Damas, Valete, Rei

O homem que nem ao menos sabemos como se chamava, ia. Por inteiro. Impregnado da noite. Noite, estrondosamente estufada de gente. Carnaval de gente e som. Levado pelo frevo ia. Sem saber, porque, nem pra onde. Pela multidão sendo levado, ia. Ah! E como sentia! E como achava bom, pelo povo sendo levado. Entregue a praça, ao deleite. Os espaços demasiadamente tomados. Seria um sonho?  Que se danassem os sonhos! Olhos vítreos de pupilas dilatadas, e córneas ressecadas. O vento, de um frio que não dava pra sentir, no rosto soprava.

Muita gente, uma só letargia. Respiração uníssona, ofegante. Bolha de gás carbônico a pleno pulmões explodida. Do chão disseminando calor dos corpos em atrito. Segregando temperatura amena, pelo ventre vindo, excitando mamilos. Enquanto fluía fumo, de aromáticas plantas tropicais subindo a cabeça, no meio da multidão. Misturando-se a vapor dos destilados ingeridos, exalados. Pelas narinas dilatadas, captando o cheiro de fêmeas no cio, provocando êxtase. Centelhas de energia cinética, viajando pelos neurônios, entre plaquetas e hemácias, desfilando seu bloco pelas principais artérias. Embebidos de etanol, indo requisitar adrenalina, pondo a circular de volta pelas veias, indo explodir o coração. A excitação, pondo o sangue a correr. Cabelos molhados, pelos eriçados. E a sudorese das latinhas, transbordantes de fermentados, escorria pelos braços. Ensopando os pelos do peito até o púbis, formando uma pasta de maisena, suor, e cerveja, que empapava o sexo. Marchinha, refrão. A marcar o passo. Refrão marca-passo. E o homem misturado no meio do povo ululante pulava. Povo pulante ululava. E que ninguém se escandalizasse se ele num de seus saltos, conseguissem alcançar uma estrela. Porque aquele que cantava instigava a isso. E a melodia trazia magia pra praça.

Reis e rainhas, magos, bruxos, duendes. Fadas aladas, com toda pujança em seus sexos ávidos de carícias e olhares. Com suas frágeis asas desciam bem no meio dele. Ninfas semi-nuas lânguidas porem com a volúpia de quem queria fazer amor. Beijavam a borda de seus copos, deixando marcas do baton dos seus sensuais, carnudos lábios.  Impudicas mulheres da ilha de Lesbos. Insinuantes, provocantes, como a querer amarem-se entre si mesmas. Num perigoso jogo de sedução, numa instigante troca de gestos e olhares lascivos. Duas irmãs, bailando incestuoso bailado. Num roçar libidinoso de corpos. Esculturais corpos de Afrodite e Helena de Tróia. Vez ou outra seus olhos como línguas maliciosas, iam lamber nosso Édipo. Aquela altura, de sexo rijo, sonhava em possuir uma dentre aquelas lindas filhas de Medusa. Aqueles olhares dava-se a perceber que o homem e aquelas mulheres precisavam um do outro. Se haviam tornado cúmplices, por enquanto, meramente como espectadores. Admiravam-se declaradamente com os corpos. Ele não hesitaria em levar a cabo o intento de possuir uma delas, ali mesmo. Elas provocavam-no, enquanto acariciavam-se até conseguir o que esperava: que ele se pusesse a se masturbar. Ele queria que elas entendessem que o que fazia, fazia por elas. E enquanto praticava o ato de amor solitário, estendia a mão desocupada, em sua direção. Como se dissesse que desejava ardentemente possuí-las. E elas avançavam com a dança, uma dança do ventre. Odaliscas, vicejante de desejo, diante do membro viril externado. E extravasavam suas mais animalescas fantasias. Suas vulvas molhadas, os pequenos lábios inchados, em flor. Friccionavam o clitóris intumescendo-o, duplicando de tamanho. Liberando cheiro adocicado de seu sexo úmido, num preparativo para serem penetradas, sob os shorts chegavam ao orgasmo que as levavam ao cosmo.

Tudo, em tudo, no ápice do frevo, se assemelhava as orgias promovidas pelo deus Baco. Lindas ninfetas, com esdrúxulos adornos de cabeças. Cornos faiscantes, e rabos de gatinha enfeitando seus belos glúteos provocantes. Nas mãos cassetetes possantes, que lembravam bem dotados pênis de homens negros. E os introduziam entre as pernas, roçando com vigor em suas vaginas, por cima dos lingeries, almofadados de pelos pubianos.  Com seus clitóris intumescidos, e as vulvas inchadas de prazer. Frenesi, como a dança de acasalamento carecendo levar a termo seu fim derradeiro, o coito. As damas já tinham feito sua parte. O nosso Valete, aríete, indubitavelmente aguardava a oportunidade de extravasar o mais recôndito instinto presente na espécie varão, que era o de conjunção carnal. Satisfação plena dos desejos da carne. Era carnaval.

De repente, sobre o tablado a banda silenciou. O locutor fazendo um pouco de suspense fez ressoar os clarins, e rufar os tambores solenemente, para anunciar a chegada do rei. O rei Momo, e a rainha do carnaval. O rei bonachão, todo ele obesidade. Adiposidade de riso, de acenos, e traje espalhafatoso. Muito mais remetendo a figura do bobo da corte que a dum rei.  Cuja pança, ia adiante abrindo caminho pra que seu dono ocupasse o espaço conquistado. Aonde normalmente caberia pelo menos dois, só ele ia. Ladeado de linda garota, formavam o paradoxo da beleza. Ele representando o hilário, não fosse àquela a festa da permissividade da carne, ridículo seria. Ela, trajada em minúsculo biquíni, ostentava toda a feminilidade de corpo escultural, em rosto, olhos, cabelo e sorriso jovial. Concorrida, a ponto de causar inveja entre as amigas, e seus pares. A lascívia, a gulodice dos marmanjos, dedicada a ela, causava-lhe certo constrangimento. Em especial ao perceber que seu público os mancebos, despudoradamente, levavam as mãos aos seus cachos, e os sacudiam em sua direção. Como a lhes oferecer em sinal de aprovação. Brutalmente a dizer, o quanto a desejava. Daquele momento em diante estava oficialmente aberta à festa momesca. O tríduo folianesco, declarado aberto o carnaval. Para alguns era como se dissesse que daquele momento em diante, por três dias, tudo seria permitido. E o prefeito passou a caricata chave, ao rei frívolo, para que governasse sua cidade, durante os dias de folia, com muita alegria.

O nosso Valete, o folião sequioso por sexo, partiu em direção ao grupo de damas. Curiosas aguardaram, pra saber qual, ele faria sua presa. Enlaçou pela cintura a primeira que alcançou. A receptividade foi consequência. Entrega total, há de se considerar reação. Envolveram-se em carícias. Num instante beijavam-se avidamente. Pernas e coxas entrelaçadas.  A bermuda e o short, de um tecido elástico, facilitaram o caminho para os sexos se encontrarem. A multidão frenética pela volta das marchinhas caíra no frevo em puro êxtase. A lua, as estrelas, milhares delas, lá no alto, salpicando a flâmula negra do teto do mundo, testemunhava a volúpia carnal, do casal. Se amando na praça feito uns animais. Atentando, despudoradamente, contra o pudor. De repente mais alguém, além dos astros luminosos, descobriu o casal transando no meio da multidão. O prefeito, sem autoridade nada pode fazer. O rei interveio, mas de nada adiantou. O Coringa e a Dama, pela polícia rebocados no camburão. Trancafiados numa tranquila cela da Cadeia Municipal, foram continuar o que - não sendo mais como no tempo de Baco - não era mais permitido fazer em público no carnaval. 
      
Fabio Campos

Sendo Assim...

Era manhã de segunda-feira, mais uma na vida de Apolônio Neto. Assim como tantos outros iguais aquele, o dia vinha clareando, o despertador tocando. A diferença era que, dali uma semana era carnaval. Como sempre, sua companheira levantava-se primeiro. Indo cuidar das crianças pra levar a escola. Enquanto ele ficava na cama, um pouco mais, misturando pensamentos com restos de sonhos. De olhos fechados, acompanhava os movimentos dentro de casa. A porta do banheiro rangia, dizendo que carecia dum óleo nas dobradiças. Outra vez prometia a si mesmo, que mais tarde a engraxaria. O tilintar da colher, mexendo o açúcar no café. Finalmente ouviu a porta da frente se fechando. E outra vez o silêncio na casa.

Decidindo levantar-se foi ao banheiro. Aliviou a bexiga, escovou os dentes. Olhando-se no espelho, viu a barba despontando, os olhos ainda inchados de sono. Fez uma careta pra si mesmo, enquanto tentava pentear os cabelos com os dedos. Despiu-se. Tomou uma ducha fria. Cobrindo-se com um roupão foi até a cozinha, colocou café numa xícara. O jornal do dia anterior no sofá foi parar na única mão desocupada. Ligou a tevê. Enquanto passava os olhos pelas notícias, ouvia o repórter repetir justo aquilo que acabara de ler. A campainha tocou, foi ver quem era. Àquela hora da manhã? Não tinha a menor ideia de quem fosse. Era um homem de meia idade. Em muito lembrava ele próprio, altura, cor, porte físico. Seria algum parente? Trajava terno, gravata e chapéu de massa, sapatos pretos de couro, envernizado. Cumprimentando-lhe polidamente, perguntou se podia conceder-lhe alguns minutos de seu tempo. Aquela voz lhe era familiar.

Abriu o portão do jardim, permitindo que o estranho entrasse. O clarão do sol obrigado a encarar, cegava-lhe, de modo que naquele momento o estrangeiro era muito mais vulto e silhueta. Dando-lhe as costas fez com que o seguisse até a sala. Sentaram-se, ficando um de frente pro outro. O visitante finalmente perguntou-lhe: “-Não está me reconhecendo Seu Apolônio?” Pouco a pouco, acostumando à vista a luz ambiente, Seu Apolônio arregalou os olhos, e quase teve um desmaio. Ao perceber que aquele homem era idêntico a ele. Como podia alguém se parecer tanto com ele próprio! Antes que recobrasse a fala, o estranho se apresentou. Estendendo-lhe a mão disse: “-Muito prazer Seu Apolônio, eu sou a Morte. Para não causar muita estranheza, prefiro vir com as feições da própria pessoa. Assim sinto que sou mais familiar. Afinal com a cara que você já está acostumado, tudo fica mais fácil. Pois é Seu Apolônio, é chegado o seu dia de ir. O senhor teve um AVC esta madrugada. Aliás, o melhor que o senhor faz é voltar logo pro seu corpo, que está lá cama, em estado de coma.”

Seu Apolônio apressou-se em voltar até o quarto. E perplexo constatou que seu corpo jazia na cama. Em decúbito dorsal, olhos fechados, respirando de modo quase imperceptível. Parecia que dormia tranquilamente. O senhor Morte, voltou a falar. Agora permaneciam de pé. “-Seu Apolônio, sei que o senhor acha que merecia viver mais, e que se acha muito novo pra morrer. É sempre assim, nós entendemos. Mas eu venho apenas cumprir minha obrigação. No entanto tenho uma proposta, e não tem aquela de pegar ou largar, só tem mesmo que pegar. Não há outra opção. Vou levá-lo pra um lugar onde o senhor passará por um teste. Se conseguir se sair bem, sua situação será revista. Entenda que esta situação só é permitida a bem poucos: os que ficam em coma. Se ligue, que muitos nem uma oportunidade assim lhes são permitida, simplesmente morreram e pronto. Portanto sinta-se um privilegiado.”

E de repente, lá estava ele num vale inóspito. O sol era uma bola no horizonte, que refletia uma luz tênue, de um róseo quase lilás, sem o calor do sol que aquele homem sertanejo estava acostumado a sentir. Havia outras coisas estranhas que Seu Apolônio ia aos poucos descobrindo. As nuvens pareciam ter descido do céu, e pairavam a poucos centímetros do chão, formando uma neblina fria, que exalava um cheiro de flor de cemitério. O solo era arenoso, como nos desertos, o que certamente dificultava o andar. Aqui e acolá havia espécies de oásis, rodeados de plantas exóticas, e os olhos d’água assemelhavam-se a pântanos, que borbulhavam como gigantescos caldeirões de bruxa.  E Seu Apolônio se deu conta que se encontrava só, o senhor Morte se fora. Andando a esmo, nosso personagem chegou a um lugar, onde havia um pedestal de mármore, delimitado por oito colunas cilíndricas. Quatro de cada lado. Um altar iluminado por duas piras de fogo laterais. Pra chegar até o altar, sete degraus tinham que ser vencidos.  Chegando ao alto, Seu Apolônio percebeu um livro fechado, posto ao centro da pedra de mármore. Ao tocar o livro, ouviu-se uma voz de trovão que dizia: “-Apolônio! A jornada vai começar, esperamos que consiga superar os obstáculos. Reviverás fases de sua existência, e passará por várias provas correspondentes a determinadas  fases de sua vida.”

Uma imensa cortina foi descerrada par além do altar, e um portal se distendia adiante dos seus olhos. No umbral do portal uma faixa anunciava: “Aliança de Cristal” e Apolônio viu se descortinar a sua frente, o tempo de sua juventude. Tornado novamente num rapaz, de volta ao ambiente do lar paterno. À vida familiar, de quando tinha apenas quinze anos de idade, e revivia toda a rebeldia com relação aos seus pais. De como os fazia angustiar-se por sua causa. Isso porque jovem sempre pensa diferente dos mais velhos, e assim ele procedia. Havia um carnaval pra curtir, e ele curtiu. E voltaria pra casa embriagado, e seus pais, um casal de idosos, sofriam por conta dos desatinos do jovem filho. E a cena repetiu-se, o pai cobrando-lhe responsabilidade de homem feito. E outra vez uma tora de madeira estava bem ali ao seu alcance, com toda cólera que tinha, ele a atirou contra seu próprio pai. E tudo se repetiu exatamente como antes.

De volta ao vale tenebroso, ele andou muito. De tanto andar, se cansou, e teve sono, e acabou dormindo. E quando acordou já tinha pouco mais de dez anos adiante daquela idade. E vislumbrou outro portal, e outra descrição havia no umbral; “Aliança de Alexandrita”. E por aquela época de sua vida, conhecera uma moça a quem depositava muita afeição. Porem seus pais não via naquela, a pessoa adequada para sua futura esposa. Outra vez ele desconsiderou os sentimentos, e opinião dos pais. E levou adiante seus projetos, e contraiu matrimônio com aquela mulher, em desagravo aos sentimentos de seus pais. Não viveriam muito tempo e a discórdia, e a traição faria morada junto com eles. E aquela mulher contraiu moléstia severa que a levou à sepultura.

Novamente Apolônio se encontrava no pântano, e outra vez caiu em sono profundo, e tornou acordar. Desta feita diante de outro portal, a faixa agora informava; “Aliança de Malaquita”. E não havia muitos anos separando aquela época, da que recebeu o senhor Morte em sua residência. Seu pai já havia falecido. Somente mãe, Seu Apolônio tinha agora. Havia se ajuntado a outra companheira. E não consentindo a si mesmo capacidade de dispensar-lhes cuidados, pois a senilidade da sua genitora muito o incomodava. Ele simplesmente a descartou. Buscou todos os seus pertences, encerou numa mala, e levou-a pra um Asilo de Idosos. Nem um pouco sua consciência o acusou de nada, achava que aquele era o procedimento mais abalizado.

De volta, Seu Apolônio foi se encontrar a um leito de hospital onde jazia em coma. Já ia alta a noite do domingo de carnaval. Sozinha a esposa, entre um e outro cochilo, tentava velar por ele. Os sons da orquestra tocando frevo na praça, pelo vento sendo levado. Como em um sonho longínquo, além dos telhados das casas, das ruas, e dos frios corredores do ambulatório. O aparelho que acusava os batimentos cardíacos, ligado ao nosso enfermo. E que até então subia e descia, dando bipes alternados, passou a apitar ininterruptamente. Anunciando pra ninguém, que Seu Apolônio definitivamente havia passado dessa para outra.


Fabio Campos                

Carnal Vali

Era manhã de carnaval. O primeiro dia da semana. O segundo de folia. Ainda de ressaca, a rua aos poucos acordava. Alegorias nos postes de energia elétrica balançavam ao vento. Alegres espantalhos arremedavam os frívolos trejeitos dos foliões. O calçamento, sisudo de pedra o ano inteiro, ainda agora retinha o pó do mela-mela, os corantes coloridos, dos lança-perfumes. Confetes e serpentinas se enroscando nos fios, caiam e desciam pelas sarjetas. Lantejoulas e purpurina que se haviam largado das fantasias requisitavam os raios de sol pra continuar refletindo seu brilho colorido.

Na praça, um tablado servia de palco. Capitaneado por negras caixas de som amplificadas. Em posição de sentido, aguardavam a bandinha do Mestre Bulhões. Os borboleteantes cavaletes de partitura com as asas fechadas, dormiam. Os inseparáveis casais, magérrimos cambitos dos taróis e caixas, e rechonchudas baquetas dos bombos, escondidos descansavam. Cuidadosamente guardados em esquifes luxuosamente forrados de seda e veludo azul, os metais dormiam o sono dos justos.  Não seria necessário muito esforço, pra ouvir retinindo nos tímpanos recorrentes, os acordes dos trompetes e tubas, na cadenciada harmonia da festa de Zé Pereira e Juvenal. Aquilo permaneceria por longos dias.

"A Praça Castro Alves é do povo
Como o céu e do avião
Um frevo novo,
Eu peço um frevo novo
Todo mundo na praça
Muita gente sem graça no salão"

Sobrevoada pelo condor, a praça agora era solidão. Em raios de sol, se acordando da ilusão. Aqui e acolá um folião, arriado em baixo das marquises das lojas. Rodrigo amanhecera na rua. Pondo-se sentado, talvez achasse interessante o dia vir lhe acordar quase sem cobrar nada. Apenas dizendo-lhe: “-Sou delírio. Mas não se importe.” Daí se deu conta que havia ainda três dias pra sonhar. Esquecer de não lembrar, que uma vida melancolicamente lhe aguardava, pra quando ele quisesse voltar. Carmem, infelizmente assim não entendia.  Do jeito que se encontrava, com a fantasia de pirata semi destruída, mais parecia um náufrago. Como que sobrevivido numa ilha de delícias e maravilhas. 

“Eu sou a filha da chiquita bacana 
nunca entro em cana
porque sou família demais
na minha ilha que maravilha”

Ajuntando forças, tirando donde não tinha, Rodrigo resolveu ir pra casa. As coisas não estavam bem definidas. E como era complicado tentar entender o que não era entendível. Principalmente, quando não era pra entender. Se pudesse, pararia de pensar, fosse lá o que fosse, pararia. Mas isso ele não podia. E vinham as lembranças de Carmem, do dia que a conhecera ainda menina moça. E a conhecera num dia de carnaval. Já ia descendo a ladeira da Rua Zé Amorim, quando ouviu balburdia. Som ululante de gente e instrumentos musicais. Com destaque pra sanfona e o triangulo. Um bloco vinha pela Rua Tertuliano, resolveu esperar. Sentou-se na calçada. Era o bloco dos cangaceiros, Paulo Preto, lá do Bebedouro, de cabra da caatinga trajado, ao ver o amigo, chamou-o para o acompanhar.

"Acorda Maria bonita
Acorda vem fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já está de pé”

Uma garrafa de cachaça, passada de mão em mão, foi parar na sua. Entornou goela abaixo uma quantidade considerável do conteúdo. Teve ânsia de vômito. Instintivamente encostou o dorso da mão sobre a boca, como se aquele gesto pudesse evitar o pior. Tentou se concentrar na marcha, na música, no umbu que alguém lhe deu. O cheiro forte de cana nauseante. Estava lançado o desafio, lutar pra que aquele líquido, por seu organismo rejeitado, dentro de si permanecesse. A batalha teria sido vencida. Alívio. O bloco chegou à frente da igreja Matriz, se dirigiram pro Cassino de Seu Lira. As portas estavam fechadas. Porém havia pessoas lá dentro. Foi providenciado para que apenas os componentes do bloco, e seus acompanhantes pudessem entrar. Permaneceriam bebendo, e bebendo, e cantando e tocando até o cair da noite. E na praça do povo, do avião e do condor, se fez mais uma noite de frevo.

“Você pensa que cachaça é água
Cachaça não é água não
Cachaça vem do alambique
E água vem do ribeirão”

Mais uma vez, Rodrigo foi se encontrar sozinho. Andar trôpego pela rua. O som da banda, as pessoas. Mais pareciam personagens de um filme avariado. Por um segundo fitou o imenso túnel de meter medo. O céu impregnado de cor que não é cor. Porém naquele instante não havia medo. Nada sentia. O que tinha mesmo era impressão de estar numa sala de projeção, onde tudo estava irremediavelmente desmantelado. O som falho, longínquo, por conta de um soluço involuntário entrecortado. E ia Rodrigo, flutuando no meio do povo. Viu Maria Eduarda, amiga de Carmem. Dudinha assim chamada carinhosamente por todos, era muito bem feita. Trajava uma diminuta saia, pondo a mostra toda exuberância de pernas bem torneadas. E blusa, sumariamente decotada, ofertava aos olhares gulosos, farto par de seios. A maquiagem espalhafatosa realçava seu rosto de mulata. Ela viu Rodrigo primeiro. Quis se desviar. Porém o bêbado já tinha lhe visto, partido em seu encalço, pegou-a pelo braço. Perguntou, se a moça tinha visto Carmem, a garota respondeu negativamente. Saíram conversando até chegarem ao beco do oitão da igreja de São Sebastião.

“Se você fosse sincera
Ô ô ô ô Aurora
Veja só que bom que era
Ô ô ô ô Aurora

De repente já estavam na beira do Panema. Ele acendeu um cigarro tosco, branco, amassado. E passaram a desfrutar os dois, das delícias proporcionadas pela diamba. Ainda nem mesmo haviam exalado a fumaça do derradeiro trago, ele segurou forte em sua coxa. Ela tentou se desvencilhar. Ele a imobilizou segurando nos dois braços. Outra tentativa de resistir. Porém o másculo porte físico dava-lhe vantagem. Com um puxão rápido e brutal, despiu-lhe a calcinha. Com movimentos de pernas ela continuou resistindo. O toque de seu sexo quente, coberto de pelos pubianos, roçando no pênis, só serviu para deixá-lo ainda mais excitado. Metendo-se entre suas pernas penetrou-a com a força de um animal. Gritos e choro abafados acabaram confundidos com a bagunça de bêbados que desciam pro rio.

“Ô quebra, quebra gabiroba
Eu quero ver quebrar
Ô quebra lá que eu quebro cá
Quero ver quebrar”

Cantavam alegremente os meninos, seguindo os mascarados, no meio da Rua de Zé Quirino. Era a manhã do terceiro dia de carnaval. Um condor sobrevoava o céu ali. Levantando o focinho, um cachorro de olhar preocupado, acompanhava atentamente o voo da ave de rapina. De repente o cão resolveu descer pro Panema. Se fosse um dia qualquer, também os meninos já teriam tomados a direção do rio. E seriam os primeiros, a encontrar o corpo inerte de uma moça, uma linda mulata, nua. Envolta numa poça de sangue. Degolada. Morta.


Fabio Campos  

O Enigma



“Uma lenda sobre o Surgimento de Santana do Ipanema”

Era uma vez, três irmãos, Frederico, Lutero e Pedro. Três donatários de terras remanescentes, que se estendiam desde a serra do Ororubá na capitania de Pernambuco, até a freguesia de Porto da Folha, sob a égide de Nossa Senhora da Conceição, as margens do rio São Francisco. Pois bem, esses impávidos desbravadores viviam conforme as vicissitudes de que suas terras lhes propiciavam. Frederico, pecuarista, tirava o máximo de proveito da região de clima ameno, no alto sertão, onde assentou moradia. Lutero, agricultor, vivia alternadamente períodos de fartura e escassez, devido à região que ocupava o médio sertão. E Pedro a despeito de ocupar as margens do “Velho Chico”, era pescador, vivia da pesca.

Frederico praticamente nascera encima dum cavalo, sua mãe, mesmo na sua gravidez, já perto do menino vir ao mundo vivia nas caatingas do sertão, na lida com os bovinos. Mulher destemida, laçava, derrubava e ferrava boi no mato. Separava as novilhas que já estava em época de pegar cria. E conhecia as características dos garrotes com capacidade de cobertura. A vaca boa de leite, sabia que não era a de carcaça cheia, volumosa. Vaquinhas leiteiras eram as magrelas, pois tudo que comiam era pra transformar no precioso líquido lácteo. Touro era tratado no capricho, garantia de boas coberturas. Rebanho bom era rebanho manso, que bovinamente pastava no cercado. Ora contido no curral, ora na canga do carro gemedor, ou ainda sulcando a terra no bico do arado Tudo isso Seu Frederico aprendeu na vivência com os servis bubalinos. Se quiser saber quem é que acorda o sertão pergunte ao vaqueiro. Quem pensar que são as aves, a pipilar, ou o galo com seu despertador có-có-ri-có, ou mesmo o bezerro mugindo a desmama, no curral, está enganado, quem acorda o sertão é o vaqueiro. E a boquinha da noite, todos se reuniam no alpendre, e rezavam uma reza, que pedia a Deus proteção, para os bois de arado, que não houvesse ali cavalo desertado, nem naquela casa morresse mulher de parto. Um dia Seu Frederico teve um sonho, muito parecido com aquele que o faraó teve lá no Egito, narrado nas escritas sagradas. Seu Frederico sonhou com sete vacas gordas, e sete vacas magras, e sete espigas de milho. Só que, ao invés das vacas magras engolirem as gordas, aparecia um touro brabo, dez vezes maior que as catorze vacas, e investia contra eles. Bem cedinho, no raiar do dia, foi até o curral, e algo incrível ocorreu, um dos bois, o mais velho, começou a falar com Seu Frederico, com sua voz de boi velho e cansado, ele disse bem assim: “-Seu Frederico, eu sei o significado do seu sonho, porém só contarei se o senhor prometer me soltar na mata, pra que possa viver livre o resto dos meus dias.” Seu Frederico concordou. Então ele continuou:  “-As sete vacas gordas que o senhor viu no sonho é o senhor com sua propriedade. As vacas magras é seu irmão Pedro pescador, com suas posses. As sete espigas, o seu outro irmão Lutero, o agricultor. O touro brabo que investe contra vocês é o poder do império, os três precisam se unir para não perderem o que tem.”

Lutero o agricultor, puxou a seu velho pai, amava a terra. Desde pequeno acompanhava a lida do campo, tinha consigo ensinamentos conservados do velho patriarca da família, que lhes ensinara os preceitos do Padre Cícero do Juazeiro, que dizia: “Não derrube o mato, nem mesmo um só pé de pau; Não toque fogo no roçado, nem na caatinga; não cace mais, deixem os bichos viver; não crie boi nem bode solto, faça cercado; não plante de serra à cima, nem faça roçado em ladeira muito em pé; deixe o mato protegendo a terra; faça cisterna no oitão de sua casa para guardar água da chuva; represe os rios de cem em cem metros, ainda que seja com pedra solta; plante cada dia, pelo menos um pé de algaroba, caju, sabiá, ou outra árvore qualquer; aprenda a tirar proveito das plantas da caatinga, como maniçoba, favela e jurema; tudo isso pode lhe ajudar a conviver com a seca.” E procurava seguir à risca o decálogo Ciceriano, sempre, sempre que podia. Bem como outras práticas que só quem vive vida roceira conhece. Controlar o registro da máquina de plantar pra deixar cair a quantidade certa de grãos de milho e feijão, por cova. No plantio da palma fazer com que a raquete ficasse com a face voltada pra sol nascente de um lado, e poente do outro. Regular bem o caititu pra descascar a mandioca. Repreender os pequenos quando descobriam entre a ramagem uma melancia ou abóbora, pra não apontarem com o indicador, senão os frutos paravam de crescer. E como gostaria de entender porque um pé de abacate só dava frutos se estivesse 'vendo' outro pé. Seu Lutero era homem sensato, fazia cilagem pra enfrentar os períodos de estiagem. Armazenava grãos nos vasos, e no dia da armazenagem, sabe-se lá porque, não podia ter mulher 'naqueles dias', ajuntando os grãos. E temente a Deus destinava a paróquia de sua igreja o dízimo de sua colheita. E quando era de tardezinha todos se reuniam embaixo do telhado, os homens tiravam os chapéus da cabeça e agradeciam a Deus, os frutos da terra. Um dia, Seu Lutero foi olhar umas armadilhas que colocara pra pegar preás, e encontrou uma nambu, enroscada na rede. Algo incrível ocorreu, a pequena perdiz, começou a falar com Seu Lutero. Disse-lhe que se ele a soltasse contaria um segredo, o camponês concordou. E a ave falou da ameaça que pairava sobre os três irmãos, que ele procurasse ir ao encontro dos outros. E ele assim procedeu.

Pedro tinha uma particularidade, só ia pescar, depois de consultar em que fase se encontrava a lua. Era ela, a mãe lua, que ditava os dias bons pra pesca. Fosse com rede de arrasto, que pegava peixe graúdo, Ou que dias de tarrafa, que trazia peixe miúdo. Os dias do jereré traziam camarão, e pitu. Do terreiro de sua casa dava pra ver o rio. O amanhecer ali era  algo divino, contemplar as águas se acordando vindo encher os olhos. O sol se espreguiçando, lavando o rosto, se olhando no magnífico espelho d’água. E o rio amava o homem, que amava o rio. E era um amancebo tão sincero que se despiam um para o outro, sem pudores. E como se amavam. Tanto, a ponto de se sentirem um só, rio e homem. Um dia, melhor dizendo num cair de tarde, Pedro estava pescando com vara, sentado na barranca. E fisgou um peixe enorme, que de tão grande quase arrebenta a linha. Ao trazê-lo pra si, o peixe começou a falar, pedindo que se o pescador o soltasse lhe revelaria um segredo. Teria lembrado a Pedro um sonho em que ele, feito o profeta Jonas da Bíblia, fora engolido por uma baleia. Orientou que procurasse seus outros dois irmãos, e assim iria entender o que significava. Segredo revelado, o peixe foi solto.

E eis que os três irmãos se encontraram. De comum acordo decidiram ir à presença do rei, para saber se realmente havia interesse da parte daquele, de retomar suas terras, ou que outros planos o monarca arquitetava para com os três irmãos. Em sua presença revelariam os sonhos, os casos dos animais falantes, os segredos revelados. Na manhã do dia 02 de outubro de 1789, no porto de São Vicente, da capitania de igual nome, Frederico, Lutero e Pedro, decididos, viajaram em busca de se encontrar com o rei. A bordo do navio “Albatroz” sob o comando do almirante Francisco de Paula partiram em direção a Europa, foram ter com o rei que se encontrava numa reunião importante na França, dias depois da revolução.

Diante dos três, na presença de toda a corte, o rei disse o seguinte: “-Realmente, eu estava pretendendo retomar as terras devolutas daquela sesmaria. Por considerar que nenhum retorno trouxe até então, pra Coroa. Porém tenho uma proposta, farei a cada um de vocês uma pergunta se responderem acertadamente, voltarei atrás com meu plano, deixando tudo como está. Caso todos errarem, já sabem, levarei avante meu plano.” Pedro adiantando-se confabulou “-Digníssimo rei! Na minha humilde opinião, acho justo que caso, pelo menos um de nós acertemos uma de suas adivinhas, sejamos também merecedores de inquirir também o rei num enigma. Concorda?” O rei achou sensato. E tudo ia sendo transcrito pelos escribas. E o rei perguntou ao primeiro, dos irmãos: “-Que mulher sendo pequena na terra é grande no céu?” Frederico respondeu: “-Maria, a mãe de Jesus Cristo!”. “-Errou!” disse o rei: “-Ana, seria a resposta certa. Ana, no céu e profetisa, na terra por conta de um acento, vira anã!” “-Que montaria é digna de um rei?” foi a pergunta dirigida a Lutero. “-O cavalo!” respondeu. “-Errou também. O jumento, foi a montaria que o rei dos reis, Jesus Cristo, usou quando entrou em Jerusalém!” Finalmente a pergunta a Pedro: “-Responda-me: O que é, que mesmo sem sair do lugar, pode nos levar a lugares distantes?” E Pedro respondeu: “-Ó nobre monarca! Achas que irei responder o pensamento. Mas a resposta certa é o rio.” “-Oh! Muito bem!” disse o rei. “-Afinal há alguém inteligente aqui! Pois bem meu rapaz agora chegou sua vez, pode fazer a sua pergunta!” Pedro então disse: “-Ilustríssimo imperador, quero primeiro dizer que esse enigma encerra uma terrível maldição, caso vossa alteza não acerte se transformará imediatamente num bicho!” O rei ficou aflito, no entanto não podia voltar a trás. E Pedro perguntou: “-O que é, o que é seu rei, que lhe pertence porém os outros usam mais que vossa senhoria?” O rei pensou, pensou, e finalmente disse: “-Ora! É o meu palácio!” Pedro esclareceu: “Não majestade! É o seu próprio nome.” Imediatamente o rei, diante de todos se transformou num horrendo lobisomem, que fugiu dali pra montanhas. E Pedro daquele dia em diante, por sua arte em decifrar enigmas, ficou conhecido por Pedro Malasarte. Os irmãos retornaram a sua terra, decididos a prosperar. Fundariam uma vila que teria Senhora Sant’Ana como padroeira, um rio remanescente, e o jumento seria homenageado em praça pública.

Fabio Campos