Mil Dias Mais Velhos

A vida reserva-nos tantas surpresas. Delas que serão boas, agradáveis de sentir. Outras nem tanto. De repente lá estávamos no corredor do hospital. Minha mãe, acometida de mal súbito, no alto dos seus oitenta e sete anos, pregava-nos mais um susto. Fui encontrá-la, sentada numa daquelas macas altas, de rodinhas, com a qual teria dado entrada ali. Trajada na esverdeada e inconfundível indumentária de paciente. Ainda mais surpresa com nossa presença, perguntava onde estava, e o que teria acontecido.

Um médico realizara os procedimentos padrão, já lhe havia administrado medicamento, no momento recebia soro via intravenosa. Com o auxílio de um enfermeiro, foi transferida pra uma cama. As manivelas sob o lastro foram manipuladas, e uma posição mais confortável teria sido conseguida. O estresse causado pelo mal, o cansaço por tudo que acabara de alterar sua rotina, e dali a pouco, mamãe dormia. Já passavam quarenta minutos da meia noite quando cheguei ali. Fiz questão de consultar o relógio do celular, pra ter ideia de quando, e como tudo havia ocorrido.

Deitada na cama, em decúbito dorsal, olhos serrados, respiração compassada. Vista assim, minha mãe parecia dormir tranquilamente. Seríamos seu acompanhante por aquela noite. Teria a noite inteira pra ficar ali, olhando pra ela. O cabelo branquinho combinava com os forros da cama, com as paredes do ambulatório. Dizem que quando estamos perto de morrer, algum de nós, consegue perceber a aproximação da morte nas feições do moribundo. Como se a gente ficasse com aspecto elevado. E uma aura nos preparasse para a transição pra outra dimensão. Talvez fiquemos com a cara de quem já está mais pra lá, do que pra cá. Alguém chamaria de sexto sentido. No entanto algo me dizia que não perderia a minha mãe naquela noite. Senti-me aliviado por estar invadido daquele tipo de pressentimento. Confortava-me o fato de sentir que não seria aquele, o momento de perdê-la. Na sala de Observação onde nos encontrávamos três outras pacientes do sexo feminino ocupavam outros leitos. O que me fazia sentir deslocado, intruso. Não demoraria e a Assistente Social esclareceu que não poderíamos permanecer ali. Teria que ficar no corredor, pelo fato de eu ser homem, para evitar constrangimentos. Permitiu-me, vez outra, dar uma olhada, porém permanecer ali, não podia. Entendi perfeitamente.

O corredor. Não existe nada tão real e cruel quanto um corredor. Ainda mais de hospital, quando sabemos, obrigado a permanecer ali por longas horas. O silêncio parecia algo palpável. Tênue luz fluorescente iluminava o piso, as paredes, os acentos, as ideias. A frieza do ambiente a tudo gelava. Congelados os pensamentos, esterilizados os sentimentos. Canos vermelhos, do sistema contra incêndio, sequestravam o tempo todo nosso olhar, lá pro teto. Frios adesivos, em letras pretas, sérias, colados ao lado das entradas, informavam os nomes das dependências: “Observação Feminina”, de um lado. “Observação Masculina”, do outro. Milhares de vezes meus olhos, minha mente interpretariam aquela informação. Pela repetição, ler aqueles adesivos se tornou uma coisa maquinal. Ponderei que o melhor seria preencher a mente com outra coisa. Não havia muito em que pensar. Resolvi rezar. O terço que trazia no bolso, veio parar na minha mão. Pensei: que dia seria aquele? Quarta-Feira? Dali uma semana ela estaria completando idade nova. Quarta-Feira dia de recitar os Mistérios Gozosos talvez. Iniciei o rosário da Virgem Santíssima. Outros pensamentos se infiltravam no meio das Aves Marias e Pai Nossos. Por que era tão difícil manter a concentração, se não tinha muito em que pensar?

Fui ver como estava minha mãe. Permanecia dormindo. O frasco de soro tinha secado, e já havia sido substituído. O enfermeiro ligou um aparelho em que uma espécie de presilha prendida a um dos dedos da mão, emitia um som, compassado, característico, parecia acusar os batimentos cardíacos. Pareceu-me regulares. Esvaiu-se a apreensão. Outra paciente iniciou um gemido de dor. Parecia uma dor leve, comportada. Fez-me lembrar uma triste cantiga de ninar. Triste cantiga de acalentar bebê, do tempo da infância de minha mãe.  Olhei para além das janelas, lá fora permanecia escuro. Demoraria ainda a amanhecer? O relógio na parede, insone, cara redonda e branca, de bigodes pretos, dissera que sim. O enfermeiro prestativo ia executando seu serviço, com discrição. Só não se tornando invisível aos nossos olhos, devido nossa curiosidade. Verificou a pressão da paciente que gemia, auscultou o coração. Inconsciente a mulher pareceu aliviada. A luz foi apagada. A sala de “Observação Feminina” envolvida pela penumbra, iluminada apenas pela luz que vinha da porta. Acostumados, os olhos conseguiam ver as silhuetas das pessoas inertes, deitadas nas camas. A infância de minha mãe viera-me com veemência. Fui encontrá-la sentada na porta da casa materna. Nesse tempo ainda brincava de calunga. Talvez não tivesse ainda treze anos. Com três pedrinhas que chamava de “bois” ia jogando para cima, e fazia passar uma a uma, entre os dedos, indicador e polegar, que imitavam um portal, no chão de cimento. Eis que lá pela rua viam uns homens, o delegado, um soldado, o farmacêutico, um mascate vendedor de calçados e o padeiro. Iriam até lá adiante, almoçar na pensão que ficava naquela mesma rua. Ao chegarem à frente da casa daquela menina, que um dia seria minha mãe, o soldado comentaria: “-Que morena bonita! Não é João?” João nada respondia. Era o padeiro, que um dia seria meu pai.

A mulher que sentira dor piorou. Teve convulsões, tosse, dificuldade pra respirar. A filha que a acompanhava desabou em um choro, que tentou conter, sem conseguir. Enfermeiros transferiram-na pra maca de rodinha, levaram-na. Segui-os com os olhos, era bem provável que a estivesse levando pra U.T.I. Demorei-me por mais um bom espaço de tempo, sentado no banco do corredor. Fui até lá adiante, onde havia um bebedouro. Tomei água, fui ao banheiro. O espelho mostrou-me um cara estranho, que em nada lembrava eu mesmo. Já me acostumara aquilo, acontecia a cada novo espelho, um eu mais velho, diferente. De volta, encontrei no corredor a filha da paciente transferida. Perguntei por sua mãe. Sabia apenas que estava no Tratamento intensivo. Com um aceno quis dizer-lhe que torcia por melhoras.

Cinco anos se passaram, nas minhas reminiscências, desde que a mulher entrou na U.T.I. e mais um encontro meu com o passado de minha mãe. Agora com dezoito anos, iniciara um namoro com o padeiro João. Terezinha, a vizinha, aconselharia minha avó a deitar cuidados naquelas meninas. Achava que estavam indo mais vezes a igreja. E que isso talvez fosse pretexto pra ver os namorados. Um dia minha avó foi à procura de minha mãe na pensão onde João almoçava, pois as filhas da dona da pensão eram amigas de minha mãe. Ao ouvir a aproximação de minha avó, minha mãe escondeu-se atrás dumas esteiras de Peri-peri, encostada numa parede. Minha avó percebeu, descobrindo-a no esconderijo repreendeu-a, na frente do namorado, que ficou sem jeito. Dias depois desse episódio, Senhor João, padeiro, faria uma visita à casa da suposta namorada. E ensejando a ocasião, solenemente pediu a mão da minha mãe em casamento. Tomaz meu avô, achou por bem perguntar a minha mãe se ela aceitava aquele pedido. Pedido aceito.

Quando o dia amanhece tudo fica diferente. Dentro de um hospital, não apenas as pessoas, coisas também acordam. O silêncio e a penumbra foram se amasiar no quartinho da faxina. A usina da saúde agora transfigurada. Transmutada numa intensa movimentação de trabalhadores anônimos. Os que adentram ao hospital passavam a ser, seres identificados, identificáveis ainda que pelos seus crachás e uniformes. Aguardamos o médico que tomaria conhecimento do estado de saúde das pacientes. Minha mãe foi julgada como merecedora de receber alta. Providenciamos um jeito de sair o mais rápido dali. E voltar pra casa, ao menos uns mil dias mais velhos.


Fabio Campos         

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