O menino estava dormindo, abriu
os olhos. Nove letras pretas, do tipo bastão, sob um fundo branco. A palavra na
lombada do livro: Geografia. Já conhecidas dele, outra vez apresentava-se pra
sua retina. Deu-se conta que estava na sala de aula. Permaneceu com a cabeça
apoiada na carteira. Um fio de baba escorrera molhando-lhe a bochecha. A professora
continuava a aula. O ventilador de teto, preguiçosamente girava a hélice. Duas
moscas sobre as cabeças esvoaçavam traçando parábolas no ar. Verão de 1972.
Apoiou a cabeça pondo o queixo
por cima das mãos sobrepostas. No alto da parede, próximo a campainha, o quadro
com o retrato do general Emílio Garrastazu Médici. A faixa presidencial, o brasão da república
sobre o peito. E tudo ficou preto e branco. Terno preto, rosto branco. Moldura
negra, fundo branco. Lousa negra, gizes brancos. Birô negro, relógio de parede
branco. Blusa da farda e meias brancas. Sapatos
e bolsa escolar pretos. O cabelo, todos da sala tinham-nos bem penteados. Untados
e cortados ao estilo militar. Por que o chefe da nação brasileira se mostrava tão
sério? Seu olhar inquiridor, como se perguntasse: o que mais vocês querem que
de mim? Já criei o PIS, o BNH. Estamos construindo a hidrelétrica de Itaipu. Em
breve entregarei a ponte Rio-Niterói. Já
está em andamento os serviços de construção da rodovia Transamazônica que
ligará Santarém a Cuiabá. Pra acabar com o analfabetismo criei o MOBRAL. Os
universitários terão oportunidade de explorar o país através do Projeto Rondon.
Ah! Já sei o motivo da
insatisfação, talvez seja porque coibi veementemente as manifestações nas universidades.
Dissidentes políticos e guerrilhas, reprimidas com mão de ferro. Não me diga
que é o Ato Institucional número 05, o motivo da insatisfação? Aceito qualquer crítica,
podem dizer que sou radical, em não reconhecer a UNE, e o MST. Porém não me
compare a governos extremamente ditadores, como o de meu colega Fidel, ou de
meu amigo Pinochet. Muito menos com o que faz Anástasio Somoza na Nicarágua.
Quero que saibam duma coisa, todo povo tem o governo que merece. Denúncia de
torturas, morte e desaparecimento de presos políticos atribuídos ao nosso
governo. Sobre isso, o que tenho a dizer: que, muito do que andam dizendo não é
verdade. Assim como Pilatos dou-me o direito de perguntar: mas o que é a
verdade?
Monocromática sala de aula. Sentados
dois a dois permaneciam os meninos. O silêncio quebrado unicamente pela voz suavemente
melodiosa da professora. Ah! Dona Vanda, tão bonita! Como se fora uma fada com
sua varinha de condão, o cabelo num rabo de cavalo gracioso, balançava pra um
lado e pro outro, toda vez que ela gesticulava, ou apontava a anotação na lousa.
Espádua alvíssima, ornada por belo colar de contas brilhantes. Mesmo que não
quisesse, confiscava os olhos dos infantes. Ó quão cheiroso colo, de inebriar pobres
coraçõezinhos, toda vez que se debruçava para verificar as lições nos cadernos.
Vestida num gracioso tubinho que lhe desenhava as curvas. Cruelmente acabava a
alguns centímetros a cima dos joelhos. O costureiro, músculo da coxa, sempre
requisitado. Flexionava-se retesando o direito, ao tempo que relaxava o
esquerdo. Aquela boca, aqueles lábios,
aqueles dentes. De repente só havia aquela boca. Os incisivos alvos,
cintilantes, como tabletes de chicletes prontos para serem degustados. Indo
preencher pupilas intumescidas. Cílios molhados como de alguém que acabara de
chorar. A língua sorrateira deslizando por entre duas palavras, indo tocar o
lábio superior, tornando discretamente umedecidos... Ai que boca! Que boca
professora! Os lábios de baton vermelho carmim. E falava e falava, sobre astros,
estrelas, satélites, os nove planetas que compunham o sistema solar. E do céu daquela
boca, luas alvíssimas. Lindas e nuas. E o sol? Por que a professora tinha que trazer
uma estrela de quinta grandeza pra sala de aula? Ofuscou, esbaforiu, com seu
calor sufocante fazendo transpirar por todos os poros. E veio a sede, e a
vontade de urinar, tudo ao mesmo tempo. Um jato de adrenalina irrigando entranhas,
estonteante doçura. Sonolência.
Dona Vanda continuava e sua aula
espacial foi atingida por um asteróide. Caupolican - 1974 teria sido descoberto
em 1968, pelo astrônomo Carlos Torres. Achou por bem passar a falar de
História: Quem teria sido Caupolican? Perguntou em voz alta. Abrindo um livro
amarelado. respondeu ela mesma: “- Caupolican foi um líder indígena chileno,
que lutou contra as invasões espanholas, de depois do descobrimento. Após
grandes feitos foi preso. Em 1558, foi executado em praça pública por empolamento.
Um tipo de morte cruenta onde o condenado era obrigado a sentar-se numa estaca.
E sofrer hemorragia pelo reto até morrer.”
Através da janela o menino olhou
pra lá fora, um mundo pavorosamente ameaçador se havia. Um céu grotesco. Donde
um sol quase apagado, tingia as nuvens de Lilás. E aviões de guerra sobrevoavam,
bombardeando as casas. Soldados corriam para se abrigar em trincheiras e
barricadas. Não entendia porque a professora, diante de uma situação tão
caótica ocorrendo lá fora, permanecia passivamente ministrando sua aula. Como
se nada, absolutamente nada estivesse ocorrendo. Isso talvez porque, de lá fora,
nada se ouvia. Nenhum som vinha de lá fora, apenas imagens. O que estaria
acontecendo?
De repente Aldo, o menino, se deu
conta que a professora não mais estava lá. Distraído, em olhar lá pra fora, nem
percebeu que toda a turma evadira. Não havia mais professora, nem seus colegas,
só ele. Apreensivamente só. Enquanto lá fora, a guerra. Não podia continuar
ali, precisava saber pra onde todos tinham ido. E tinha só nove anos. O que um
menino como ele poderia fazer em meio a uma guerra. Ao sair pro pátio,
encontrou alguns dos seus colegas. Indiferentes a hecatombe ocorrendo logo ali brincavam,
de bola de gude, pega-pega, nos balanços. Nem um pouco preocupados, com as
bombas, e mísseis que caiam. E provocavam imensa destruição, pavor e morte. Só a
alguns metros dali. Os meninos sorriam. E se movimentavam com em câmara lenta.
Tudo parecia muito real, exceto por um motivo, não havia som, estrondo das
bombas, nada. Só a imagem, desesperadamente lenta.
Outra vez, Aldo Felix acordou. Estava
noutra sala de aula, havia penumbra, um data-show, exibia um vídeo. Em questão
de segundos, quatro décadas haviam ficado para trás. Instintivamente tocou-se.
Temeu se encontrar no corpo de um menino de nove anos, indefeso, assustado
diante duma guerra. Professor Aldo, talvez vivesse realmente aquele conflito
internamente, lá no fundo no mais íntimo do seu ser. Permanecia tomado de tão forte emoção, de tão
presentes recordações. O vídeo que passava pra seus alunos, referia-se ao
discurso de uma chefa de estado, cujo partido teria sofrido repressão no
período ditatorial do regime militar. Uma presidenta, em cujo país em breve ia
ocorrer uma Copa do Mundo. Dizia: “-O que querem que eu faça? Por favor! Não
aceito, que venham comparar nosso governo, ao do meu amigo lá da ilha de Cuba.”
Sonhos, todos eles devem ter um significado. Por Deus, também este haveria de
ter.
Fabio Campos
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