Negro Benedito depois de velho, já encabeçando os
sessenta, botou na cabeça que era vidente. E se inventou de atender o povo, fazendo
consultas sobre passado, presente e futuro. Essa história que vou contar aconteceu
já faz certo tempo. Como tudo começou, não sei direito, por isso vou contar de onde,
e até onde sei. Foi mais ou menos assim, primeiro conheci Damião, filho do
velho Benedito. Damião não passava de um menino como eu. Nós nos tornamos amigo,
vez outra ia ele a minha casa, e eis que um dia coloquei os pés dentro da casa
dele. Senti um calafrio. Ali descobriria a história da vidência de seu pai.
Seu Benedito, era assim, parecia um preto velho desses que
só se encontra originalmente na Bahia, no pelourinho ou na Baixa do Sapateiro. Se
ao contrário fossemos nós o adivinho, diria que Seu Benedito teria vindo duma
comunidade quilombola, nascido numa família prolífera, e que teria terminado de
ser criado por um rico fazendeiro. Muito sofrera depois que a mãe morrera, e
para sobreviver teve que ser engraxate, vender picolé, fazer frete de carro de
mão, teria cuidado de animais na intendência, no vigor da idade fora estivador,
conseguira um aposentadoria e agora estava ali, na minha frente. Devidamente
trajado de branco, trazia uma quantidade razoável de colares cheio de contas
coloridas, no pescoço, e outra dezena de amuletos e patuás, deles que descia
até sobre sua imensa pança negra cujos botões da blusa branca de mangas
compridas, punha à mostra. Uma barba branca, combinando com a carapinha,
escondida em baixo de um chapéu de massa branco. Na beiçola um charuto, ora
aceso, ora apagado, porém sempre fedorento. Os olhos do negro, estes mereciam
uma descrição especial, primeiro porque eram enormemente incomuns. Além do que
eram incomumente avermelhados. Projetavam-se para fora do globo ocular, como se
a qualquer momento fossem pular fora da caixa. E se saltassem por certo me atingiria,
em cheio, aumentando ainda mais meu medo.
A casa era simples, misturava paredes de taipa com outras
de alvenaria, dando um aspecto surreal à construção. A entrada havia uma
pequena sala de estar, que mal acomodaria três pares de pessoas. O teto baixo
daria pra ser facilmente alcançado caso, um homem mediano, estirasse o braço.
As paredes repletas de diversos quadros de santos da igreja católica, porém havia
imagens pagãs. Numa mistura de crenças e misticismo. A gravura azulina de
Iemanjá, flutuando sobre as águas do mar, repleto de flores, ladeada da imagem
de São Pedro. O santo com a chave do céu, de rosto ríspido, de cara fechada, volvendo
seu olhar aos céus, como se reprovasse aquele ecumenismo caboclo.
Olhando com aquele olhar de causar calafrio. Como se
olhasse através da gente, o velho Biu teria dito: “-Ô! Esse menino! O que veio
fazer na minha casa? Não precisa dizer! Eu sei de tudo. Você é amigo de meu
filho, e só. É! Mas tem muitas coisas por trás de tudo isso. Coisas que vocês
não sabem. Ele está aqui! O tempo todo está bem aqui. Ele me persegue.” Sobre o
que estava falando não entendi patavina. E continuou: “-Venha...Vou lhe
mostrar!” E me conduziu a um dos quartos da casa, que deu pra perceber tratar-se
da sala das consultas. Havia uma cortina vermelha ao fundo. Uma mesa forrada de
branco ao centro, à medida que meus olhos foram se acostumando com a penumbra,
pude perceber diversas estatuetas espalhadas pelo chão. Uma delas era de um
enorme cachorro da raça Collie, igual a cadela Lessie do filme, em posição de
sentado atingia a cintura de um homem. Os olhos pareciam ter vida, pintados com
tinta fosforescente. Noutro canto a estatueta do capeta, vermelho com seu
tridente sorria maliciosamente. Centenas de ex-votos. E velas de cores
variadas, algumas acesas. O cheiro que impregnava o ar era de um incenso
nauseabundo. Nunca esquecerei aquele cheiro. Não teria Seu Benedito, feito previsões sobre
a vida, do menino que acabava de conhecer. Porém algumas coisas interessantes teriam
ocorrido ali, talvez isso, fosse o que interessasse aqui ser contado. Como se
tivesse se sentindo perseguido, Seu Benedito ficou visivelmente perturbado.
Agitando os braços para todos os lados, e dando voltas sobre si mesmo, sem
fixar os olhos em lugar algum, começou a falar alto:
“-Ele está aqui. Eu o invoquei e agora não tenho mais
como me livrar dele! Se alguém quiser ficar rico ele ajuda! Mas cobra um preço
muito caro! Ele não me deixa em paz! Não queira nem saber de quem estou
falando. Só precisa saber que é ruim! Dia e noite sem ter paz. Eu só não morri
ainda porque tenho o corpo fechado. Não era nem pra dizer isso. Mas já disse.”
Antes de sair da casa, dona Maria, a mulher de Seu Benedito, olhando com olhar
enigmático disse: “-Você viu? Ele está doente. Ele invocou os espíritos das
trevas, pediu pra lhe dizer, as seis dezenas da loteria. Andou fazendo algumas
oferendas pra eles, mas não serviu. Eles sempre querem mais. Agora está perturbado.”
No dia que Seu Benedito morreu fui ao sepultamento. O
esquife ficou exposto dentro da capelinha do cemitério, intensamente repleto de
luz e calor do sol. A luz quase que cegava. O calor sufocava. Além dos poucos
familiares, mais ninguém. Agora velas brancas velavam, flores e o forro do
pequeno altar. Em solidariedade ao
amigo, estávamos ali, ele não chorava. Apenas tentava consolar sua mãe. Só na
hora de fechar o caixão criei coragem pra me aproximar. Um rosto de sobrancelhas
serradas, de quem morrera com angústia e muita dor.
Seu Belo também estava ali. Seu Belo era dono da bodega,
que ficava perto da Cadeia Pública, que ficava virada pra praia. Seu Belo nunca
conheceu Seu Benedito, mas estava ali porque era da opinião de que aquele homem
precisava descansar em paz. Nenhum dos que ali estavam via Seu Belo. Ele não
fazia questão de ser visto, era melhor assim. Fez sua oração pela alma daquele
homem, e se foi. Lembro quando ele um dia me disse: “-Na vida nós fazemos
escolhas. É preciso ter serenidade, paz no coração. Um dia você nasceu. Nada
acontece à toa. Como não é à toa que você está aqui, conversando comigo.”
A uma ensolarada manhã de segunda-feira. Por volta de
sete horas, do dia primeiro de março. Do ano em que morrera a princesa Eleonora
de Aragon, filha do rei Fernando I de Espanha, Sandro nasceu. No seio de uma
família pobre, de camponeses. A um humilde casebre, ao lado da ponte velha, as
margens do rio Arno, na velha Florença Sandro veio ao mundo. O pai Felipe
Mariano muito comemorou a vinda de mais um varão, nascido em plena primavera. Sandro
jamais sonhara, porém se tornaria um dos maiores pintores da renascença. E tão
belamente pintou o nascimento da Vênus de Milo.
Fabio Campos
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