Sendo Assim...

Era manhã de segunda-feira, mais uma na vida de Apolônio Neto. Assim como tantos outros iguais aquele, o dia vinha clareando, o despertador tocando. A diferença era que, dali uma semana era carnaval. Como sempre, sua companheira levantava-se primeiro. Indo cuidar das crianças pra levar a escola. Enquanto ele ficava na cama, um pouco mais, misturando pensamentos com restos de sonhos. De olhos fechados, acompanhava os movimentos dentro de casa. A porta do banheiro rangia, dizendo que carecia dum óleo nas dobradiças. Outra vez prometia a si mesmo, que mais tarde a engraxaria. O tilintar da colher, mexendo o açúcar no café. Finalmente ouviu a porta da frente se fechando. E outra vez o silêncio na casa.

Decidindo levantar-se foi ao banheiro. Aliviou a bexiga, escovou os dentes. Olhando-se no espelho, viu a barba despontando, os olhos ainda inchados de sono. Fez uma careta pra si mesmo, enquanto tentava pentear os cabelos com os dedos. Despiu-se. Tomou uma ducha fria. Cobrindo-se com um roupão foi até a cozinha, colocou café numa xícara. O jornal do dia anterior no sofá foi parar na única mão desocupada. Ligou a tevê. Enquanto passava os olhos pelas notícias, ouvia o repórter repetir justo aquilo que acabara de ler. A campainha tocou, foi ver quem era. Àquela hora da manhã? Não tinha a menor ideia de quem fosse. Era um homem de meia idade. Em muito lembrava ele próprio, altura, cor, porte físico. Seria algum parente? Trajava terno, gravata e chapéu de massa, sapatos pretos de couro, envernizado. Cumprimentando-lhe polidamente, perguntou se podia conceder-lhe alguns minutos de seu tempo. Aquela voz lhe era familiar.

Abriu o portão do jardim, permitindo que o estranho entrasse. O clarão do sol obrigado a encarar, cegava-lhe, de modo que naquele momento o estrangeiro era muito mais vulto e silhueta. Dando-lhe as costas fez com que o seguisse até a sala. Sentaram-se, ficando um de frente pro outro. O visitante finalmente perguntou-lhe: “-Não está me reconhecendo Seu Apolônio?” Pouco a pouco, acostumando à vista a luz ambiente, Seu Apolônio arregalou os olhos, e quase teve um desmaio. Ao perceber que aquele homem era idêntico a ele. Como podia alguém se parecer tanto com ele próprio! Antes que recobrasse a fala, o estranho se apresentou. Estendendo-lhe a mão disse: “-Muito prazer Seu Apolônio, eu sou a Morte. Para não causar muita estranheza, prefiro vir com as feições da própria pessoa. Assim sinto que sou mais familiar. Afinal com a cara que você já está acostumado, tudo fica mais fácil. Pois é Seu Apolônio, é chegado o seu dia de ir. O senhor teve um AVC esta madrugada. Aliás, o melhor que o senhor faz é voltar logo pro seu corpo, que está lá cama, em estado de coma.”

Seu Apolônio apressou-se em voltar até o quarto. E perplexo constatou que seu corpo jazia na cama. Em decúbito dorsal, olhos fechados, respirando de modo quase imperceptível. Parecia que dormia tranquilamente. O senhor Morte, voltou a falar. Agora permaneciam de pé. “-Seu Apolônio, sei que o senhor acha que merecia viver mais, e que se acha muito novo pra morrer. É sempre assim, nós entendemos. Mas eu venho apenas cumprir minha obrigação. No entanto tenho uma proposta, e não tem aquela de pegar ou largar, só tem mesmo que pegar. Não há outra opção. Vou levá-lo pra um lugar onde o senhor passará por um teste. Se conseguir se sair bem, sua situação será revista. Entenda que esta situação só é permitida a bem poucos: os que ficam em coma. Se ligue, que muitos nem uma oportunidade assim lhes são permitida, simplesmente morreram e pronto. Portanto sinta-se um privilegiado.”

E de repente, lá estava ele num vale inóspito. O sol era uma bola no horizonte, que refletia uma luz tênue, de um róseo quase lilás, sem o calor do sol que aquele homem sertanejo estava acostumado a sentir. Havia outras coisas estranhas que Seu Apolônio ia aos poucos descobrindo. As nuvens pareciam ter descido do céu, e pairavam a poucos centímetros do chão, formando uma neblina fria, que exalava um cheiro de flor de cemitério. O solo era arenoso, como nos desertos, o que certamente dificultava o andar. Aqui e acolá havia espécies de oásis, rodeados de plantas exóticas, e os olhos d’água assemelhavam-se a pântanos, que borbulhavam como gigantescos caldeirões de bruxa.  E Seu Apolônio se deu conta que se encontrava só, o senhor Morte se fora. Andando a esmo, nosso personagem chegou a um lugar, onde havia um pedestal de mármore, delimitado por oito colunas cilíndricas. Quatro de cada lado. Um altar iluminado por duas piras de fogo laterais. Pra chegar até o altar, sete degraus tinham que ser vencidos.  Chegando ao alto, Seu Apolônio percebeu um livro fechado, posto ao centro da pedra de mármore. Ao tocar o livro, ouviu-se uma voz de trovão que dizia: “-Apolônio! A jornada vai começar, esperamos que consiga superar os obstáculos. Reviverás fases de sua existência, e passará por várias provas correspondentes a determinadas  fases de sua vida.”

Uma imensa cortina foi descerrada par além do altar, e um portal se distendia adiante dos seus olhos. No umbral do portal uma faixa anunciava: “Aliança de Cristal” e Apolônio viu se descortinar a sua frente, o tempo de sua juventude. Tornado novamente num rapaz, de volta ao ambiente do lar paterno. À vida familiar, de quando tinha apenas quinze anos de idade, e revivia toda a rebeldia com relação aos seus pais. De como os fazia angustiar-se por sua causa. Isso porque jovem sempre pensa diferente dos mais velhos, e assim ele procedia. Havia um carnaval pra curtir, e ele curtiu. E voltaria pra casa embriagado, e seus pais, um casal de idosos, sofriam por conta dos desatinos do jovem filho. E a cena repetiu-se, o pai cobrando-lhe responsabilidade de homem feito. E outra vez uma tora de madeira estava bem ali ao seu alcance, com toda cólera que tinha, ele a atirou contra seu próprio pai. E tudo se repetiu exatamente como antes.

De volta ao vale tenebroso, ele andou muito. De tanto andar, se cansou, e teve sono, e acabou dormindo. E quando acordou já tinha pouco mais de dez anos adiante daquela idade. E vislumbrou outro portal, e outra descrição havia no umbral; “Aliança de Alexandrita”. E por aquela época de sua vida, conhecera uma moça a quem depositava muita afeição. Porem seus pais não via naquela, a pessoa adequada para sua futura esposa. Outra vez ele desconsiderou os sentimentos, e opinião dos pais. E levou adiante seus projetos, e contraiu matrimônio com aquela mulher, em desagravo aos sentimentos de seus pais. Não viveriam muito tempo e a discórdia, e a traição faria morada junto com eles. E aquela mulher contraiu moléstia severa que a levou à sepultura.

Novamente Apolônio se encontrava no pântano, e outra vez caiu em sono profundo, e tornou acordar. Desta feita diante de outro portal, a faixa agora informava; “Aliança de Malaquita”. E não havia muitos anos separando aquela época, da que recebeu o senhor Morte em sua residência. Seu pai já havia falecido. Somente mãe, Seu Apolônio tinha agora. Havia se ajuntado a outra companheira. E não consentindo a si mesmo capacidade de dispensar-lhes cuidados, pois a senilidade da sua genitora muito o incomodava. Ele simplesmente a descartou. Buscou todos os seus pertences, encerou numa mala, e levou-a pra um Asilo de Idosos. Nem um pouco sua consciência o acusou de nada, achava que aquele era o procedimento mais abalizado.

De volta, Seu Apolônio foi se encontrar a um leito de hospital onde jazia em coma. Já ia alta a noite do domingo de carnaval. Sozinha a esposa, entre um e outro cochilo, tentava velar por ele. Os sons da orquestra tocando frevo na praça, pelo vento sendo levado. Como em um sonho longínquo, além dos telhados das casas, das ruas, e dos frios corredores do ambulatório. O aparelho que acusava os batimentos cardíacos, ligado ao nosso enfermo. E que até então subia e descia, dando bipes alternados, passou a apitar ininterruptamente. Anunciando pra ninguém, que Seu Apolônio definitivamente havia passado dessa para outra.


Fabio Campos                

2 comentários:

  1. ola fabio campos quero te fazer uma proposta para nos fazermos uma parseria de voçe colocar um banner do meu site no seu bloger e eu colocar um banner do seu no meu !

    ResponderExcluir
  2. Olá Ismael! Gostaria de conversar contigo através de e-mail ou contato telefônico, meu e-mail é fabiosoacam@yahoo.com Daí trataremos da sua proposta. Ok? meu cél Tim é 9607-9099.

    ResponderExcluir