Amigo de Deus.


O pescador saiu pra pescar. João era o nome dele.  João feito de pedra, de sal, e de mar. Pedra no coração, sal na pele e nos cabelos. O mar ia-lhe nos olhos. O céu não tinha saído da caverna ainda. Havia uma lua lá em cima, posta por trás duma cortina de nuvens negras, não se deixava ver totalmente. O elemento terra entranhava-se nos pés descalços, do homem que ia pescar. O elemento água ia até onde os olhos alcançavam, e se cansavam, mesmo assim não desistiam.

Monstro descomunal, dragão deitado, rosnando, bufando, preste a se acordar, furioso: O mar. Pra entender todas aquelas coisas, os olhos cobravam mais luz, e podiam ser de outros luzeiros. Uma lanterna alumiava os pés morenos, que ia fazendo pegadas na areia molhada. A trilha, sendo apagada pelas línguas de espumas, despreocupadas de ficar pra trás. E as ondas brincando de pega-pega com pequenos siris assustados, com seu caminhar esquerdo, acabavam se sugando pra dentro dos buracos.

Jafé era amigo do pescador. Seu João conhecia Jafé de quando ele era ainda pequenino. Agora, senhor Jafé Mascarenhas. Recordava dele menino matreiro, ainda no Grupo Escolar Coronel Durval Mascarenhas. Gazeteava aulas, na escola que tinha o nome de seu avô, pra ir acompanhar o trabalho dos pescadores. Cresceu ali, conhecendo o mar, amigo dos homens do mar. Amava o mar, e era por ele amado. Seu pai, o doutor Evaristo Mascarenhas, o homem mais rico de Barra do Coqueiral, assim que viu o menino crescer, mandou-o a estudar advocacia na Bahia. O jovem filho do usineiro, não tinha vocação pra causídico. Tentou Agronomia, mas formou-se mesmo em Economia. Doutor Evaristo ganhou do governador, o cargo de fiscal da Receita Estadual. Jafé assumiu aquela função, ali mesmo, na jurisdição em que a família Mascarenhas era mandatária, e tinha influência política.

Jafé, o cobrador de impostos, ergueu uma bela casa de veraneio, na encosta do manguezal. Investiu dinheiro no ramo pesqueiro, mais por pura satisfação e prazer, que para ganhar dinheiro. Seu João trabalhou muitos anos, nos barcos pesqueiros do senhor Jafé. O ano inteiro os barcos saíam para pescar. Nos primeiros seis meses do ano, redes de arrasto pra peixe graúdo. No segundo período a pesca predatória da lagosta. Por semana os barcos eram preparados. Passavam por uma vistoria que incluía calafetagem e pintura do casco, manutenção do motor. Antes de cada jornada conferiam os itens de segurança: Bússola náutica, coletes e boias salvas-vidas, sinalizadores, lanternas, balão de oxigênio, antígeno contra veneno de serpentes marinhas, radioamador. Depois a compra dos apetrechos necessários no alto mar. Combustível, alimentos, frutas, alguns medicamentos, maletinha de primeiros socorros. O convés das embarcações recebia uma camada de gelo, de quase meia tonelada. Donde se conservaria o pescado enquanto estivessem em alto mar. Cada barco tinha tripulação delimitada em no mínimo dois, e no máximo três homens. E ficariam entre doze e quatorze dias sem pisar terra firme. Só voltavam quando toda a frota de oito barcos, estivesse completamente abarrotada de peixes. Um sol grande, forte, dispersador de muita luz e calor. Todos os dias vinha sempre admoestar tudo que possuía superfície. Pouco afeto tinha com a madeira do barco. Fluía brutalmente sobre as outras texturas, fazia reflexos de espelho nas escamas do peixe, dizendo aos crustáceos que em suas carapaças havia tons que iam de lilás a azul, alaranjado e vermelho. Quanta tragicidade contida na carcaça dum caranguejo morto, semi enterrado na areia.

Zacarias era um velho ermitão, sentado na areia, permanecia na praia. Sua cabana rica em rusticidade, ali erguida, dava a entender a quem lhe deitasse o olhar, que estaria preste a desabar. Era só impressão. As vigas de madeira que sustinham a palhoça, apesar de arribada na areia, tinham firmeza na base. Já haviam enfrentado tempestades de vento, chuva e areia. Zacarias escavou um buraco, colocou uns gravetos e palha seca, e fez fogo. Dali a pouco um fio de fumaça quase imperceptível ia levar lá longe o cheiro de madeira queimada, junto com o aroma do pescado assando. Seu João era amigo do lobo solitário. Chegou ali e sentou-se um pouco afastado, longe do caminho traçado pela fumaça. Disse que estava preocupado com seu ex-patrão, senhor Jafé estaria muito doente. Tinha certeza que era os excessos com a bebida alcoólica. Todos os dias, litros e mais litros de uísque. Isso quando, não resolvia beber cachaça, junto com os pescadores, depois do serviço. Também fumava muito, eram duas carteiras de cigarro por dia. Além do mais àquela altura da vida, aos sessenta e poucos anos, dona Íris, sua esposa, não suportando mais tantas brigas, exigiu a separação.

Enquanto conversava com Zacarias, Seu João varia a barra do mar com os olhos. Ocupou-se em fazer reparos numa rede de pesca. Os dedos das mãos, freneticamente procedendo o conserto, quase que nem precisava da atenção do sentido da visão. E travavam uma conversa muda de quem entendia um ao outro sem precisarem dizer palavra. Em pensamento João ouvia uma voz que vinha do mar, e Ele, o que lhe falava dizia que amava os homens, pois quando criou o mundo, povoou a terra com todo tipo de animais, e o mar com todo tipo de seres e monstros marinhos. E viu o quanto tudo isso era bom. E sempre vinha a praia, admirar a sua criação. Comer peixe, dava-lhe uma satisfação indizível, considerava um alimento divino.

João, ali ouvindo o vento vindo da praia. Era a Deus que ouvia. Diante de tão inusitada oportunidade tinha alguns questionamentos a fazer. Em suas reflexões pediu que Ele satisfizesse sua curiosidade. Queria saber: se Deus amava realmente todos os homens indistintamente. Recorrendo as Sagradas Escrituras, no Antigo Testamento, recordou-Lhe que no início tinham os filhos de Eva: Abel que era cuidador de rebanhos, e seu irmão Caim cultivador da terra, nem havia ainda entre eles um, que fosse pescador. E lá no íntimo do seu pensamento, as perguntas eram: por que a oferenda de Abel tinha agradado mais que a oferenda de Caim? E mais, por que o Seu filho, Jesus Cristo teria escolhido um pescador pra fundar sua igreja? Calado como estava até agora, o velho Zacarias levantando-se foi até a cabana, demorou alguns instantes e voltou trazendo um livro na mão. Permanecendo de pé, de frente pro mar, folheando-o parou numa determinada página. E fazendo uso da voz, leu : 

“Abel tornou-se pastor de ovelhas, e Caim agricultor. Passado algum tempo, Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor. Abel por sua vez trouxe partes gordas das primeiras crias do seu rebanho. O Senhor aceitou com agrado Abel e sua oferta, mas não aceitou Caim e sua oferta. Por isso Caim se enfureceu e o seu rosto se transtornou. O Senhor disse a Caim: “Por que você está furioso? Por que se transtornou o seu rosto? Se você fizer o bem, não será aceito? Mas, se não o fizer, saiba que o pecado o ameaça à porta; ele (o pecado) deseja conquistá-lo, mas você deve dominá-lo. Gênesis 4-2,7.” 

Era um propósito de Zacarias, todo dia, a hora qualquer, aleatoriamente ler um trecho da Bíblia. E João voltou a escutar a brisa: "-Vedes João, Caim procedeu sua oferenda com soberba. Levou para ofertar ao Senhor somente depois de fartar o seu celeiro, agiu com avareza. Abel deu das primeiras crias, além do mais Caim encolerizou-se. Até aí cometeu três pecados graves; que culminou com um quarto, o de matar seu irmão; e o quinto, o da mentira, omitiu ao seu Senhor . A Lei Mosaica no sexto mandamento diz: “Não Matarás”.

Os dois, agora estavam sentados, João os olhos postos no infinito, quase sussurrando falou:
-Jesus, teu Filho amado lá na praia disse a Pedro: “De hoje em diante serás pescador de homens. Mateus 4,19” O Senhor escolheu um como eu, pra fundar a sua igreja. Todo ano vens à praia comer peixe. Por isso estais aqui comigo. 


Fabio Campos   

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