Luzia, A Estrela Dalva

Era mês de novembro, Lá pras bandas do poente, um solzão amarelo, preguiçoso, espalhava seus raios alaranjados, encima dumas nuvens brancas, esticadas, magrelas, feito filhas da rainha imperial. Bando de garças em asa delta migrava pro azul. Meu avô Antonio de Campos dizia que os meses mais quentes do ano, eram março e novembro. De fato. A quentura se alastrava na superfície das coisas dissipando cheiros característicos, esterco de boi na estrada, poeira vermelha na pele do negro sem camisa. Balaio de palma na cabeça, suor por todos os poros. As casas já vestidas pros festejos natalinos sorriam. Aguardavam a noite pra brilharem em piscas-piscas. Alegrava a tarde os folguedos, que angariavam prenda pras festas cristãs. Trio de tocadores de pífanos, zabumbeiro e fogueteiro, apupo da meninada. Dali a um mês, seria dia de Santa Luzia.

A Rua Santa Luzia nasceu na encosta do rio pelo lado direito. Separada pelo curso d’água, Quando dava uma cheia, ficava olhando pro lado de cá, feito catenga que perdeu o rabo. No início quatro casinhas acanhadas. Erguidas com vara de catingueira, tapadas com o barro da ribanceira, cobertas com palha de coqueiro. Manufaturas, nascidas das mãos rudes de seus próprios donos. Agricultores, fugidos da seca, migraram pro subúrbio da cidade. Hoje, um cortiço enorme. Casas de alvenaria, enfileiradas nas ladeiras que desciam pro rio, faziam inveja a suas irmãs mais pobres. Ruas descalças, sem meio fio, sem iluminação, esgotos a céu aberto, galinhas ciscando no lixo, bacurinhos chafurdando na lama negra que descia pro rio, roupas surradas, de cores cansadas, estendidas em varais improvisados com pedaços de fios. Os grupos da igreja: Carismáticos, Legião de Maria, Pastoral da criança, do idoso, dos enfermos, Clubes de serviços. De casa em casa, naquele bairro afastado, iam à cata duma caridade, a derradeira do ano a fazer.

Eunice, mais uma entre as outras, que morava ali. Enfeites natalinos em sua morada não havia, e o azul desbotado da fachada dizia que a muito, pintura não via. Uma pequena área na frente, um cimentado, nu de mobiliário. Uma janela. A porta da frente, uma folha corta em duas. A parte de cima aberta. Um “Ô de casa?” de cá; um “Ô de fora!” de lá dentro. E Dona Eunice, surgiu. Abaixo da linha do seu busto volumoso, cinco pares de olhos curiosos. Dona Eunice era assim, uma dessas caboclas que na juventude devia ter sido moça muita bonita. Mulher trabalhadeira. A tez morena dizia que aquela cor, os vincos na testa, e as mãos calosas, vieram da roça, do plantio do milho e do feijão, da ordenha da vaquinha Malhada. Do cantar cantiga pra espantar a solidão, na lavagem de roupa, lá no beiço do açude. Enquanto o vento assobiava assanhando seu cabelo moreno, premeditando seu futuro. Cedo ficou órfã, de pai e mãe. E veio pra cidade, trabalhar de babá, na casa do promotor de justiça Doutor Agamenon Valadares. Chegou a iniciar os estudos. Toda noite, ia pra Escola Batista Accyoli, apelidada de Bacurau, ave de hábitos noturnos do bravo sertão. Porém não passaria da terceira série do primário, de modo que mal aprendera a ler, e assinar o nome. Nas noitadas escolares, nos bancos da Praça São Pedro, conheceu o pedreiro Cícero Venâncio, namoraram e se casaram. E foram embora pra São Paulo. Cinco anos na capital paulista. E voltou pra Santana trazendo dois filhos pequenos: Marcos e Cicinho. Foi morar na Pedra D’água, com um viúvo, chamado Pedro Tenório, cujos filhos já eram homens feitos. Mais uma vez não deu certo. Finalmente estabeleceu-se na Rua Santa Luzia. Conheceu Valdemar, que era pintor de profissão, mas fazia bico de encanador, eletricista e servente de pedreiro, resolveram viver um tempo. E Eunice teve com Valdemar mais três filhos, Lúcia, Josuel e Eduardo. 
         
Valdemar deu de aparecer com muitos objetos em casa, eletrodomésticos, bicicleta e até motocicleta. Um dia, a verdade, Valdemar andava praticando roubos, junto com outros dois comparsas. Envolvera-se também com venda e consumo de drogas, maconha e pedras de crack. Acabara preso. Já fazia um ano que está no presídio de Arapiraca. Era bem provável que, por bom comportamento, ganharia o indulto, e viesse passar com a família aquele natal. Na estante um retrato de Eunice, ainda nova, logo quando casou. Uma imagem de São Sebastião em gesso, e uma gravura de Santa Luzia, aquela que trás dois olhos num prato, numa moldura simples, arribada na parede que dá acesso a cozinha. Perguntado se sabia como Santa Luzia havia se tornado santa, Marcos disse que não, porém gostaria de saber.

“Santa Luzia nascera na cidade de Siracusa, na Itália. No século terceiro da era cristã. Era uma linda moça, abnegada seguidora da doutrina Cristã. Fez voto de castidade. Teria feito, ainda menina, votos de viver virgindade perpétua. Depois que seu pai faleceu, sua mãe queria que ela se casasse com um jovem rico, de tradicional família. Porém era pagão este jovem, não acreditava na doutrina cristã, nem era batizado. Nesse ínterim, entre namoro e noivado, a mãe da menina Luzia, adoeceu de doença, grave, incurável. E Luzia que era devota de Santa Águeda, levou sua mãe até o túmulo da santa de sua devoção. E eis que milagrosamente a mãe de Lúcia, nome antes da ordenação, ficou curada. Depois dessa experiência de cura, a mãe acabou concordando que a filha seguisse a vida religiosa. Consentindo inclusive que distribuísse o dote, que recebera do noivo, entre os pobres. Revoltado o noivo rejeitado, denunciou Luzia, ao procônsul do império romano. Na época os cristãos eram perseguidos e mortos, por negarem os deuses pagãos. Foi ameaçada de ser colocada num prostíbulo, sobre isso teria respondido: “O corpo só se contamina se a alma permite”. Mesmo assim os soldados receberam ordem de carregá-la. No entanto seu corpo pesava tanto que dezenas deles, não  conseguiam o intento. Levada ao cárcere, teve seus olhos arrancados, porém no dia seguinte estavam perfeitos como se nunca tivessem sido tocados. Por não concordar em oferecer sacrifícios aos deuses de Roma, diante de Cesar,e nem quebrar seu santo voto de castidade, foi decapitada. Antes da execução pronunciaria esta frase: “Adoro a um só Deus verdadeiro, a Ele prometi amor e fidelidade.”

Acabada a história de Santa Luzia, e a cortina negra da noite já tinha escondido do mundo o azulão chapiscado de nuvezinhas brancas e vasta luz. Era hora do Ângelus, de um rádio lá longe noutra casa vinha a oração recitada em latim.  Foram todos convidados a rezar uma Ave-Maria, e um Pai Nosso. Porém ninguém naquela casa sabia pronunciar as orações. Bem como nenhum dos filhos de Eunice era batizado. Ganharam dos visitantes, um catecismo e um terço de presente. Prometeram daquele dia em diante, irem à igreja pra missa das crianças, aos domingos pela manhã. Ao sair na rua uma estrela com um brilho especial pairava sobre as casas lá pras bandas dos montes aonde o sol se havia escondido. Aquela estrela era Santa Luzia olhando para nós. Mas a santa tinha um olho só? Quis saber a filha de Eunice. Não Lúcia, como ela está piscando conseguimos ver apenas um dos olhos.


Fabio Campos  

Nenhum comentário:

Postar um comentário