Dá-me de Beber!



Igreja matriz de Senhora Santana. Dali a alguns dias viveria a páscoa. Um pequeno andaime no interior indicava algum tipo de reforma. Diversas latas de tintas, esmaltes, pincéis num copo. Um pintor sentado sobre um tablado. De costas para a nave, concentrado no seu trabalho, pintava. Um céu intenso de luz, de um sol cádmio. Palmeiras, damascos, pinheirais diziam até onde iam os horizontes. Um lajedo compunha o relevo. Ciprestes afloravam do chão, somente aonde permitiam entre as pedras do solo. Os olhos do observador requisitados pelas duas figuras humana da cena, Jesus ao lado de uma mulher. Semblante sereno, sentado numa pedra. O filho de Deus tinha a face voltada para a madona, que se encontrava sentada no chão, apoiada numa cânfora. O epicentro da paisagem, um poço que havia ali.


Jerusalém era aqui. Em Santana do Ipanema, tudo se parecia com a terra santa. Nas suas ruas estreitas, no sobe e desce dos becos escuros. Na tendas dos mercadores. Nos trajes coloridos sob o sol, no clima semi-árido. Na escassez de chuva, na vegetação rústica, adaptada a esta temperatura. Nos chamados dias grandes, os sertanejos seguiam em romaria, pelos sertões. Em penitência por expiação dos pecados, peregrinavam a lugares altos, aonde houvesse um cruzeiro, rezando a ladainha, o santo ofício, a via sacra. A cada estação, as súplicas por misericórdia. Pedidos de perdão a Deus pelas atrocidades da humanidade inteira. Deles que carregam ex-votos, e deixavam-nos na primeira capela que entrassem. Haveria quem carregasse por todo o percurso uma pesada pedra na cabeça, isso porque um dia uma graça teria sido alcançada, ou um pedido havia sido feito e esperava-se o benefício divino. Mães que vestiam seus filhos pequenos com trajes de frade franciscano. Imagens do padre Cícero Romão Batista, e do Frei Damião de Bozzano conduzidas sob sobrinhas coloridas. Um homem que padecera de um mal por muito tempo. Uma vez curado, cumpria sua promessa, uma cruz de tamanho e peso da de Cristo carregaria até o Juazeiro do Cariri. Fitinhas coloridas presas ao madeiro, iam sendo colocadas, por aqueles que almejavam alcançar uma graça, por onde o cortejo ia passando. 

Verão bravo e ia o vento assobiando na caatinga, imitando o canto da fogo-apagô. Lá no alto o Cruzeiro, remetendo-nos ao Gólgota, lugar da caveira, ali ocorreria à encenação do calvário. Os vendilhões na porta da igreja e do mercado comercializavam os produtos mais procurados na quaresma. As iguarias para o feitio da ceia de páscoa, expostos no leito da rua. Coco seco pro preparo do peixe. Os compradores experientes com uma moeda batiam na casca dura, no tilintar do metal, descobriam se o produto estaria saudável. Rosários de coco ouriciri. A umbuzada feita do umbu, a oliveira do sertão. O olfato ofendido, e a presença de muitos cachorros vira-latas acusavam a proximidade das barracas de peixes. A balbúrdia, a barganha, os ânimos exaltados. O facão, e a peixeira toque-toque aparando barbatanas, extirpando vísceras. Pilhas de jacas e de melancias, frutas de polpas fartas, pra depois do largo almoço da semana santa. O homem do campo sabedor da necessidade do jejum abastecia-se previamente de frutos e iguarias típicos da estação. Nos chamados dias grandes, vivenciava-se os preceitos do Livro de Levítico. Os que não observavam os segmentos religiosos, amplamente arraigados, era taxado de Judas. A mulher deveria evitar as relações sexuais, antes, durante, e depois da menstruação. O homem que deitasse com meretriz, ou que houvesse contraído gonorreia era considerado impuro, e jamais deveriam aproximar-se do altar, até que estivesse limpo. As crianças de até um ano deveriam ser levadas pra serem circuncidadas. As meninas em idade púbere, mantidas dentro de casa. Não podiam banhar os cabelos, nem aparar os pêlos. Ou ainda, usar cosméticos, nos lábios e unhas, ou ornar a cabeça com diademas; nem usar colares e brincos nas orelhas. Afazeres domésticos, só depois do por do sol, a portas fechadas. A poeira do piso deveria ser varrida para detrás da porta de entrada, nunca jogada fora. Os animais não exerceriam serviço algum no campo. O leite ordenhado da vacaria deveria ser distribuído entre os pobres da vizinhança. O cavalo, considerado um animal impuro, podia ser usado como transporte, apenas em caso de necessidade.


Santana do Ipanema, assim como a Samaria nasceu de doze tribos, que se desenvolveram a partir de três necessidades básicas: os mananciais de água, o cultivo da terra e a atividade pastoril. Seis delas, Pão de Açúcar, Olho d’Água das Flores, Poço das Trincheiras, Riacho Grande, Dois Riachos e Santana do Ipanema, se iniciariam às margens de cursos d’água. São José da Tapera, Olivença e Ouro Branco, a partir do cultivo de feijão, milho e algodão. Carneiros, Maravilha e Palestina, da criação de gado bovino, muares e caprinos. Apesar de unificadas, as 12 acabariam um dia tendo que se separar. Três dessas tribos, possuem evidências de serem herança da tribo de Judá(a.C.): A cidade surgida as margens do rio Ipanema, sobre a égide de Senhora Santa Ana, a avó de Jesus Cristo; a cidade de Tapera, teria origem no pai terreno do Filho de Deus, São José. E Dois Riachos, ainda hoje sob o auspício da Mãe Santíssima, Nossa Senhora da Saúde. A presença de Jesus, por estas paragens, estaria evidenciada nesta narrativa.

“Assim, chegou a uma cidade de Samaria, chamada Sicar, perto das terras que Jacó dera a seu filho José. Havia ali o poço de Jacó. Jesus, cansado da viagem, sentou-se à beira do poço. Isto se deu por volta do meio-dia. Nisso veio uma mulher samaritana tirar água. Disse-lhe Jesus: "Dê-me um pouco de água". (Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida.) A mulher samaritana lhe perguntou: "Como o senhor, sendo judeu, pede a mim, uma samaritana, água para beber?" (Pois os judeus não se dão bem com os samaritanos.) Jesus lhe respondeu: "Se você conhecesse o dom de Deus e quem está pedindo água, você lhe teria pedido e dele receberia água viva". Disse a mulher: "O senhor não tem com que tirar água, e o poço é fundo. Onde pode conseguir essa água viva? Acaso o senhor é maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço, do qual ele mesmo bebeu, bem como seus filhos e seu gado?" Jesus respondeu: "Quem beber desta água terá sede outra vez, mas quem beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede. Ao contrário a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna". A mulher lhe disse: "Senhor, dê-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem precise voltar aqui para tirar água". Jo 4, 5-15.”







































Anastácia

Nem seria preciso dizer, o quanto é bom ouvir história contada pela mãe da gente. Lá na infância, ao pé da cama antes de dormir. Aquela época já o era. O tempo passou, eis que sentados lado a lado. Adulto no limiar da senilidade com muita serenidade. Outras histórias ouvi-la contar, não mais de trancoso, agora reais. Ainda mais prazerosas de ouvir. Olhando pra uma nesga de céu azul, através de uma área verde, que alumiava a sala de janta. Ela quis saber se já estávamos na quaresma. Confirmamos.

E passou a relatar o que contamos. Quando era menina, minha mãe sempre ia passar a quaresma no sítio. Alguns gêneros de primeira necessidade eram providenciados. Por volta de quarenta dias, a família ia pra velha casinha do Sítio Capim. Longe da cidade, iam pro retiro até que viesse a páscoa. Retornariam na semana Santa para acompanhar os ritos litúrgicos da igreja, a procissão do Senhor Morto, o santo Ofício com a Ladainha, a Missa do Lava-pés, a Via Sacra, a vigília do sábado da Aleluia. Os fiéis vivenciariam os sacramentos da Confissão, e da Penitência: do jejum, da oração, da caridade. A cor roxa no altar, nos paramentos do sacerdote, as imagens cobertas, tudo para lembrar o luto. Padre Moisés nos seus sermões lembraria aos fiéis que era tempo de renunciar a velhos hábitos. Diria pro sertanejo que a paixão, de nosso Senhor Jesus Cristo, significava tempo de renúncia. Tempo de pensar no sofrimento do redentor. Que tudo fez por nossa causa. 

Meu avô Tomaz, era agricultor, pra complementar a renda, exercia a profissão de barbeiro.  No verão, no meio da feira armava uma tolda, cortava cabelo, fazia barba, a maior parte da sua freguesia os matutos. No inverno ia pro sítio botar roça. No entanto, de inverno a verão, a vida era uma só, de tardinha, depois da janta, ia pra porta de casa, pitava um cigarro de fumo picado. Depois, descia a rua, e na Pensão das Irmãs Ferreira, ia jogar baralho, até altas horas da madrugada. As irmãs Ferreira vieram de Pernambuco, tentar a sorte em Alagoas. Tinha freguesia seleta: a guarnição da polícia, o delegado, Seu Moreninho, o farmacêutico, os mascates vendedores de artefatos de couro, de calçados, e corda de caruá. Pela devoção que tinha ao padre Cícero do Juazeiro e a Frei Damião, na quaresma meu avô, suspendia o jogo de baralho, o aperitivo de antes das refeições. E não cortava cabelo, nem fazia barba pra ganho. Reduzir até que reduzia, porém não conseguia evitar o tabagismo. Sobre a confissão era radical, preferia ir até debaixo de um pé de juazeiro. Aonde ia confessar-se diretamente com Deus. Dizia que não precisava de intermediário pra confessar-se com Nosso Senhor. 

Com o passar do tempo, meu avô resolveu abrir uma barbearia. Aproveitou um pequeno salão, anexo à casa de morada – bem ali, na Rua da Assembléia. Porque naquela Rua funcionava a Câmara Municipal - dividiu o espaço com outro barbeiro, chamado de Tibúrcio.  Desde menina, e mesmo na juventude, minha mãe ostentava vastíssima cabeleira negra. Admirada pelas colegas e pela vizinhança. Diziam que tinha cabelo de índia, ainda mais pelo corte que meu avô lhe fazia. E proibiria severamente de cortá-lo, somente ele poderia, quando lhe aprouvesse aparar as pontas. Cortar jamais. Por essa época, aparava porque acreditava que a força da lua depois da páscoa faria aumentar de volume. Entre os dois amigos barbeiros, algumas coincidências minha mãe observou.  Tibúrcio e Tomaz, os nomes dos dois começavam com “T”. Nas duas famílias haviam nascido inicialmente duas mulheres. Osvalinda e Aucantina, apelidada de “Tinô” na casa de Seu Tibúrcio.  Dineusa e Maura na casa de Seu Tomaz. As esposas dos dois barbeiros ficariam grávidas, e tiveram ambas, filhos meninos. Rubens na casa de Seu Tibúrcio, e Dorival na casa de Seu Tomaz.  Antes de partirem pro exílio quaresmal, algumas coisas iriam acontecer. Umas sérias, outras pitorescas.

Um dia antes de partirem, minha mãe foi encarregada de ir comprar pães. Afoita saiu de pés descalços, em desabalada carreira. Lá ia, pulando, dinheiro na mão. Como gostava de pão. Ao passar num imenso lajedo, no início da rua que ainda não tinha calçamento, teve a certeza de ter pisado numa cobra. De volta, buscou outro caminho temendo um reencontro com o réptil ofídio. Outro susto de idêntica monta, passaria ainda naquela mesma tarde. Ao chegar à porta de casa, meu avô vinha saindo com um sapo cururu na mão. Ora minha mãe sempre teve medo de sapos. Brincando, fez menção de atirar-lhe o batráquio. Não teve jeito, um grito horrendo estrondou pela rua, acabando por chamar a atenção de todos. Os policiais apreensivos saíram da delegacia. Dona Amância, minha avó, detestava escândalos, e reprovaria seriamente tal atitude de Seu Tomaz.  

Na manhã do dia de partir pro sítio, por acaso Dona Amância descobriria que Seu Tomaz, andava de coito com uma quenga. Como descobriu? Foi assim: Dias antes, lá vinha minha vó, da roça, na cabeça um balaio, cheio de capucho de algodão e umas abóboras.  A rameira, uma negra chamada de Anastácia, que morava naquela mesma rua. A sem-vergonha teve o atrevimento de pedir uma abóbora a minha vó. Sem saber do que ocorria lhe deu. De boca em boca o fuxico correu solto. Até chegar aos ouvidos de minha vó. A discussão foi feia. Nas raras ocasiões de desentendimento entre seus pais, minha mãe confidenciou que ficava muito triste. Seu Tomaz nada dizia, calava-lhe a consciência por estar errado. E dona Amância acabaria por cobrar-lhe: ”-O senhor trate de procurar o padre Moisés, se confesse de verdade! Pé de pau não perdoa pecado! Não quero um Judas dentro de casa.”

No exílio, minha vó revirando uma velha bolsa de tiracolo. Lá no fundo encontrou esta oração:
“Vemos que algum algoz fez da tua vida um martírio, violou tiranicamente a tua mocidade, vemos também no teu semblante macio, no teu rosto suave, tranquilo, a paz que os sofrimentos não conseguiram perturbar. Querida Anastácia: Eras pura, superior, tanto assim que Deus levou-te para as planuras do céu e deu-te o poder de fazeres curas, graças e milagres. Amada Anastácia, pedimos por...(aqui faz o pedido), roga por nós, proteja-nos, envolva-nos no teu manto de graça e com teu olhar bondoso, firme, penetrante, afasta de nós os males do mundo. Tudo que pedimos, pedimos por Nosso Senhor Jesus Cristo, na unidade do Espírito Santo. Amém.”

No verso da oração uma gravura com o rosto de Anastácia amordaçada, e uma breve biografia da mártir dos negros afro-descendentes. Considerada santa: “Da tribo dos Bantus, na longínqua África, foi trazida escrava. Por não possuir documento ganhou o nome de Anastácia. Negra, de rara beleza. Tão bela, causaria inveja as donzelas da corte. Quis saber que gosto tinha um torrão de açúcar, vista por um malvado feitor, que acusaria de ladra. Colocaram-lhe uma mordaça de couro que cobria a boca e parte do rosto. O filho de um fazendeiro caiu doente, e não tendo mais a quem recorrer, socorreu-lhe Anastácia, suas rezas e benzeduras, fez o rapaz ficar curado. Pelos castigos que sofria, nos ferimentos contraiu gangrena. Vindo a falecer desse mal. Teve direito a enterro de escravo alforriado.”

Aquele folheto estava agora em minhas mãos. Um dia fora da minha avó, que mal sabia ler. No entanto no fundo do coração, pediu a Deus, e a aquela santa, que lhe desse paciência, e tirasse a aflição do seu coração, para que pudesse viver naquele ano, uma boa páscoa. 


Fabio Campos     

Caupolican - 1974

O menino estava dormindo, abriu os olhos. Nove letras pretas, do tipo bastão, sob um fundo branco. A palavra na lombada do livro: Geografia. Já conhecidas dele, outra vez apresentava-se pra sua retina. Deu-se conta que estava na sala de aula. Permaneceu com a cabeça apoiada na carteira. Um fio de baba escorrera molhando-lhe a bochecha. A professora continuava a aula. O ventilador de teto, preguiçosamente girava a hélice. Duas moscas sobre as cabeças esvoaçavam traçando parábolas no ar. Verão de 1972.

Apoiou a cabeça pondo o queixo por cima das mãos sobrepostas. No alto da parede, próximo a campainha, o quadro com o retrato do general Emílio Garrastazu Médici.  A faixa presidencial, o brasão da república sobre o peito. E tudo ficou preto e branco. Terno preto, rosto branco. Moldura negra, fundo branco. Lousa negra, gizes brancos. Birô negro, relógio de parede branco. Blusa da farda e meias brancas.  Sapatos e bolsa escolar pretos. O cabelo, todos da sala tinham-nos bem penteados. Untados e cortados ao estilo militar. Por que o chefe da nação brasileira se mostrava tão sério? Seu olhar inquiridor, como se perguntasse: o que mais vocês querem que de mim? Já criei o PIS, o BNH. Estamos construindo a hidrelétrica de Itaipu. Em breve entregarei a ponte Rio-Niterói.  Já está em andamento os serviços de construção da rodovia Transamazônica que ligará Santarém a Cuiabá. Pra acabar com o analfabetismo criei o MOBRAL. Os universitários terão oportunidade de explorar o país através do Projeto Rondon.

Ah! Já sei o motivo da insatisfação, talvez seja porque coibi veementemente as manifestações nas universidades. Dissidentes políticos e guerrilhas, reprimidas com mão de ferro. Não me diga que é o Ato Institucional número 05, o motivo da insatisfação? Aceito qualquer crítica, podem dizer que sou radical, em não reconhecer a UNE, e o MST. Porém não me compare a governos extremamente ditadores, como o de meu colega Fidel, ou de meu amigo Pinochet. Muito menos com o que faz Anástasio Somoza na Nicarágua. Quero que saibam duma coisa, todo povo tem o governo que merece. Denúncia de torturas, morte e desaparecimento de presos políticos atribuídos ao nosso governo. Sobre isso, o que tenho a dizer: que, muito do que andam dizendo não é verdade. Assim como Pilatos dou-me o direito de perguntar: mas o que é a verdade?   

Monocromática sala de aula. Sentados dois a dois permaneciam os meninos. O silêncio quebrado unicamente pela voz suavemente melodiosa da professora. Ah! Dona Vanda, tão bonita! Como se fora uma fada com sua varinha de condão, o cabelo num rabo de cavalo gracioso, balançava pra um lado e pro outro, toda vez que ela gesticulava, ou apontava a anotação na lousa. Espádua alvíssima, ornada por belo colar de contas brilhantes. Mesmo que não quisesse, confiscava os olhos dos infantes. Ó quão cheiroso colo, de inebriar pobres coraçõezinhos, toda vez que se debruçava para verificar as lições nos cadernos. Vestida num gracioso tubinho que lhe desenhava as curvas. Cruelmente acabava a alguns centímetros a cima dos joelhos. O costureiro, músculo da coxa, sempre requisitado. Flexionava-se retesando o direito, ao tempo que relaxava o esquerdo.  Aquela boca, aqueles lábios, aqueles dentes. De repente só havia aquela boca. Os incisivos alvos, cintilantes, como tabletes de chicletes prontos para serem degustados. Indo preencher pupilas intumescidas. Cílios molhados como de alguém que acabara de chorar. A língua sorrateira deslizando por entre duas palavras, indo tocar o lábio superior, tornando discretamente umedecidos... Ai que boca! Que boca professora! Os lábios de baton vermelho carmim. E falava e falava, sobre astros, estrelas, satélites, os nove planetas que compunham o sistema solar. E do céu daquela boca, luas alvíssimas. Lindas e nuas. E o sol? Por que a professora tinha que trazer uma estrela de quinta grandeza pra sala de aula? Ofuscou, esbaforiu, com seu calor sufocante fazendo transpirar por todos os poros. E veio a sede, e a vontade de urinar, tudo ao mesmo tempo. Um jato de adrenalina irrigando entranhas, estonteante doçura. Sonolência. 
    
Dona Vanda continuava e sua aula espacial foi atingida por um asteróide. Caupolican - 1974 teria sido descoberto em 1968, pelo astrônomo Carlos Torres. Achou por bem passar a falar de História: Quem teria sido Caupolican? Perguntou em voz alta. Abrindo um livro amarelado. respondeu ela mesma: “- Caupolican foi um líder indígena chileno, que lutou contra as invasões espanholas, de depois do descobrimento. Após grandes feitos foi preso. Em 1558, foi executado em praça pública por empolamento. Um tipo de morte cruenta onde o condenado era obrigado a sentar-se numa estaca. E sofrer hemorragia pelo reto até morrer.”     

Através da janela o menino olhou pra lá fora, um mundo pavorosamente ameaçador se havia. Um céu grotesco. Donde um sol quase apagado, tingia as nuvens de Lilás. E aviões de guerra sobrevoavam, bombardeando as casas. Soldados corriam para se abrigar em trincheiras e barricadas. Não entendia porque a professora, diante de uma situação tão caótica ocorrendo lá fora, permanecia passivamente ministrando sua aula. Como se nada, absolutamente nada estivesse ocorrendo. Isso talvez porque, de lá fora, nada se ouvia. Nenhum som vinha de lá fora, apenas imagens. O que estaria acontecendo?

De repente Aldo, o menino, se deu conta que a professora não mais estava lá. Distraído, em olhar lá pra fora, nem percebeu que toda a turma evadira. Não havia mais professora, nem seus colegas, só ele. Apreensivamente só. Enquanto lá fora, a guerra. Não podia continuar ali, precisava saber pra onde todos tinham ido. E tinha só nove anos. O que um menino como ele poderia fazer em meio a uma guerra. Ao sair pro pátio, encontrou alguns dos seus colegas. Indiferentes a hecatombe ocorrendo logo ali brincavam, de bola de gude, pega-pega, nos balanços. Nem um pouco preocupados, com as bombas, e mísseis que caiam. E provocavam imensa destruição, pavor e morte. Só a alguns metros dali. Os meninos sorriam. E se movimentavam com em câmara lenta. Tudo parecia muito real, exceto por um motivo, não havia som, estrondo das bombas, nada. Só a imagem, desesperadamente lenta. 

Outra vez, Aldo Felix acordou. Estava noutra sala de aula, havia penumbra, um data-show, exibia um vídeo. Em questão de segundos, quatro décadas haviam ficado para trás. Instintivamente tocou-se. Temeu se encontrar no corpo de um menino de nove anos, indefeso, assustado diante duma guerra. Professor Aldo, talvez vivesse realmente aquele conflito internamente, lá no fundo no mais íntimo do seu ser.  Permanecia tomado de tão forte emoção, de tão presentes recordações. O vídeo que passava pra seus alunos, referia-se ao discurso de uma chefa de estado, cujo partido teria sofrido repressão no período ditatorial do regime militar. Uma presidenta, em cujo país em breve ia ocorrer uma Copa do Mundo. Dizia: “-O que querem que eu faça? Por favor! Não aceito, que venham comparar nosso governo, ao do meu amigo lá da ilha de Cuba.” Sonhos, todos eles devem ter um significado. Por Deus, também este haveria de ter.


Fabio Campos 

O Tesouro Perdido

História de tesouro tem suas vantagens. A gente sempre vai quer saber, de onde vem, e no que vai dar. Pra isso, tivemos que ir a Porto da Rua, uma vila praieira, fundada na época do descobrimento. O vilarejo como que parado no tempo, tinha sua vida e história atrelada ao município de São Miguel dos Milagres, a quem sempre pertenceu. Acintosas construções seculares, sobre as placas sedimentares erguidas, dividiam espaço com rudimentares cabanas de pescadores. Tudo, tudo, vinha-nos naquele instante, irremediavelmente impregnado do cheiro de mar. E pra aonde quer que fosse a vista, os olhos haveriam de esbarrar no coqueiral. Com seus canelões encimados de buquês de palhas verdejantes. Sacudindo, pra lá e pra cá, maresia. Enquanto acenava pras espumas das ondas, que antes de morrer, beijavam com sofreguidão a areia da praia, do magnífico mar Atlântico.

São duas as versões de nossa história sobre o tesouro sumido. A primeira chegou-nos através da saudosa professora Durvalina Cunha Lima. Filha de família tradicional da cidade de Porto de Pedras, morava numa das casas mais bela da Rua Coronel Avelino Cunha. Nome de seu avô, um dos fundadores daquele lugar. A fachada era revestida de azulejos e cerâmicas em estilo lusitano. Um enorme portão de ferro pintado de branco acessava um pomar, com toda sorte de arbustiva. Cujos galhos mais audaciosos, debruçavam-se por cima do muro. De inverno a verão, a calçada ficava tinta de vermelho rubro, das pétalas de Acácias. E as carambolas maduras aguçavam os olfatos e paladares dos saguis, e dos meninos quando saía da Escola Municipal Professora Leonila Cunha Lima, logo ali.

Dona Durvalina, possibilitou dois locais para nossa conversa, no alpendre que ficava virado pro pomar, ou numa ante-sala. Donde dava pra ver, esplendor de decoração, diversos objetos antigos: armas, brasões de família, quadros, etc. no interior da casa. Optamos por este de cá.  Naquela tarde prazerosa, ensolarada. Regada a chá verde e sequilhos fresquinhos, ouvimos atentamente a professora contar que, no ano de 1633, a Vila de Águas Belas, como então era chamada Porto de Pedras, era ocupada pelos portugueses. De onde provinha sua família, o que era evidente nas suas feições, na tez alvíssima, no sorriso largo, no jeito esmerado de falar, na entonação da voz. Tudo nela evidenciava sua origem luso-brasileira. Dizia que, no mês de maio daquele ano, a vila foi invadida pelos holandeses. A artilharia da esquadra, composta de dez naus, fez fogo sobre o povoado e conseguiu destruir diversas embarcações portuguesas ancoradas a lagamar. Os portugueses mantinham na foz do rio, quatro navios de defesa. Na desembocadura do rio Manguaba que acessava ao forte de Santo Antonio de Quatro Rios, a doze quilômetros dali. Hoje em dia chamada de cidade de Porto Calvo.

A população da vila tentou resistir com barricadas, sacos de areia na entrada do cais. Respondendo ao ataque com tiros de bacamartes bombardeio de canhões de médio porte. Porem o poder de fogo dos invasores era maior. Ao perceber que estavam perdidos, os moradores da vila atearam fogo nas próprias casas, e fugiram mata adentro. Um desses moradores, o bisavô de dona Durvalina, o senhor Joaquim Ferraz de Lima, era dono do engenho de cana, Mata Redonda. Conseguiu fugir com a família, mulher e três filhos pequenos. Com a ajuda de dois escravos, três mulas, e um cavalo, levou o que pode: arcas cheias de dobrões de ouro, muito dinheiro, e diamantes. Ao chegar à base de um rochedo banhado por um Arroio chamado de Patacho, se abrigaram. Afastando-se donde tinham se arranchado, Senhor Joaquim foi até a um local onde só ele ficou sabendo, enterrou os baús com os diamantes e os dobrões de ouro. De volta ao local onde deixou a família e os escravos, levantou acampamento, e partiram dali pro engenho.  Muitos anos depois, Senhor Joaquim retornaria para resgatar seu valioso despojo. Acontece que já muito velho, e desorientado, o usineiro não conseguiu mais localizar os recursos enterrados. Vindo a falecer sem conseguir recuperar o tesouro. A família teria feito muitas expedições e escavações, porém sem nenhum sucesso. 

A outra versão, também foi contada por outra professora, Dona Belmira Conceição Lins. Na verdade esta, foi a primeira história que ouvi sobre o tesouro perdido. Recordo de quando cheguei a Porto de Pedras para lecionar a alunos do ensino fundamental, no Grupo Escolar Ciridião Durval. À época,  a escola era um prédio velho, carecido urgente duma reforma.  Cheguei de ônibus vindo de Maceió. Por volta das três das tarde, desci bem em frente ao educandário. Trajado em calça jeans, camisa de meia, dirigi-me a Diretoria. Um crucifixo pendurado no pescoço, mochila às costas, e alpercatas de franciscano nos pés. Isso faria com que comentassem que um novo padre havia chegado à cidade. Dona Belmira era a solicitude em pessoa. Uma velha senhora negra. Pra mim, era como se materializasse ali na minha frente, uma personagem de um filme americano do Alabama ou Mississipi, dos anos 60. Depois de alguns meses já éramos tão amigos, que sempre que eu tinha um tempo disponível, ia até sua modesta casa na Avenida da Praia, em frente ao campinho de futebol. Sentados à porta olhando pro mar, conversávamos sobre tudo na vida. Dona Belmira tinha uma pequena biblioteca. Donde tive a oportunidade de ler toda a obra de Graciliano Ramos, pegando emprestado de seu acervo. Um dia, Dona Belmira deu-me de presente uma bíblia.

Era toda grande, de capa dura, de letras grandes. Com um detalhe, não era nova. Confidenciou-me que havia adquirido numa feira de livros, promovida pela escola. Não por acaso, encontrei no início do livro de Eclesiastes, um quadrado de folha de caderno. No pedaço de papel amarelado, de tão velho, tinha umas anotações escrita a bico de pena com tinta nanquim: “Cap. 01” vs, 04’-08’; Cap. 05” vs, 09’ – 14’ Joaquim Leão de Vasconcelos – 04 de maio de 1634. Engenho de Dentro.”

Dona Belmira relatou sua versão do tesouro escondido na floresta, nunca encontrado. Os fatos, apenas pareciam. Os usineiros homônimos possibilitava a confusão. No entanto os acontecimentos eram distintos, bem como os tesouros extraviados. Senhor Joaquim Leão, fugiu com a família, do vilarejo de Santo Antonio de Quatro Rios, que ficava ao lado do forte de igual nome. E foi se instalar com a família, nas imediações de Porto da Rua, fundou a usina do Engenho de Dentro. Com medo de ser pego pelos batavos, enterrou seu tesouro numa catacumba do cemitério da Vila de Nossa Senhora Mãe do Povo. Voltando muitos anos depois pra desenterrar. Porem tantos túmulos novos haviam, e os que já existiam, tinham passado por tantas reformas, que se tornou praticamente impossível  encontrar o local exato. Dali por diante era comum, encontrar o velho Joaquim, altas horas da noite, andando a cavalo totalmente bêbado, despido. Indo pela estrada que levava ao cemitério da vila de Porto da Rua. Pra finalmente encontrarem seu corpo nu, jazido em decúbito dorsal sobre o túmulo do vigário Belo, no alto do Cruzeiro. Há quem diga que tinha visões com o padre que prometia lhe indicar onde o tesouro se encontrava, caso se arrependesse dos pecados. Segundo Dona Belmira aquela bíblia pertencera ao senhor Joaquim Leão.

E só por acaso, imaginei que aqueles capítulos e versículos do livro do Eclesiastes, poderiam ser algum tipo de coordenadas, que pudesse indicar onde estaria o tesouro perdido. Tantas covas contando do primeiro quadrante, na fileira número quatro, a oitava catacumba. Ou talvez dissesse apenas o que está lá no livro sagrado: “Vaidade das vaidades! Tudo é vaidade!” “A vista não se farta de ver, o ouvido não se sacia de ouvir.” “Quem ama o dinheiro nunca se fartará. Quem ama a riqueza não tira dela proveito.” Ecl. 1-4; 5-9. 


Fabio Campos