A Menina Júlia

Júlia, estava namorando na sala. Levantou-se do sofá, puxando Marcos pelo braço. Eu estava na salinha distraído no computador. Ela veio até a mim, pediu que fosse um instante até a cozinha onde se encontrava sua mãe atarefada nas coisas domésticas. Tive um pressentimento que algo sério ocorria. Meus cinquentenários neurônios, agora um pouco mais lento do que em tempos de outrora, tentavam concatenar as idéias. Mesmo assim, nada veio à imaginação, nada. Nem um esboço do que se tratava. Talvez, inconscientemente tentasse me proteger, negando qualquer pensamento prévio. Talvez não fosse nada grave, talvez ela, quisesse dizer-nos algo sobre o Marcos. Quiçá, tivesse ele sido sorteado num grande prêmio, ou tivesse sido promovido no emprego. Não me lembrava de só uma vez, nos últimos quinze anos da existência de nossa filha caçula, antes daquele dia, que ela tenha um dia chamado-nos assim, em tom solene. Ajuntados estávamos pois, de pé no entorno da mesa. Júlia segurava Marcos pela cintura. Sentei-me assumindo status de líder pronto a ouvir. A mãe apreensiva. Marcos angariou pra si os olhares, fora encarregado de falar, e disse:

-Seu Antonio, Dona Maria, Júlia está grávida. Queremos nos casar, o mais breve possível!

Da mãe vieram palavras de aflição. Um anjo desses que são atirados a traquinagens arrebatou minha alma. E a levou alto, muito alto. Pousamos no pináculo do tempo.  Retornei à época que Júlia estava pra nascer. Eu tinha muito medo, daquele momento. Pensava: E se Maria entrasse em trabalho de parto ali naquele fim de mundo que morávamos?

Voltemos pois, um pouco mais no tempo: Eu havia feito exatamente como minha menina Júlia fazia agora, há dezoito anos atrás. Disse a Seu Floriano, meu então futuro sogro, que Maria estava grávida, e que eu queria casar com ela. Tudo foi realizado nos conformes. Faltando vinte dias pra completar os nove meses, Maria foi pra casa de sua mãe. E completados os dias, Eduardo veio ao mundo, numa madrugada do mês de agosto, no meio da caatinga nordestina, no sítio Calango Verde. Foi aparado por Dona Mãezinha parteira, a mesma que aparou Maria, a mesma que aparara sua Mãe Marinete esposa de Seu Floriano. Acho que também Seu Floriano por suas mãos, viera ao mundo. 

E lá estávamos nós três, eu, Maria e Eduardo. Era uma chuvosa noite do mês de julho. Morávamos num casebre na beira da praia da Vila de Porto de Pedras.  Maria teimando não quis ouvir-me quando lhe pedi que viajasse, pro sertão pra casa de sua mãe. Em vão meu pedido, estava decida a dar à luz a nossa filha Júlia em casa mesmo. Dizia que já tinha um filho nascido da mata branca, queria agora uma filha nascida nas águas de sal. Muito poético dizer isso agora. Pra mim naquela hora só havia aflição. Eu temia pela sua vida e a de Júlia. Temia pela minha falta de preparo na hora do parto. Morávamos numa choupana na beira da praia. Morar ali, fora uma decisão minha. A casa pertencia á paróquia de Nossa Senhora da Glória que havia cedido à escola onde eu ensinava. Morar ali, era a concretização de um sonho nunca antes sonhado, porém simplesmente vivido. Assim, simplesmente vivido. Ficava um pouco afastado da Vila de Porto de Pedras. Gozávamos de uma paz indescritível, acordar todas as manhãs olhando o mar. Olhando o sol saindo de dentro do oceano. Aquela imensa bola de fogo que acordava o mundo. Os pescadores a muito já haviam saído pra lida, breve estariam de volta trazendo os frutos tirados do mar. Engraçado, pescador colhe o que Deus semeou. Meu Deus, como era bom sentir o cheiro do mar, a brisa da praia. O canto das ondas. A maré ora subindo, pra noutra banda do dia secar. Andar na praia de manhã, enfiar os pés na areia fina e fria. Sentir a onda brincando de correr pra molhar nossos pés. Eduardo tinha apenas três anos.

E naquela noite tempestuosa e fria do mês de julho, muito embora  já tivesse nome, já tivesse nove meses de vida, Júlia ainda não estava entre nós. Iniciou-se na tarefa de querer vir ao mundo naquele dia. Chovia muito. Pra ir a Vila eu teria que enfrentar o temporal, atravessar a pontezinha de tronco de coqueiros, do riacho do Patacho. Tudo tão simples, tão rústico. Parecia que não havia nada a fazer, a não ser entregar aquele momento a Deus. Estava consumado. O que havia de ser feito com certeza não dependia de mim. Só agora sei, não era eu quem estava no controle.  Resolvi fazer como via nos filmes. Coloquei água no fogo pra esquentar, não sabia bem qual seria a utilidade disso, mas fiz. Acho que serviu pra banhar Maria e Júlia depois que nasceu.
Júlia nasceu. Eu estava ali ao pé da cama, segurando a mão de Maria. A primeira figura humana que os olhinhos molhados de Júlia viram fui eu. Lembro de tê-la colocado de encontro ao colo de Maria que lhe ofereceu o seio. Eduardo dormia. Sai da casa numa carreira doida, enfrentado o temporal. Cheguei à Vila, direto pra casa de Dona Dora parteira. Quase não acreditou quando disse que Júlia já havia nascido. Precisava de seus serviços para concluir o parto. Ela não parava de falar, parecia minha mãe a dar-me reprimendas quando praticava um ato traquino. Dizia coisas a mim como se falasse com Maria. Eu já nem mais a ouvia. O que me confortava era que ela fazia o que eu mais queria: acompanhava-me até a casinha da praia.
Muito tempo se passou e viemos morar no sertão. Na rua Delmiro Gouveia em Santana do Ipanema. Júlia agora tinha onze anos quando pediu pela quinquagésima nonagésima vez que contássemos a história do seu natal. Sempre pedia, antes de ir dormir. E numa noite dessas, ela na cama, em sua camisola de dormir, seus longos cabelos derramado no travesseiro, olhava com seus olhos fixo pra meu rosto ouvindo. De repente falou:

-Papai, eu não estou conseguindo mais ver o senhor! O que tem meus olhos?

Uma aflição cortou-me o coração. Disse para mim mesmo ter calma. Perguntei-lhe o que sentia. Disse que os olhos doíam muito e que tudo estava ficando escuro. Nada enxergava. Maria clamou a Deus. Prostrada, lançou-se num pranto misturado com lamento e oração. Tudo junto. E bradou olhando pro alto tendo as mãos elevadas à cima da cabeça:

-Valei-me meu padrinho Frei Damião! Antônio! Vamos levar nossa filha a um médico, pelo amor de Deus! Nossa filha está ficando cega...

Não sei como, ainda hoje me pergunto por que, lembrei-me de um frasco de água que trouxemos da Vila de Canafístula, da fonte de Frei Damião. E pedi a Maria que o buscasse. Ela o localizou na dispensa e prontamente o trouxe. Molhei a ponta do lençol com que Júlia se cobria, com a água do frasco. E comecei a passar em seus olhos. Num gesto instintivo ela não parava de esfregar os olhos e eu pedia que ela parasse daquilo, que deixasse a água penetrar suas vistas. E ela falou:

-Pai meus olhos não mais estão doendo, e tudo já não é mais escuridão. Eu já consigo ver! Eu consigo ver o senhor papai.


Fabio Campos   

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