O Medalhão de Ouro

Houve uma tarde, dessas em que um céu se havia em todo seu esplendor. E o silêncio de Deus vinha vindo e pairava sobre toda criatura. E o sol naquele instante dava de chegar, ao mesmo lugar do dia em que Jesus expirou no alto do madeiro. Mas somente aos espíritos elevados era permitido perceber isso. Visto assim o mundo parecia experimentar o preâmbulo da consumação dos tempos. Foi num momento como esse, que um táxi parou na porta do abrigo São Vicente de Paulo. Mais uma idosa acabava de chegar pra compartilhar um dos cômodos junto aos demais internos.

Assentado num barranco, de barro vermelho, no início da Rua São Vicente. Ao sopé do serrote do Pintado, pelo lado Sul, o Asilo para idosos São Vicente de Paulo, é uma construção de linhas simples. Um único bloco, retangular, ornado de janelas na parte externa. Na parte de dentro, um enfileirado de pequenos quartos, guarnecidos de varanda, com caída d’água pra um singelo pátio descoberto, ornado de plantas. Em tudo lembrando um pequeno convento. Ao entrar ali, os olhares convergiam pra capela e o refeitório, estrategicamente localizados. Onze almas de senis cristãos viventes, por aqueles dias, encerravam parte daqueles cômodos. Sete mulheres e quatro homens. Feitos passageiros, de uma nave chamada tempo, estranhamente navegavam, sem saber dia nem hora que iriam desembarcar. A cada quarto, camas de velhos colchões, uma pequena cômoda, um filtro de barro, um copo num pires. Um banheiro igualmente simples, com uma pia, um pequeno espelho quadrado. Um sabonete um rolo de papel higiênico, um lixeiro, um penico de estanho. Invadindo as narinas, forte cheiro de desinfetante, como se a dizer às moscas que ali não eram bem vindas. Porém insensíveis a tal informação, esvoaçavam e iam pousar onde bem entendiam. Em todos os cômodos uma característica comum, as malas dos seus ocupantes pareciam preparadas, prontas pra viagem.

Apoiando-se no braço da zeladora da instituição como se a muito a conhecesse, lá vinha dona Aureliana Feitosa, se deixando ser conduzida pela passarela. Acabava de chegar a décima segunda tripulante, da nave de gastar tempo. Tempo restante de vida. O chofer do táxi, um negro de boné bufante, as seguia levando a surrada malinha de couro preta, contendo tudo o que a velha senhora possuía. O jardim, as Cássias e espadas de São Jorge em rubro e verde tornado. As paredes pintadas, os telhados nada atraía a atenção, da nova hospede. Como se a única coisa que interessasse, naquele momento fosse apenas ir pelo passeio. Não se dava conta de que pra onde estava indo, não havia volta, não havia saída. Se quer dava-se ao trabalho de lançar um olhar aos demais idosos. Dali pra frente seus companheiros de viagem. Relegados ao ato de existir, era hora de estar ali e esperar, e esperar. O traje da tripulação, roupas de dormir. Como se numa máquina de sonho. E sob uma sonolência se permaneceriam, donde só deveriam acordar, quando chegasse o dia do desembarque, assim viviam. Os homens, sentados nas camas, nas cadeiras de balanço dos alpendres, se ocupavam com coisa alguma. Deles, deitados dormiam. As mulheres preferiam conferir os pertences das suas malas, dobrar roupas. A presença de estranhos, a chegada de uma nova companheira de viagem, nada atraía sua atenção.

Dona Aureliana foi conduzida pra um quarto onde havia duas outras mulheres, Benedita e Vicentina. Chegando ali, foi logo perguntando pela mala de sua irmã Clotilde. É preciso esclarecer que dona Aureliana vinha duma tradicional família de pecuarista. Seus pais era dono de uma das maiores propriedades rural, dos tempos em que a cidade ainda era vila. Aureliana tivera seis irmãs. E todas as sete se deram em casamento, constituíram famílias e envelheceram. À medida que iam ficando viúva, iam sendo conduzidas pelos netos e parentes, para o Asilo São Vicente onde permaneciam até morrer. Fazia apenas alguns meses que Clotilde havia morrido. Acontece que tem a história de um relicário, um medalhão de ouro, valioso, porém amaldiçoado. Aureliana botou na cabeça que o colar desaparecido, estaria ali, entre os pertences de sua falecida irmã Clotilde.

Pra contar a história do colar misterioso, vamos ter que voltar um pouco no tempo. Embrenhar-se na caatinga, ir até os idos de 1936 no sertão alagoano. Saber do cangaceiro José Benedito, conhecido na bandidagem, pelo apelido de “Zé Preto” que mantinha um caso com a cangaceira Rosemêire apelidada Sinhazinha. Essa parelha de crias do cangaço, em determinado ataque a fazenda Grota do Pombal, localizada nas imediações da Vila Entre Montes, às margens do “Velho Chico”, degolou friamente o casal de donos da fazenda. Antes de matar a mulher do fazendeiro, subtraíram-lhe um colar de ouro. Uma praga, um mau agouro foi rogado. Na agonia de morte a mulher teria lançado a maldição, do qual ela própria se dizia vítima, que passasse para quem se apossasse daquele colar. Sem entender do que se tratava a cangaceira passou a usar a jóia. Não demoraria muito e a Sinhazinha deu-se em coito com outro cangaceiro, Ao descobrir a traição “Zé Preto” matou o cabra safado que havia se deitado com sua companheira. A maldição havia se cumprido.

Como o colar teria ido parar nas mãos das irmãs Feitosa, é outra história. “Zé Preto” e Sinhazinha acabaram presos pela tropa de soldados do 3º Pelotão da Polícia Militar de Alagoas, cujo quartel ficava na cidade de Santana do Ipanema. Os despojos dos cangaceiros, armas, munições, a tal relíquia de ouro amaldiçoada, entre outras jóias. Tudo foi parar em cima do birô do comandante da brigada. O Coronel Albuquerque, na ocasião era amante justamente da mulher que um dia seria a mãe das irmãs Feitosa. Num de seus encontros amoroso teria presenteado-lhe o colar, o que implicava em perpetuar a maldição.

Dona Aureliana não encontrou a relíquia entre os pertences de sua irmã. O que incluía uma quantidade considerável de bonecas e calungas de pano. E esse mundo de meu Deus vagou, e vagou pelo mar do céu profundo. Feito a arca do dilúvio, a nave terra. Um dirigível tendo acoplado um bojo, o asilo, tripulado pelos anciãos do São Vicente, continuava sua viagem. Dias e dias, entremeados de noites se passaram. Um dia, melhor dizendo, uma tarde, parecida com aquela do início de tudo, em que Noé esperava um sinal de terra firme. E Dona Vicentina vislumbrou na imensidão do céu, uma pomba branca que vinha. Observando melhor viu que se tratava de um cavalo alado. Se destacando entre o azul vespertino, um alvo equino varão, feito nuvem, veio vindo. E se fazia montado por um homem maduro, de cavanhaque, trajado em vestes pretas.

“-Padre Vicente! O Senhor veio me buscar? Minha mala já está pronta! O senhor trouxe a coroa de ouro da rainha Margarida? E meu noivo, o rei Henrique da França, está esperando pra casar comigo? Vou me casar com o rei! Vamos ter quatro filhos: Três meninos e uma menina! Olhe essa boneca padre! Eu ganhei de Clotilde. Eu guardei pra dar a minha filha, que terei com o rei! Vamos padre! O seu cavalo, está machucando a grama do jardim!” Vicentina aos berros esbravejava, o que a um observador comum parecia um monólogo. No entanto se referia a um interlocutor não visível aos demais, e ele estava lá. Se Vicentina conseguisse viver aquele sonhado conto de fadas, seria interessante que não presenteasse sua filha com aquela boneca. Pra não acabar levando pro seu régio matrimônio, a maldição do colar, encerrado e costurado por Clotilde, nas entranhas da boneca.

Fabio Campos            

Mil Dias Mais Velhos

A vida reserva-nos tantas surpresas. Delas que serão boas, agradáveis de sentir. Outras nem tanto. De repente lá estávamos no corredor do hospital. Minha mãe, acometida de mal súbito, no alto dos seus oitenta e sete anos, pregava-nos mais um susto. Fui encontrá-la, sentada numa daquelas macas altas, de rodinhas, com a qual teria dado entrada ali. Trajada na esverdeada e inconfundível indumentária de paciente. Ainda mais surpresa com nossa presença, perguntava onde estava, e o que teria acontecido.

Um médico realizara os procedimentos padrão, já lhe havia administrado medicamento, no momento recebia soro via intravenosa. Com o auxílio de um enfermeiro, foi transferida pra uma cama. As manivelas sob o lastro foram manipuladas, e uma posição mais confortável teria sido conseguida. O estresse causado pelo mal, o cansaço por tudo que acabara de alterar sua rotina, e dali a pouco, mamãe dormia. Já passavam quarenta minutos da meia noite quando cheguei ali. Fiz questão de consultar o relógio do celular, pra ter ideia de quando, e como tudo havia ocorrido.

Deitada na cama, em decúbito dorsal, olhos serrados, respiração compassada. Vista assim, minha mãe parecia dormir tranquilamente. Seríamos seu acompanhante por aquela noite. Teria a noite inteira pra ficar ali, olhando pra ela. O cabelo branquinho combinava com os forros da cama, com as paredes do ambulatório. Dizem que quando estamos perto de morrer, algum de nós, consegue perceber a aproximação da morte nas feições do moribundo. Como se a gente ficasse com aspecto elevado. E uma aura nos preparasse para a transição pra outra dimensão. Talvez fiquemos com a cara de quem já está mais pra lá, do que pra cá. Alguém chamaria de sexto sentido. No entanto algo me dizia que não perderia a minha mãe naquela noite. Senti-me aliviado por estar invadido daquele tipo de pressentimento. Confortava-me o fato de sentir que não seria aquele, o momento de perdê-la. Na sala de Observação onde nos encontrávamos três outras pacientes do sexo feminino ocupavam outros leitos. O que me fazia sentir deslocado, intruso. Não demoraria e a Assistente Social esclareceu que não poderíamos permanecer ali. Teria que ficar no corredor, pelo fato de eu ser homem, para evitar constrangimentos. Permitiu-me, vez outra, dar uma olhada, porém permanecer ali, não podia. Entendi perfeitamente.

O corredor. Não existe nada tão real e cruel quanto um corredor. Ainda mais de hospital, quando sabemos, obrigado a permanecer ali por longas horas. O silêncio parecia algo palpável. Tênue luz fluorescente iluminava o piso, as paredes, os acentos, as ideias. A frieza do ambiente a tudo gelava. Congelados os pensamentos, esterilizados os sentimentos. Canos vermelhos, do sistema contra incêndio, sequestravam o tempo todo nosso olhar, lá pro teto. Frios adesivos, em letras pretas, sérias, colados ao lado das entradas, informavam os nomes das dependências: “Observação Feminina”, de um lado. “Observação Masculina”, do outro. Milhares de vezes meus olhos, minha mente interpretariam aquela informação. Pela repetição, ler aqueles adesivos se tornou uma coisa maquinal. Ponderei que o melhor seria preencher a mente com outra coisa. Não havia muito em que pensar. Resolvi rezar. O terço que trazia no bolso, veio parar na minha mão. Pensei: que dia seria aquele? Quarta-Feira? Dali uma semana ela estaria completando idade nova. Quarta-Feira dia de recitar os Mistérios Gozosos talvez. Iniciei o rosário da Virgem Santíssima. Outros pensamentos se infiltravam no meio das Aves Marias e Pai Nossos. Por que era tão difícil manter a concentração, se não tinha muito em que pensar?

Fui ver como estava minha mãe. Permanecia dormindo. O frasco de soro tinha secado, e já havia sido substituído. O enfermeiro ligou um aparelho em que uma espécie de presilha prendida a um dos dedos da mão, emitia um som, compassado, característico, parecia acusar os batimentos cardíacos. Pareceu-me regulares. Esvaiu-se a apreensão. Outra paciente iniciou um gemido de dor. Parecia uma dor leve, comportada. Fez-me lembrar uma triste cantiga de ninar. Triste cantiga de acalentar bebê, do tempo da infância de minha mãe.  Olhei para além das janelas, lá fora permanecia escuro. Demoraria ainda a amanhecer? O relógio na parede, insone, cara redonda e branca, de bigodes pretos, dissera que sim. O enfermeiro prestativo ia executando seu serviço, com discrição. Só não se tornando invisível aos nossos olhos, devido nossa curiosidade. Verificou a pressão da paciente que gemia, auscultou o coração. Inconsciente a mulher pareceu aliviada. A luz foi apagada. A sala de “Observação Feminina” envolvida pela penumbra, iluminada apenas pela luz que vinha da porta. Acostumados, os olhos conseguiam ver as silhuetas das pessoas inertes, deitadas nas camas. A infância de minha mãe viera-me com veemência. Fui encontrá-la sentada na porta da casa materna. Nesse tempo ainda brincava de calunga. Talvez não tivesse ainda treze anos. Com três pedrinhas que chamava de “bois” ia jogando para cima, e fazia passar uma a uma, entre os dedos, indicador e polegar, que imitavam um portal, no chão de cimento. Eis que lá pela rua viam uns homens, o delegado, um soldado, o farmacêutico, um mascate vendedor de calçados e o padeiro. Iriam até lá adiante, almoçar na pensão que ficava naquela mesma rua. Ao chegarem à frente da casa daquela menina, que um dia seria minha mãe, o soldado comentaria: “-Que morena bonita! Não é João?” João nada respondia. Era o padeiro, que um dia seria meu pai.

A mulher que sentira dor piorou. Teve convulsões, tosse, dificuldade pra respirar. A filha que a acompanhava desabou em um choro, que tentou conter, sem conseguir. Enfermeiros transferiram-na pra maca de rodinha, levaram-na. Segui-os com os olhos, era bem provável que a estivesse levando pra U.T.I. Demorei-me por mais um bom espaço de tempo, sentado no banco do corredor. Fui até lá adiante, onde havia um bebedouro. Tomei água, fui ao banheiro. O espelho mostrou-me um cara estranho, que em nada lembrava eu mesmo. Já me acostumara aquilo, acontecia a cada novo espelho, um eu mais velho, diferente. De volta, encontrei no corredor a filha da paciente transferida. Perguntei por sua mãe. Sabia apenas que estava no Tratamento intensivo. Com um aceno quis dizer-lhe que torcia por melhoras.

Cinco anos se passaram, nas minhas reminiscências, desde que a mulher entrou na U.T.I. e mais um encontro meu com o passado de minha mãe. Agora com dezoito anos, iniciara um namoro com o padeiro João. Terezinha, a vizinha, aconselharia minha avó a deitar cuidados naquelas meninas. Achava que estavam indo mais vezes a igreja. E que isso talvez fosse pretexto pra ver os namorados. Um dia minha avó foi à procura de minha mãe na pensão onde João almoçava, pois as filhas da dona da pensão eram amigas de minha mãe. Ao ouvir a aproximação de minha avó, minha mãe escondeu-se atrás dumas esteiras de Peri-peri, encostada numa parede. Minha avó percebeu, descobrindo-a no esconderijo repreendeu-a, na frente do namorado, que ficou sem jeito. Dias depois desse episódio, Senhor João, padeiro, faria uma visita à casa da suposta namorada. E ensejando a ocasião, solenemente pediu a mão da minha mãe em casamento. Tomaz meu avô, achou por bem perguntar a minha mãe se ela aceitava aquele pedido. Pedido aceito.

Quando o dia amanhece tudo fica diferente. Dentro de um hospital, não apenas as pessoas, coisas também acordam. O silêncio e a penumbra foram se amasiar no quartinho da faxina. A usina da saúde agora transfigurada. Transmutada numa intensa movimentação de trabalhadores anônimos. Os que adentram ao hospital passavam a ser, seres identificados, identificáveis ainda que pelos seus crachás e uniformes. Aguardamos o médico que tomaria conhecimento do estado de saúde das pacientes. Minha mãe foi julgada como merecedora de receber alta. Providenciamos um jeito de sair o mais rápido dali. E voltar pra casa, ao menos uns mil dias mais velhos.


Fabio Campos         

Carpe Diem

Jorge nascera num tempo em que as mães tinham seus filhos em casa. E ficaria muitos dias de resguardo em cima da cama. E mãe e filho receberiam os cuidados de uma ama. E se a mãe não tivesse leite, a ama amamentaria. E todo fim de tarde, Seu Joaquim o farmacêutico viria visitá-los. E lá na sala lhe seria servido chá com sequilhos fresquinhos feitos por sinhá Tonha, uma preta velha que viera do sítio Mulungu pra cuidar da cozinha. E o velho Quincas comentaria sobre o calor daqueles dias de verão, pois os homens naquele tempo ainda andavam de terno, chapéu de massa na cabeça, e deles que usava bengala. Antes de ir embora receitaria Água Inglesa, pra cólicas intestinais da mãe. E chá de Camomila para que tivessem sono tranquilo. E se recuperariam fortes e saudáveis, pois teriam os cuidados necessários. Além do que, filhos varões eram mais esperados e respeitados, no seio de família como aquela que tradicionalmente vivia da agricultura.

Esta talvez seja história que fale de bem viver. E de que no ato de viver devemos tentar tirar o máximo de proveito. Buscar valores que nos são passados de geração em geração. E de que a herança maior que recebemos, não são coisas, nem objetos. Mas o que herdamos dos nossos pais. Os valores morais, os traços físicos, as afeições cultivadas em família, ao longo da existência terrena. Portanto a família em que Jorge nascera cultivava como valor primordial a união entre os pares. Uma modesta casa na cidade, e uma propriedade denominada Sítio Mulungu, incrustada no meio da caatinga eram os bens que possuíam. A cada ano, quando se aproximava o inverno, os membros do clã viravam camponeses e iam preparar a terra. As culturas consorciadas, milho e feijão, pra subsistência. Palma e algodão de reserva. Havia pasto pra mantença de um pequeno plantel de bovinos, e algumas poucas cabeças de gado miúdo. A demais era divino, dos céus aguardar que viessem as chuvas.

 A casa da cidade era confortável. O mobiliário, apesar de antigo, bastante conservado, verdadeira relíquia. As paredes, revestidas de fotografias de toda herdade, em várias fases das suas vidas: bebês, jovens, e adultos. A cozinha da mãe de Jorge dava gosto de ver. Havia um belo bufê cheio de taças de cristal e xícaras de porcelana com paisagens bucólicas medievais, que fora herdado de sua avó materna. Havia uma mesa enorme de seis cadeiras de madeira maciça, muito pesada, herança do avô paterno. A principal parede daquele cômodo era ornada com o quadro em que Jesus ladeado dos doze apóstolos, fazia a última ceia. Encaixado em simples moldura, a gravura, em papel cartão, a impressionante pintura de Leonardo da Vinci. A mãe de Jorge ganhara o quadro de sua irmã Aurora, como presente de casamento, que ao lhe dar teria dito: “-Mande benzer. E enquanto você tiver esse quadro na parede de sua cozinha, jamais faltará alimento em sua mesa.” A mãe de Jorge teria tido dezenove filhos. Doze nascidos varões. Onze deles ganhariam os nomes dos apóstolos que apareciam escritos abaixo de cada apóstolo, no quadro da derradeira ceia de Jesus. Bartolomeu, Jacó, André, Pedro, João, Thomas, Felipe, Matheus, Tadeu. Simão virou Simeão e Jacó II, Jácomo Luiz, que todos só chamavam Luiz. E Mário Jorge, que os pais só chamavam pelos dois nomes quando era pra repreender. O décimo segundo filho não tinha como dar-lhe o nome de Judas Iscariote.

E vieram sucessivos anos de estiagem. As propriedades rural, transfiguradas em verdadeiros desertos obrigavam os sertanejos a buscar alternativas outras de sobrevivência. Sem inverno se consumiam as reservas de grãos dos vasos. O gado morria de fome. Em tal situação era comum o esteio das famílias de sertanejos, os pais de família, viajarem em busca de garantir o sustento da prole. O pai de Jorge foi embora, pra trabalhar na indústria têxtil de Delmiro Gouveia. Depois foi trabalhar de peão na usina de Paulo Afonso. Ali aprendeu a profissão de operador de máquina pesada. Não demoraria, foi embora pra São Paulo, exercer sua nova função na construção civil. Nos primeiros meses mandava dinheiro pelo correio. Aos poucos foi se desobrigando desse compromisso. Chegaram boatos que constituíra nova família no sudeste. Depois notícia nenhuma dele, tinha mais sua família do sertão.

Quando fez nove anos de idade Jorge adoeceu, de um mal que lhe comprimia os pulmões. Talvez tivesse asma. Tanto seus pais, quanto seus irmãos mais velhos eram todos fumantes. O fato de estar diariamente se expondo à fumaça de cigarro, em idade pueril, contribuiu para levá-lo aquele precário estado de saúde. Depois de uma consulta, o médico receitou uns remédios, e também recomendou que o menino passasse um tempo num lugar onde respirasse ar puro. Por conta da doença, Jorge foi obrigado a viver longe da família. Por dez longos anos o menino viveu no campo, sendo criado por sua tia Aurora, no Sítio Mulungu. Esse exílio forçado faria com que fosse o único dentre os irmãos que não teria tido a oportunidade de estudar. Vivera quase como um ermitão. Sua escola foi o mato aprendeu a valorar exclusivamente as coisas do campo. Conhecia os sinais dos céus, entendia se estava próximo o início das invernadas.

Findo esse tempo, recuperada a saúde, Jorge agora um rapaz, voltou à cidade. No entanto não mais se acostumaria à vida urbana e voltou pra vida rurícola. Porém sentia-se na obrigação de manter a casa de sua paternidade, com os irmãos mais novos que ainda permaneciam em casa. O dia nem havia clareado, encangava uma parelha de bois, ia até o barreiro enchia pipas e ancoretas, e abastecia d’água a casa materna. Do silo tirava milho seco, passava no moinho e não deixava faltar fubá. Uma única vaquinha, mantida no tempo seco, garantia o leite. Ovos e carne sempre havia da sua criação de galinhas. No grotão não faltava uma abóbora de caboclo, um cacho de bananas, uns tomates. E Jorge sem o saber conseguia perpetuar uma premonição ditada por sua tia Aurora, ao dar de presente o quadro da Santa Ceia, a sua mãe, que nem mais se lembrava daquele adágio em que disse: “Enquanto o quadro permanecesse na parede da cozinha, o alimento estaria garantido naquela casa.”

Muito tempo se passou. A mãe de Jorge padecendo de doença grave veio a falecer. Sua tia Aurora deixou o Sítio Mulungu, e foi morar na casa da cidade, pra terminar de criar os filhos da irmã. Todos cresceram, estudaram, se formaram e foram embora. Apenas Jorge permanecia sozinho eremita no Sítio Mulungu. Pelo menos uma vez por ano, os irmãos marcavam um local, a casa de um deles, onde se reuniam para confraternização natalina e de final de ano. Deles que residiam em São Paulo, vindo de avião até Maceió, chegava a sua terra natal em carro de luxo, fretado.

Naquele ano o local marcado foi à casa materna. Eis que na noite do réveillon, os dezoito irmãos se encontravam na casa onde a maioria deles nascera. No momento em que os relógios marcaram meia-noite, enquanto todos se abraçavam, brindavam com taças de champanhe e se deliciavam com as massas de forno e peru, mais um daquela descendência acabara de chegar, era Jorge. No seu jeito tímido de homem rude do campo, de pouca conversa, cumprimentou e abraçou a todos. Cada irmão, disse naquela ocasião que ia levar uma lembrança da casa da mãe. Taças de cristal, xícaras de porcelana foram parar nas malas. Jorge quis o quadro da parede da cozinha. Antes porém uma foto foi providenciada, onde os doze irmãos nascido varão sentaram-se à mesa. Estranhamente se colocaram na mesma posição em que se encontravam os apóstolos, que lhe emprestaram os nomes, no quadro que aparecia ao fundo do instantâneo. A Santa Ceia, por aquela irmandade reproduzida contava também com a presença de Cristo.   
     

Fabio Campos

A Moléstia

Esta história, bem que poderia ser apenas mais uma dessas, em que o contador de causos vai se embrenhar pelas veredas do sertão, chegar a uma cidadezinha interiorana, e focar uma rústica família sertaneja. Pelo título sugerido é muito provável que vá referir-se as mazelas causadas por uma doença. Quem sabe os problemas de saúde enfrentados pelas personagens. Não está, de todo, equivocado quem desse jeito pensou. Não, totalmente enganado. Afinal, doenças nesse mundo de meu Deus, existem desde que o mundo é mundo.   
 
Se a gente olhar o passar do tempo, pelo lado biológico, tudo o que os anos vão acrescentando as nossas existências, é só deterioração. Por isso naquela casa, Seu Prudêncio estava ficando imprudente, e Dona Rosa se despetalando. Mas nem sempre foi assim. E pra que a gente entenda tudo direitinho, é preciso começar do começo. Dizer que Seu Prudêncio e Dona Rosa um dia foram jovens. E que ele, apesar de ter nascido no seio de família tradicional, nada quis com estudos. Gostava mesmo era da lida com gado, viver fincando estaca, laçar boi, ordenhar vaca, prender e soltar gado no curral, cavalgar no pasto. Amava a vida no campo. E pra diversão, as corridas de mourão, as vaquejadas, as festas de quermesse, as novenas do santo padroeiro da Fazenda Riachão. Justo numa dessas festas de gado, conheceu a jovem Rosinha, por quem se apaixonou. A filha de Seu João Inácio um modesto agricultor, laçou o coração do vaqueiro, e logo estariam casados. Senhor Florêncio Rêgo pai do noivo, escolheu uma gleba no extremo oeste do seu imenso lote de terra. Desmembrou, e deu ao filho, dizendo que aquela era a sua parte da herança, e que ali construísse sua moradia. Tudo perfeito, isso se Seu Prudêncio fosse filho único, porém não era. Outros irmãos também almejavam tomar como herança, aquela parte da propriedade. Por motivos óbvios, ficava mais próxima da cidade, não tinha muita pedra, não era muito acidentado, um grotão como muito pasto, ia encontrar o riacho Gravatá que cortava aquele trecho. Os seis filhos de seu Florêncio, todos, assim como os cinco irmãos do vaqueiro recém-casado cobiçavam aquela parte da fazenda Riachão. Porém o jovem Prudêncio, contraindo matrimônio primeiro, recebeu aquela parte como herança. O lançar do olho da cobiça da parentela dos Rêgo, talvez seja o motivo do que contaremos daqui pra frente.

Na empreitada de construir a casa de morada o jovens Prudêncio quis tê-la com todas as virtudes que uma casa colonial possui. Num batente bem aprumado do sopé do serrote Pelado ergueu imponente casarão assobradado. Toda ela num bloco único, rodeada de alpendres. O que muito chamava a atenção eram as janelas, em grande quantidade. Os balaústres conferiam graça, beleza, ao tempo que enriquecia de historicidade, porque lembravam o período imperial brasileiro. O telhado tinha frisos nos beirais e singelo arremate nas pontas. Plantas e árvores frutíferas rodeavam a construção, o que a tornava ainda mais bela. Se o que tocava o sentido da visão encantava, imagine se aos olhos de um atento observador acrescentarmos, os elementos que atingem e sensibilizam os outros sentidos. O adocicado perfume liberado pelas flores, a brisa nas tardes prazenteiras, o sol matutino, vindo amarelar as paredes em branco de cal. Um esplendor de céu em nuvens de algodão navegando pra o profundo oceano azul, enquanto bandos de pardais e garças em “vê” voavam lá pras bandas do horizonte.

Já está mais do que na hora de falar da moléstia. O velho Prudêncio e Dona Rosa tiveram muitos filhos, porém todos já se haviam crescido, estudado, e uma vez casados foram indo embora. Na herdade daquele casal de anciãos, havia uma que era advogada, outro que era capitão da aeronáutica, e até um que era médico. Desses que entende de ossos, só que estavam longe, muito longe da casa do pai. Justo por volta dos setenta anos, Seu Prudêncio deu de apresentar uma dor nos ossos, que muito lhe incomodava. Todo ano quando chegava janeiro, época em que os céus trombeteavam em clarins de relâmpagos e trovões, as providenciais trovoadas. O riacho dava de insultar os baixios. Se amostrando em valentia, partia pra cima do gado, penteava o capim da várzea, e como se brincasse de pião rolava imensas craibeiras.

Era tempo de Seu Prudêncio sentir fortes dores nos ossos. Era uma dor fria, implicante que lhe incomodaria para além das noites de inverno. Ora meu caro, dor nos ossos entreva qualquer um. E o esteio da casa se punha macambúzio. Em riba duma cama enrolava-se num lençol, do tipo abafa bufa, que lhe cobria do pescoço ao tornozelo. Danava-se a tomar chá de erva cidreira e quebra pedra, pra amenizar a moléstia. Ao dizer que o esteio da casa ficava entrevado, não é apenas força de expressão, estranhamente o esteio da casa mesmo. A linha principal, o pé direito, junto com os caibros roliços, nessa mesma ocasião, dava de ranger, e dar estalos como se gemesse e dor também sentisse. E outros males vieram além daquele. Dona Rosa apresentou uma erisipela, que empestou suas pernas e braços. Logo ela que era de pele clara, a moléstia se apresentava ainda mais grotesca. Braços e pernas num petrume horrendo se destacava do resto do corpo de pele rosácea da velha senhora. E não é que as paredes da casa, também deram de apresentar uma descamação semelhante à doença de Dona Rosa. Não demorou as paredes da casa, antes branquinhas, ficaram cheias de nódoas e manchas que lembravam enormes feridas necrosadas.

As janelas, os olhos da casa. O cartão postal daquela imponente casarão começara a se deteriorar. Os esquadrilhos começaram empenar, em desalinho. As vidraças muitas delas trincadas, foram se tornando embaçadas. As dobradiças enferrujadas passaram a entortar, as folhas de madeira trabalhada lentamente iam se desencaixando. O cupim comprometeu toda a estrutura e a casa vista assim, mais parecia um mau-assombro.   
          
Outros invernos mais viriam e com eles outros males. De repente umas plantas exóticas que os filhos de Seu Prudêncio trouxeram de países estrangeiros, plantadas no terreiro da casa, começaram a liberar um pó branco, uma espécie de fungo que passou a estragar os alimentos. Os grãos armazenados nos vasos guardados no paiol foram afetados. O feijão além do gorgulho criou um mofo e apodreceu. A casa de farinha criou uma pichilinga, que atacou as aves da fazenda: galinhas, patos e pássaros. Bem como as criações de ovelhas e porcos, todos doentes. A casa toda foi invadida por aquele maldito fungo. E Seu Prudêncio e Dona Rosa inadvertidamente coçaram os olhos com as mãos contaminadas por aquele mofo, e acabaram ficando cegos.

Uma noite quente de verão se havia quando a maldição veio selar o destino daquela casa. Após a janta, o velho Prudêncio pitava seu cigarro de palha e fumo picado, enquanto Dona Rosa debulhava um rosário de contas negras. Preparavam-se pra se recolherem e dormir. Pouco a pouco o sertão ia silenciando. Aos poucos entregando seu cansaço a noite de um céu agourento e carregado de maus presságios. De repente uma rajada de vento forte escancarou a janela da cozinha, derrubou o candeeiro. O querosene ganhou o lastro de madeira, e a língua de fogo foi com ele. Não demorou muito e a casa, em seu imponente estilo império-colonial ardia. E as silhuetas das árvores no entorno da casa, pareciam bruxos gigantes dançando em torno do clarão das chamas. Lá no alto do serrote do Pelado, bem lá no meio das trevas, deu pra ouvir um gutural gemido. Era o estalo do teto da casa vindo a baixo, rasgando o ar, alumiado pelo brilho do olho da coruja.

Fabio Campos      

Destinos Em Casas Decimais

Negro Benedito depois de velho, já encabeçando os sessenta, botou na cabeça que era vidente. E se inventou de atender o povo, fazendo consultas sobre passado, presente e futuro. Essa história que vou contar aconteceu já faz certo tempo. Como tudo começou, não sei direito, por isso vou contar de onde, e até onde sei. Foi mais ou menos assim, primeiro conheci Damião, filho do velho Benedito. Damião não passava de um menino como eu. Nós nos tornamos amigo, vez outra ia ele a minha casa, e eis que um dia coloquei os pés dentro da casa dele. Senti um calafrio. Ali descobriria a história da vidência de seu pai.

Seu Benedito, era assim, parecia um preto velho desses que só se encontra originalmente na Bahia, no pelourinho ou na Baixa do Sapateiro. Se ao contrário fossemos nós o adivinho, diria que Seu Benedito teria vindo duma comunidade quilombola, nascido numa família prolífera, e que teria terminado de ser criado por um rico fazendeiro. Muito sofrera depois que a mãe morrera, e para sobreviver teve que ser engraxate, vender picolé, fazer frete de carro de mão, teria cuidado de animais na intendência, no vigor da idade fora estivador, conseguira um aposentadoria e agora estava ali, na minha frente. Devidamente trajado de branco, trazia uma quantidade razoável de colares cheio de contas coloridas, no pescoço, e outra dezena de amuletos e patuás, deles que descia até sobre sua imensa pança negra cujos botões da blusa branca de mangas compridas, punha à mostra. Uma barba branca, combinando com a carapinha, escondida em baixo de um chapéu de massa branco. Na beiçola um charuto, ora aceso, ora apagado, porém sempre fedorento. Os olhos do negro, estes mereciam uma descrição especial, primeiro porque eram enormemente incomuns. Além do que eram incomumente avermelhados. Projetavam-se para fora do globo ocular, como se a qualquer momento fossem pular fora da caixa. E se saltassem por certo me atingiria, em cheio, aumentando ainda mais meu medo.  

A casa era simples, misturava paredes de taipa com outras de alvenaria, dando um aspecto surreal à construção. A entrada havia uma pequena sala de estar, que mal acomodaria três pares de pessoas. O teto baixo daria pra ser facilmente alcançado caso, um homem mediano, estirasse o braço. As paredes repletas de diversos quadros de santos da igreja católica, porém havia imagens pagãs. Numa mistura de crenças e misticismo. A gravura azulina de Iemanjá, flutuando sobre as águas do mar, repleto de flores, ladeada da imagem de São Pedro. O santo com a chave do céu, de rosto ríspido, de cara fechada, volvendo seu olhar aos céus, como se reprovasse aquele ecumenismo caboclo.

Olhando com aquele olhar de causar calafrio. Como se olhasse através da gente, o velho Biu teria dito: “-Ô! Esse menino! O que veio fazer na minha casa? Não precisa dizer! Eu sei de tudo. Você é amigo de meu filho, e só. É! Mas tem muitas coisas por trás de tudo isso. Coisas que vocês não sabem. Ele está aqui! O tempo todo está bem aqui. Ele me persegue.” Sobre o que estava falando não entendi patavina. E continuou: “-Venha...Vou lhe mostrar!” E me conduziu a um dos quartos da casa, que deu pra perceber tratar-se da sala das consultas. Havia uma cortina vermelha ao fundo. Uma mesa forrada de branco ao centro, à medida que meus olhos foram se acostumando com a penumbra, pude perceber diversas estatuetas espalhadas pelo chão. Uma delas era de um enorme cachorro da raça Collie, igual a cadela Lessie do filme, em posição de sentado atingia a cintura de um homem. Os olhos pareciam ter vida, pintados com tinta fosforescente. Noutro canto a estatueta do capeta, vermelho com seu tridente sorria maliciosamente. Centenas de ex-votos. E velas de cores variadas, algumas acesas. O cheiro que impregnava o ar era de um incenso nauseabundo. Nunca esquecerei aquele cheiro.  Não teria Seu Benedito, feito previsões sobre a vida, do menino que acabava de conhecer. Porém algumas coisas interessantes teriam ocorrido ali, talvez isso, fosse o que interessasse aqui ser contado. Como se tivesse se sentindo perseguido, Seu Benedito ficou visivelmente perturbado. Agitando os braços para todos os lados, e dando voltas sobre si mesmo, sem fixar os olhos em lugar algum, começou a falar alto:   
        
“-Ele está aqui. Eu o invoquei e agora não tenho mais como me livrar dele! Se alguém quiser ficar rico ele ajuda! Mas cobra um preço muito caro! Ele não me deixa em paz! Não queira nem saber de quem estou falando. Só precisa saber que é ruim! Dia e noite sem ter paz. Eu só não morri ainda porque tenho o corpo fechado. Não era nem pra dizer isso. Mas já disse.” Antes de sair da casa, dona Maria, a mulher de Seu Benedito, olhando com olhar enigmático disse: “-Você viu? Ele está doente. Ele invocou os espíritos das trevas, pediu pra lhe dizer, as seis dezenas da loteria. Andou fazendo algumas oferendas pra eles, mas não serviu. Eles sempre querem mais. Agora está perturbado.”

No dia que Seu Benedito morreu fui ao sepultamento. O esquife ficou exposto dentro da capelinha do cemitério, intensamente repleto de luz e calor do sol. A luz quase que cegava. O calor sufocava. Além dos poucos familiares, mais ninguém. Agora velas brancas velavam, flores e o forro do pequeno altar.  Em solidariedade ao amigo, estávamos ali, ele não chorava. Apenas tentava consolar sua mãe. Só na hora de fechar o caixão criei coragem pra me aproximar. Um rosto de sobrancelhas serradas, de quem morrera com angústia e muita dor.

Seu Belo também estava ali. Seu Belo era dono da bodega, que ficava perto da Cadeia Pública, que ficava virada pra praia. Seu Belo nunca conheceu Seu Benedito, mas estava ali porque era da opinião de que aquele homem precisava descansar em paz. Nenhum dos que ali estavam via Seu Belo. Ele não fazia questão de ser visto, era melhor assim. Fez sua oração pela alma daquele homem, e se foi. Lembro quando ele um dia me disse: “-Na vida nós fazemos escolhas. É preciso ter serenidade, paz no coração. Um dia você nasceu. Nada acontece à toa. Como não é à toa que você está aqui, conversando comigo.” 
    
A uma ensolarada manhã de segunda-feira. Por volta de sete horas, do dia primeiro de março. Do ano em que morrera a princesa Eleonora de Aragon, filha do rei Fernando I de Espanha, Sandro nasceu. No seio de uma família pobre, de camponeses. A um humilde casebre, ao lado da ponte velha, as margens do rio Arno, na velha Florença Sandro veio ao mundo. O pai Felipe Mariano muito comemorou a vinda de mais um varão, nascido em plena primavera. Sandro jamais sonhara, porém se tornaria um dos maiores pintores da renascença. E tão belamente pintou o nascimento da Vênus de Milo.


Fabio Campos