A Pedra, A Estrela de Monalisa

Havia um quase final de quaresma. Manhã de domingo, não muito a se fazer. Era sempre assim, a muito tempo era assim. Demorar-se um pouco mais na cama. Dava para ouvir o mar. No quarto, sob os lençóis, dava para ouvi-lo. As ondas quebrando na praia. Aquele era um dia bom pra pescar.

Pedro estava em casa. Já era casado, e pai de família. A muito deixara para trás a vida de solteiro. Ultimamente era assim, bastava ir pro alpendre dos fundos da casa, começavam as reminiscências. Conhecera e casara com uma jovem, cabocla de vasta cabeleira negra, que se derramava para além do colo, se encantara por aqueles olhos de mel, os braços longilíneos. A leveza da corsa no andar. Pelo menos dez anos mais jovem que ele. No entanto jamais se incomodara com a diferença de idade. Já os cabelos ficando grisalhos e as primeiras marcas de expressão no rosto, os músculos dando sinal de cansaço. Lembrava com carinho do tempo de namoro. A moça morava no Sítio.  A grande família do Lajedinho dos Morais o acolhera. Tão bela era a vida entre os camponeses. 

A propriedade rural, uma rotina nada leve. Plantar e semear na prosa, cheia de interjeições, colher e descascar, poesia, e exclamações. E se tinham imprecações também tinha a esperança na ajuda da virgem Santíssima. A lida com as coisas do campo embrutecia corações, calejava as mãos. Pedro era homem letrado, até então pensava que só tinha pedra no nome. Mão de seda, nas divagações metia-se a debulhar espigas de versos. De posse dum facão punha-se a pinicar palmas cheias de espinhos, e farpas verbais, num balaio trançado, adjetivado de cipó. Enquanto gemiam as cordas duma viola numas mãos analfabetas de partituras.  O pai da moça gostava de ouvir versos, ainda que salpicados de lama, com cheiro de bosta de boi. E iam os olhos lá longe onde umas moitas de mato verde não tinham planos pro futuro, nem pronomes possessivos como o milho e o feijão. As horas voavam e pipilavam no recitar de poesias de cordel, e os versos sorriam e  faziam os olhos sorrir nas histórias de Pedro Malasarte e Cancão de Fogo. História que trazia bem pra ali, pro meio do terreiro um rei dos tempos dos castelos medievais. Chegava num belo cavalo branco. Seu Malaquias pedia pros meninos providenciar um bocado d’água pro moço, um banco onde pudesse se sentar. Ele porem não se demoraria tinha uma besta-fera pra caçar, resgatar uma menina dos cabelos de ouro, que havia sido perseguida e raptada. Um combate colossal estaria pra acontecer. E tinha tudo pra terminar com um final feliz. Pedro depositava toda sua esperança no desfecho.  O velho Malaquias sempre perdia a melhor parte, acabava arriando de tantos tragos de cachaça. O casal de namorado, enamorados davam-se em beijos e abraços.

A casa era quase silêncio. Não fosse a porta do quarto soltando um gemido de insatisfação, tendo que largar o repouso com preguiça. Monalisa, a filha caçula de Pedro se acordara, esfregando nos olhos um “-Benção pai.”, Sumiu dentro do banheiro. Pedro continuava no alpendre, de pé olhava pro céu.  E seu eu, foi ter uma conversa, de pensamentos e olhares, com as nuvens. E lá estava o temível dragão, voltando do passado.  Sendo seguido pelo príncipe no seu cavalo branco. Os cabelos de ouro da mocinha ficaram prateados. Enquanto seu vestido de noiva, como se tivesse perdido um fio na bainha, ia puxado por um cisne que voava pro horizonte. Na pedra do lajedo, pela primeira vez amou Maria. Não sei o que se passava em seu coração, sobre o marmóreo lajedo do Lajedinho chorou suas lágrimas. Talvez porque a mãe teria dito pra casar virgem. E acabaria molhando de vermelho, o verde esmorecido das catingueiras. E ia a chuva indo lamber a poeira do sertão, que de tão fermentada acabava liberando aroma adocicado de tapera úmida. A casinha de taipa, velha e rachada. Coberta de palha, soltava pedaços do reboco que mais pareciam tacos de beiju. E o negrinho filho da mucama, metia na boca e comia como se fosse fino manjar. As narinas fantasiavam o perfumo duma peixada à moqueca, cozido na panela de barro, servido na telha. Peixe criado no fundo do barreiro cuja carne punha gosto de terra na boca.

As mãos de Pedro, com os dedos esfregava a pedra do anel de formatura. Daí sentiu uma dor. Tão fina, que teve a mais lúcida certeza de ter sido transpassado por uma lança, que lhes atravessou o baixo ventre indo sair na virilha. Instintivamente dobrou-se na posição fetal. Olhou pro chão esperando ver sangue, nada. Onde estava seu algoz? Nada. A dor crudelíssima persistia, tombou. As vistas davam sinal de escurecimento. Ó quão tamanha dor que nunca sentira! O ar passou a ser o bem mais precioso, no entanto lhe fugia. Batimentos alterados. Precisava preparar-se pro pior. Minaram-lhes as forças. O céu ficou lilás, severo, inquiridor e acusador. Talvez um século tenha se passado, em apenas alguns segundos. Sentiu que alguém se aproximava. Um par de pés metidos em pantufas verdes de cara de sapo surgiu no seu campo de visão. “-Pai?! O que o senhor tem?”  A voz de Monalisa naquele momento soou como a de um arcanjo. Acordou no hospital, com um diagnóstico: pedras nos rins.

A areia da praia, por algum motivo, lembrava Abraão. Como era bom andar na areia. De pés descalços, sentir as ondas lavando entre os dedos. Levando a areia deixando sal. “-Pai! Tira uma foto minha naquelas pedras. -Não são pedras menina, são corais.” A brisa batendo no rosto, os corpos, todas as coisas banhadas de sol.  A maresia, cloreto de sódio pra pele, pros cabelos. E a gente que tanto de sal tinha no sangue, no suor, na lágrima, mais salgado ficando. De vez em quando, olhava pra trás, e a vila, ia ficando pequenininha. Parecendo a terra de Lilipute, enquanto os coqueiros viviam seu momento de Guliver. As casas fundindo-se numa cromátide imperfeita, irregular. O farol, peça perdida de um xadrez, encimado no meio da mata atlântica. Os pescadores lá longe, formigando uma jangada pra dentro do mar.  “-Olha Pai! Achei uma estrela! Podemos levar pra casa?”

Permitiu levar, pensando que era como uma pedra, um fóssil. Muitos anos se passariam até entender o que era um equinodermo. E que as estrelas-do-mar apesar do corpo duro de cálcio, tinha vida e se locomoviam usando seus “braços”. No dia seguinte quando a menina Monalisa se acordou sua estrela não mais estava no meio dos brinquedos, tinha ido embora. Pela fresta da porta ganhou os fundos da casa, o quintal de cerca não foi empecilho. Foi juntar-se as suas irmãs de constelação oceânica, na esplendorosa galáxia marinha.  


Fabio Campos

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