode, pela janela escalaram o teto da escola, ali se sentiam a salvo. Rezando para que as águas não subissem mais. O dono do armazém de secos e molhados, agora só tinha molhados. Com seus empregados tentaram por a salvo a mercadoria. Em vão, o rio estava faminto, sedento, e vorazmente foi engolindo, sacas de feijão, arroz, fubá, charque e grades de refrigerante. De repente um monstro de ferro no meio das águas, sendo arrastado pela correnteza, somente parte dele dava pra ver: Era a fornalha da usina de açúcar! Descia rápido, tragicamente a gigantesca parafernália de aço acenava, levada sabe Deus pra onde.

Dona Maria morava sozinha, na beira do rio. Bem ali, ao lado da ponte, construíra sua morada, de dois pavimentos. Dona Maria percebeu a água entrando de casa adentro. Sabia o que estava acontecendo, rapidamente pegou dinheiro e documentos. Já na porta ia saindo, lembrou-se da sua cachorrinha Lili. Não podia deixar Lili. Voltou, tinha que dar tempo! Onde estaria Lili? No primeiro andar, subiu. Achou Lili, estava na cama! Sua danada! Vamos! Pronto agora era só descer e salvar-se, a si e a Lili. Cadê a escadaria? Não tinha mais degraus, só água. Tempestuoso, deseducado o rio subiu, e invadiu o quarto. Dona Maria não teve outra alternativa a não ser alcançar o telhado do sobrado. Mas o rio foi em seu encalço. E o rio abraçou dona Maria e Lili, e arrastou-lhe pro turbilhão de água. E nunca mais dona Maria, nem a cachorrinha Lili voltariam ao sobrado. 

Pra professora a imagem que ficaria marcada pra sempre, era a de uma menininha, resgatada por um pescador, toda molhada, envolta num cobertor, tremia de frio. Perplexa, olhava fixo pra monstruosa serpente d'água barrenta ameaçadora, ia devorando tudo que interpunha seu caminho. Os olhinhos molhados não tirava-os das águas turbulentas, talvez alimentasse a esperança de ver surgirem dali, seus irmãos, sua mãe. A professora confidenciou que por muitos dias, após o sinistro acontecido, foram muitas noites insones, e saía de casa, perambulava pelas ruas desertas, escuras e tristes. As vagações nas madrugadas culminavam sempre na barranca dele, o rio, agora domado. Ali passava horas, fitando as águas calmas e escuras. Chorava, e chorava e perguntava: “-Por que?” 

Mais uma vez, volvemos nosso olhar pra fachada da igreja, que o rio lavou naquele dia. Apenas a cruz ficara emersa. A linha d’água divisava dois tons de branco: branco seco, branco molhado O anjo continuava lá, encimado no pináculo. Um olhar mais acurado, mais profundo, mais transcendental até lá lançado, e conseguiríamos ver, em cima dos telhados, meninas e meninos alados, brincando de “pega”, brincando de soltar pipas azuis celestiais, e se deliciavam com algodão doce, feito de nuvens em dois tons de branco.

Fabio Campos

A Menina Júlia

Júlia, estava namorando na sala. Levantou-se do sofá, puxando Marcos pelo braço. Eu estava na salinha distraído no computador. Ela veio até a mim, pediu que fosse um instante até a cozinha onde se encontrava sua mãe atarefada nas coisas domésticas. Tive um pressentimento que algo sério ocorria. Meus cinquentenários neurônios, agora um pouco mais lento do que em tempos de outrora, tentavam concatenar as idéias. Mesmo assim, nada veio à imaginação, nada. Nem um esboço do que se tratava. Talvez, inconscientemente tentasse me proteger, negando qualquer pensamento prévio. Talvez não fosse nada grave, talvez ela, quisesse dizer-nos algo sobre o Marcos. Quiçá, tivesse ele sido sorteado num grande prêmio, ou tivesse sido promovido no emprego. Não me lembrava de só uma vez, nos últimos quinze anos da existência de nossa filha caçula, antes daquele dia, que ela tenha um dia chamado-nos assim, em tom solene. Ajuntados estávamos pois, de pé no entorno da mesa. Júlia segurava Marcos pela cintura. Sentei-me assumindo status de líder pronto a ouvir. A mãe apreensiva. Marcos angariou pra si os olhares, fora encarregado de falar, e disse:

-Seu Antonio, Dona Maria, Júlia está grávida. Queremos nos casar, o mais breve possível!

Da mãe vieram palavras de aflição. Um anjo desses que são atirados a traquinagens arrebatou minha alma. E a levou alto, muito alto. Pousamos no pináculo do tempo.  Retornei à época que Júlia estava pra nascer. Eu tinha muito medo, daquele momento. Pensava: E se Maria entrasse em trabalho de parto ali naquele fim de mundo que morávamos?

Voltemos pois, um pouco mais no tempo: Eu havia feito exatamente como minha menina Júlia fazia agora, há dezoito anos atrás. Disse a Seu Floriano, meu então futuro sogro, que Maria estava grávida, e que eu queria casar com ela. Tudo foi realizado nos conformes. Faltando vinte dias pra completar os nove meses, Maria foi pra casa de sua mãe. E completados os dias, Eduardo veio ao mundo, numa madrugada do mês de agosto, no meio da caatinga nordestina, no sítio Calango Verde. Foi aparado por Dona Mãezinha parteira, a mesma que aparou Maria, a mesma que aparara sua Mãe Marinete esposa de Seu Floriano. Acho que também Seu Floriano por suas mãos, viera ao mundo. 

E lá estávamos nós três, eu, Maria e Eduardo. Era uma chuvosa noite do mês de julho. Morávamos num casebre na beira da praia da Vila de Porto de Pedras.  Maria teimando não quis ouvir-me quando lhe pedi que viajasse, pro sertão pra casa de sua mãe. Em vão meu pedido, estava decida a dar à luz a nossa filha Júlia em casa mesmo. Dizia que já tinha um filho nascido da mata branca, queria agora uma filha nascida nas águas de sal. Muito poético dizer isso agora. Pra mim naquela hora só havia aflição. Eu temia pela sua vida e a de Júlia. Temia pela minha falta de preparo na hora do parto. Morávamos numa choupana na beira da praia. Morar ali, fora uma decisão minha. A casa pertencia á paróquia de Nossa Senhora da Glória que havia cedido à escola onde eu ensinava. Morar ali, era a concretização de um sonho nunca antes sonhado, porém simplesmente vivido. Assim, simplesmente vivido. Ficava um pouco afastado da Vila de Porto de Pedras. Gozávamos de uma paz indescritível, acordar todas as manhãs olhando o mar. Olhando o sol saindo de dentro do oceano. Aquela imensa bola de fogo que acordava o mundo. Os pescadores a muito já haviam saído pra lida, breve estariam de volta trazendo os frutos tirados do mar. Engraçado, pescador colhe o que Deus semeou. Meu Deus, como era bom sentir o cheiro do mar, a brisa da praia. O canto das ondas. A maré ora subindo, pra noutra banda do dia secar. Andar na praia de manhã, enfiar os pés na areia fina e fria. Sentir a onda brincando de correr pra molhar nossos pés. Eduardo tinha apenas três anos.

E naquela noite tempestuosa e fria do mês de julho, muito embora  já tivesse nome, já tivesse nove meses de vida, Júlia ainda não estava entre nós. Iniciou-se na tarefa de querer vir ao mundo naquele dia. Chovia muito. Pra ir a Vila eu teria que enfrentar o temporal, atravessar a pontezinha de tronco de coqueiros, do riacho do Patacho. Tudo tão simples, tão rústico. Parecia que não havia nada a fazer, a não ser entregar aquele momento a Deus. Estava consumado. O que havia de ser feito com certeza não dependia de mim. Só agora sei, não era eu quem estava no controle.  Resolvi fazer como via nos filmes. Coloquei água no fogo pra esquentar, não sabia bem qual seria a utilidade disso, mas fiz. Acho que serviu pra banhar Maria e Júlia depois que nasceu.
Júlia nasceu. Eu estava ali ao pé da cama, segurando a mão de Maria. A primeira figura humana que os olhinhos molhados de Júlia viram fui eu. Lembro de tê-la colocado de encontro ao colo de Maria que lhe ofereceu o seio. Eduardo dormia. Sai da casa numa carreira doida, enfrentado o temporal. Cheguei à Vila, direto pra casa de Dona Dora parteira. Quase não acreditou quando disse que Júlia já havia nascido. Precisava de seus serviços para concluir o parto. Ela não parava de falar, parecia minha mãe a dar-me reprimendas quando praticava um ato traquino. Dizia coisas a mim como se falasse com Maria. Eu já nem mais a ouvia. O que me confortava era que ela fazia o que eu mais queria: acompanhava-me até a casinha da praia.
Muito tempo se passou e viemos morar no sertão. Na rua Delmiro Gouveia em Santana do Ipanema. Júlia agora tinha onze anos quando pediu pela quinquagésima nonagésima vez que contássemos a história do seu natal. Sempre pedia, antes de ir dormir. E numa noite dessas, ela na cama, em sua camisola de dormir, seus longos cabelos derramado no travesseiro, olhava com seus olhos fixo pra meu rosto ouvindo. De repente falou:

-Papai, eu não estou conseguindo mais ver o senhor! O que tem meus olhos?

Uma aflição cortou-me o coração. Disse para mim mesmo ter calma. Perguntei-lhe o que sentia. Disse que os olhos doíam muito e que tudo estava ficando escuro. Nada enxergava. Maria clamou a Deus. Prostrada, lançou-se num pranto misturado com lamento e oração. Tudo junto. E bradou olhando pro alto tendo as mãos elevadas à cima da cabeça:

-Valei-me meu padrinho Frei Damião! Antônio! Vamos levar nossa filha a um médico, pelo amor de Deus! Nossa filha está ficando cega...

Não sei como, ainda hoje me pergunto por que, lembrei-me de um frasco de água que trouxemos da Vila de Canafístula, da fonte de Frei Damião. E pedi a Maria que o buscasse. Ela o localizou na dispensa e prontamente o trouxe. Molhei a ponta do lençol com que Júlia se cobria, com a água do frasco. E comecei a passar em seus olhos. Num gesto instintivo ela não parava de esfregar os olhos e eu pedia que ela parasse daquilo, que deixasse a água penetrar suas vistas. E ela falou:

-Pai meus olhos não mais estão doendo, e tudo já não é mais escuridão. Eu já consigo ver! Eu consigo ver o senhor papai.


Fabio Campos   

O Visionário

Rua Martins Vieira, em Santana do Ipanema. Endereço de morada de Jota Érre, um jovem professor, e sua mãe, também professora. Ao aposentar-se esta, fora embora pra Maceió. Algumas modificações na casa, faria depois de sua ida. Mesclou arte sacra, com peças rústicas da cultura sertaneja de muito gosto. Vivos e coloridos bibelôs de Pierrot, deram um ar de alegria ao ambiente. Aproveitando a luz natural, arejou com muito verde, ficou bem aconchegante. Num sábado, quando o sol já ia alto, acordou. Notou que amanhecera sobre as almofadas coloridas do tapete da sala. Foi se apercebendo do mundo, inicialmente de olhos fechados. Abriu-os então. Um litro de whisky e o copo, sobre o centro, o que lhes veio primeiro. O som ligado, muito embora nada tocasse. Lembrou-se que não estava só. Um belo varão, desnudo da cintura pra cima deitado ao sofá, também já acordado. Ocupava-se com algo, que de onde estava não dava pra ver o que era. 



-Pedro, tu me amas?

-Amo.

-Pedro... você me ama?

-Amo Jota Érre!

-Ama mesmo?

-Para com isso!... Tá parecendo àquela passagem bíblica, em que Jesus...

-Pare você! Não tem nada que comparar com coisas da bíblia.

-Você tem mania de duvidar de tudo que eu digo...

-A música continua nos meus ouvidos. Ainda ouço “Faroeste Caboclo”.

-Sou mais Mastruz com Leite, a História de Um Vaqueiro... Tá vendo, como a gente não se entende?...

-Meu amor! Quem disse que se entender, tem haver com gosto. Gosto é gosto. Pessoas podem gostar de coisas diferentes e combinar-se perfeitamente... 

Numa mesa noutra sala, um oratório repousava sobre folhas de jornais, rodeado de instrumentos de pintura, latas de tintas, esmaltes e vernizes. Era uma peça em madeira, antiguíssima, esmorecida nas cores pelo tempo. Tinha traços em rococó na portinhola, e barroco nos querubins e no buquê ao pé da cruz ao alto. O professor restaurava peças antigas, imagens sacras e objetos artísticos. Tinha que terminar a arte naquele final de semana. Era serviço de um colecionador exigente, o padre da paróquia de Senhora Santana. Também iria a cidade de Poço das Trincheiras, ver a que ponto estava os trabalhos de sua equipe na restauração do altar-mor da igreja de São Sebastião. 

Encantado era Jota Érre pelo trabalho que realizava. Além do que, quando se entregava ao serviço, ao simples contato com as peças carregadas de história, sentia que uma aura o envolvia. E fatos acontecidos em derredor daqueles objetos que tocava, levava-o a uma outra dimensão. Numa espécie de transe visionária, abria-se diante de si um portal de energia cósmica, que lhes dava acesso a uma visão panorâmica de tempo pretérito e mesmo de algo no porvir. Vislumbrava eventos, sucedidos naqueles locais à muito tempo passado ou mesmo dum evento vindouro. Ao adentrar ao templo Sagrado da paróquia de Poço das Trincheiras, fez a formal genuflexão à frente do púlpito. Ao erguer a cabeça eis a visão que teve: 

Soldados trajando indumentárias do século XVIII. Lutavam em uma batalha que se procedia ali. Ele via através das paredes, do lado de fora da igreja. De um lado soldados da Coroa portuguesa, fiéis ao imperador D. Pedro II, do outro soldados holandeses. As tropas portuguesas, era em maior número. Os batavos haviam construído uma trincheira onde se abrigavam. Estavam em desvantagem noutro ponto, não tinham o apoio da população da vila de São Sebastião e perdiam o embate. No meio da tropa holandesa havia um fidalgo cujo brasão de família era Von Dherley, na boca dos nativos sertanejos tal palavra pronunciavam Wanderley. Esse homem comandou o que restou da tropa motinada, resistiram bravamente ao contra-ataque português, refugiando-se com 30 homens na montanha que hoje é conhecida por Serra do Poço. Ali fixaram residência, reconhecendo a supremacia lusitana e a Coroa portuguesa não mais o importunou. Voltando da transe, Jota Érre estava exausto, naquele dia não fez mais nada.

À noite, de volta Santana do Ipanema, foi ao Bar Alto da Fé, precisava meditar. Era dessas noites quentes, prazenteiras e a magnitude do manto negro celestial rendado de estrela, pedia-lhe que cantasse. E pôs-se a cantar, pra seu amado Pedro, que o acompanhava ao som plangente de violão.

“De noite em rondo a cidade a te procurar
E sem encontrar..."

Contou a Pedro o que sucedera em Poço das Trincheiras. Disse que descobriu o dom das visagens ainda criança. Foi num natal, ao consultar o relógio de algibeira, seu avô despertou sua atenção, de menino de oito anos de idade, e o permitiu que manuseasse a máquina de medir tempo. Ao tocá-lo fez a primeira premonição:

-Mamãe vovô vai morrer no seu aniversário, ano que vem!
Ficaram todos, inicialmente perplexo com a afirmação, depois consideraram uma bobagem. Coisa que criança diz, sem que se deva dar créditos. Não quiseram aceitar, mas aconteceu. Exatamente como previu. Pedro ouvia tudo muito sério. Opinião nenhuma emitiu. Mesmo assim, nada falar já é opinião. Causava certa inquietude, que ia virando irritação em Jota Érre. Pensava que talvez não acreditasse em uma só palavra do que dissera. Não tinha como provar. Talvez tivesse. Aguardaria uma oportunidade.



Pedro trabalhava de secretário pra paróquia de Senhora Santana, às vezes fazia vez de chofer do pároco. No domingo viajaria com o padre pelo interior do município. Naquela noite Jota Érre levou o oratório para área de serviço, e dedicou-se ao trabalho de restauração, só parando quando concluiu. Já era mais de duas da manhã quando findou a obra. Depois de um banho revigorante, que lhes devolveu as energias, tomou uma taça de vinho. Andou pela casa em silêncio, fumando um cigarro. Pedro encontrava-se deitado no sofá. Ao ver o rapaz dormindo, aquele corpo escultural, seminu, estendido, sobre a luz tenra do abajur Jota Érre pôs-se a acariciá-lo, isso o fez desperto. E ali mesmo se amaram. Ao amanhecer Pedro tentou sair de fininho pra não ser percebido, mas Jota Érre já estava acordado, de onde se encontrava deitado disse-lhe:

-Enquanto trabalhava no oratório do padre esta madrugada eu tive uma visão. Uma tempestade muito forte vai cair esta tarde quando vocês estiverem na comunidade de Olho D'água do Amaro. Não tentem voltar pela ponte de tábuas do Serrote dos Franças, ela vai ser arrastada pela enxurrada.

-Mas está uma manhã tão linda! Veja, nem parece que vai chover!

Pedro e o padre foram pra seu destino. E nem bem o pároco encerrou a missa campal, rezada na comunidade Batatal tendo presente toda circunvizinhança. E um vento forte sacudiu um monte de cisco e poeira no altar improvisado de linhos brancos. De um céu cheio de nuvens cinzas e pesadas, roncaram os trovões. Antecedidos de raios que estalavam prateando as veredas. Pardais, garças e andorinhas, as aves todas do céu já havia se recolhido a abrigos. Choveu, choveu torrencialmente. E era verão. 

Fabio Campos

Ruínas na Avenida Coronel Lucena


Era uma dessas noites do mês de abril, em que costuma ocorrer pancadas de chuvas prenunciando o inverno. Foi numa dessas noites em que tudo terminou. Pois é justamente pelo fim que iniciaremos nossa história. O rio Ipanema tomou bastante água, também o riacho Camoxinga. Santana do Ipanema no dia seguinte a esse acontecimento, amanheceu cheirando a peixe, argila e lama. E com três casas a menos. Uma delas veio à baixo, em plena Avenida Coronel Lucena Maranhão, quase defronte a Prefeitura Municipal. As outras duas, uma era conhecida como, o velho casarão do padre Bulhões. E ficava justamente na cabeça da ponte que leva, até hoje, o nome do histórico pároco. A outra era erguida na barranca do rio que nomeia a cidade, ficava próxima ao local conhecido dos citadinos como prainha.


Nenhuma das três moradias estava mais ocupada no momento do sinistro. Nesta última morava um preto velho que atendia pelo apelido de Rabo de Galo, alcunha adquirida pelo fato de apreciar a misturada de cachaça famosa, mas seu verdadeiro nome era Alípio. O velho Alípio ali passara a residir num ano qualquer do primeiro quartel do século passado. Por aqui aportou advindo da região de Viçosa. Tive a oportunidade de conhecê-lo, muito doente, e cego, ocupando um dos leitos do Abrigo São Vicente de Paula. Quase moribundo, contou-me pedaços da história que ora aqui narramos. Na verdade o velho Alípio é apenas um dos antagonistas da trama.

Contava-me ele, que quando rapaz, era tropeiro. Vivia de trazer mercadorias, da zona da mata alagoana, pro sertão. Dizia ele que eram muitos os causos que tinha pra contar desse tempo, mas o que muito lhe causaria medo, foi ter que enfrentar certa vez, um bando de saqueadores próximo a Palmeira dos Índios. Disse-nos ele, foi luta sangrenta. Uma frase ele repetia e marcou seu relato:

-Eles vieram em nosso sucaro, meu rapaz!

Eu não sabia o que significava “sucaro”. Ele procurou se explicar e deu-me a entender que era o mesmo que; vir no encalço; perseguir. Todos eles seriam mortos pela caravana de tropeiros. Mas não é esse o tema da nossa história. Como tampouco tem haver com a queda das três casas no dia da tempestade. Então retomemos ao fio da meada.

Naquela casa da avenida Coronel Lucena, no passado aconteceu um crime, que marcaria pra sempre a história política de Santana do Ipanema. Ali morava um cidadão vindo da região de Olivença mas que se considerava santanense de coração e por adoção. Chamava-se Zé Amorim. Pela sua cordialidade e educação esmerada tornou-se um líder político. E certa noite, quando preparava-se para repousar, após a ceia noturna, alguém bateu-lhe à porta com um “-Ô de casa?”. Atendeu o chamamento, abrindo a porta pra o breu com um “-Ô de fora!” E das entranhas do ventre negro da noite, surgiu a sua frente o cano de um revólver que disparou contra si, três tiros à queima-roupa.

No dia seguinte Santana estava em polvorosa. O delegado faria diversas diligências, todas infrutíferas no sentido de apreender o criminoso. O jornal de maior circulação no estado à época a Gazeta de Alagoas, estampou o fato como manchete. O jornalista e advogado Tobias Granja publicaria matéria de página inteira sobre o caso, e apontava o prefeito de Santana do Ipanema naquela gestão, como autor intelectual, ou seja, como mandante do ato hediondo. No caso o prefeito Adeildo Nepomuceno. O prefeito de Santana seria indiciado e prestaria muitos depoimentos. Nada foi provado que Adeildo Nepomuceno tivesse sido o mandante daquele homicídio. O prefeito voltou a administrar e teve seu nome resguardado de tal crime.

Mas voltemos àquele nosso questionamento: E o que essa história toda, tem a haver com a queda das três casas? Pra tentarmos elucidar esse enigma precisamos voltar ao encontro que tivemos com o velho Alípio lá no Abrigo São Vicente. O preto velho contando as histórias de sua vida, misturava coisa do tempo de rapaz, com fatos de quando era jagunço de velhos coronéis. E acabaria confessando praticamente sem se aperceber, que fora ele o autor material daquele crime que tirou a vida de Zé Amorim. Diría-nos também que naquela noite antes de ir praticar o ato maligno, entrou na matriz de Senhora Santa Ana, pra pedir perdão pelo ato perverso que iria cometer. E se confessaria com o padre Bulhões.

Portanto caro leitor, chegamos ao fim do nosso relato. Ratificando o fato da ruína das três casas, ligadas por um elo maldito. A casa do velho Alípio, a casa do Padre, e a casa que um dia morou Zé Amorim, vieram à baixo num noite tenebrosa em que o rio Ipanema resolveu uni-las para sempre e sepultar com um ato fatídico, um outro ocorrido no passado mas que atravessa os portais do inimaginável.


Fabio Campos