Raquel

De repente lá estava a vila. Dois cordões de casas, separados por um tapete de paralelos de pedras. Mosaicados de sol sempiterno. Esteira bruta, de mãos cascudas brotada. A lápis cinzel e marreta assimetricamente escrevinhada. Como cri-cri de grilos contumazes, no aço e no granito forjado. Tudo, tudo, escrito a suor e sangue de um povo bravio, forte, campesino. Sendo deles mesmos aquela história. Apesar da noite, dava pra ver tudo, tudo mesmo. Casas, e almas viventes. Estrada de barro, carro de boi. Gradiente de um tenor ofuscado de luz. Corda, couro, chocalho. Cocão cantador, idílio de cachorro doido.
    
O ônibus devagar foi chegando, parando ao lado do portão da Escola. Abraçando com a luz amarelada de seus faróis os que lá estavam. Estudantes, fardados, mambembes, brincalhões avançavam. Mochila às costas, guerrilheiros indo pra uma batalha que travavam contra eles mesmos, dali a pouco. Sempre haveria de ter a serra. A dizer prefiro que se esqueçam de mim, esqueçam que existo, cuidem das suas vidas (impossível imaginar a vila sem ela!). Cuidem das vidas das criaturas que Deus pôs no mundo. A muito, desde a criação. E tanto já se havia passado que o leito do riacho secou. Ninguém jamais iria pra um lugar tão desolador apenas pra admirar o por do sol. Da progenia de Adão rebelados. Da filogenia de Caim expulsos, do paraíso. Expurgados da presença do Senhor. Indo parar ali eis por que se haviam. Vagaram vagabundos, pelo mundo.

Quando Raquel nasceu dona mãezinha, a parteira tomou-se de espanto ao ver aquele pingo de gente do cabelinho cor de ouro. Alvinha! De pele da cor do leite que sugava do peito da mãe, uma cabocla mestiça. No seio daquela família já cinco irmãs a esperava: Leopoldina, Isabel, Antonieta, Joaquina, e Tereza Cristina. Um pai chamado Pedro, uma mãe Maria Francisca. Desde pequena demonstrara ser uma criatura diferente. Com seis meses já queria dizer palavras, e engatinhava a casa toda. Agarrando-se nas coisas firmava-se em pé, raramente chorava se levava tombos por mais contundente fosse. A avó Amélia, por parte de mãe, também vivia naquela casa, e dizia: “-Você já prestaram atenção? Que essa menina olha por baixo?” Pra velha senhora aquilo tinha um significado não lá muito bom. Pessoas que serravam os olhos, e endureciam o sobrolho pra olhar. Pra ela, essas pessoas tinham encosto o que não era bom. Raquel passou mais de dois anos pra ser batizada. Seu Benedito do Óleo, um negro velho benzedor, cansou de dar conselhos a comadre Francisca pra batizá-la, o quanto antes. Porque um atraso de vida era a casa que abrigava um pagão. As coisas (quando davam certo) vinham com muita dificuldade. Menino pagão adoecia com uma facilidade medonha. Tinha os peitos abertos. E as espinhelas caíam de palmo em palmo. Não adiantava reza, galho de arruda, banho com Samba Caitá, sal grosso, alfazema. Profetizava: “-Que Deus a livre! Se passar um vento cai de moléstia incurável, morre cedo. (-Pagão não vai pro céu!) O que aconteceu com o único varão nascido de dona Francisca, devia ter servido de exemplo.

Foi assim, dona Francisca achou de ir uma novena no Sítio Vertedouro lá pras banda de Fazenda Nova. O bucho já estava pela boca. E dona Chica bebeu pinga, muito vinho de jurubeba, fumou cigarro branco. Na euforia, dançou e dançou. Deu de sentir uns desejos. Desejou comer xin-xim de galinha, barro de louça e o fruto do mandacaru. Pedro teve que ir fachear o fruto na caatinga noite à dentro. Encontrou uma caninana que não tinha mais tamanho, devorando um cururu. Levou uma carreira duma raposa choca. Ralou-se todinho numa touceira de facheiro. Pra completar quando rumaram pelo caminho de casa, um fogo corredor lá na várzea do baixio foi botá-lo no terreiro de casa. A lua cheia ia pelas alturas e dona Francisca fez uma coisa que não devia. Com o indicador apontou pra lua. Era coisa que todos sabiam, mulheres grávidas não podiam apontar pra lua cheia! Se nascesse vivo, o menino corria o risco de ter seis dedos nas mãos, ou nos pés. Além do que sinha Chica havia pendurado a chave de casa no pescoço, outra coisa que jamais devia ter feito, o menino fatalmente nasceria com o lábio fendido, até uma das narinas. Não deu outra, a criança, um menino nasceu de sete meses. O cordão umbilical preso ao pescoço selou seu destino. Pedro nem chegou a vê-lo, foi enterrado pelos padrinhos na cova da família do pai. O último a ser enterrado lá havia sido dona Genoveva, a mãe de Pedro. As crianças que acompanharam o cortejo jogaram flores e terra até cobrir o pequeno caixão. Criam que os anjos de Deus, vendo que por mãos de inocentes fora enterrado viriam buscá-lo. Levariam pro lugar onde tinha um campo verde, uma relva baixa, onde podia deitar e sonhar e brincar, debaixo dum céu azul da cor do caixãozinho. Ali ficaria até o dia do julgamento.    

Raquel era uma menina diferente, mesmo crescendo-lhes os peitos e adquirindo pêlos na púbis continuava tomando banho apenas de calcinha, junto com suas irmãs no riacho assoreado que lhes cobriam apenas as coxas. Os meninos danavam-se a espiar, de longe se masturbavam amoitados. Dos fundos da casa de Raquel dava pra ver o cemitério, lá a margem da estrada invadindo o prado, parecia uma manada de Nelore pastando. O muro baixo branquinho! Branquinho! Quando as coisas dentro de casa ficavam muito pesadas, brigas entre seus pais, agressões verbais e físicas. Então ia até lá. A desfrutar do silêncio, dos malmequeres, das andorinhas, beija-flores e pardais. Cruzes e flores caladas, datadas e nomeadas. Tristemente mal pintadas, catacumbas e covas cuscuz. Punha-se a observar as formigas que excursionavam sobre o túmulo da vó Genoveva. Tinha em conta que (a terra já tivesse consumido o corpo da vó) Fabiano seu irmão que não vingara, estaria debaixo do chão, correndo dentro de túneis brincando com os ossos de vó Genoveva. Quando deu por si o dia tinha ido embora. Resolveu voltar, vez em quando olhando pra trás, como que dando adeus ao irmãozinho. Naquela noite (muito triste se sentia, mesmo assim) foi pra escola. Sem vontade de assistir as aulas. No banheiro feminino encontrou Rita de Cássia. Rita percebeu que ela chorava. Perguntou-lhe o que tinha.  Disse que estava triste, era seu aniversário e ninguém na sua casa se lembrou da data.  De repente Raquel segurou a amiga pelo rosto e beijou-lhe na boca. Ar de espanto a menina desvencilhou-se ao tempo que limpava a boca com as costas da mão. Pediu desculpas, pôs-se de cócoras e chorou.

Uma viatura do Pelotão de choque na porta da sua casa, ao retornar da escola. As luzes vermelhas piscando sob o teto. Tingiam de sangue as paredes das fachadas das casinhas acanhadas, a luz rodava e rodava, transformando a rua num baile macabro e mudo. O qual não fora convidada, ficou de longe olhando. Um turbilhão de sentimentos a invadir-lhe. Sisudo o pai surgiu na porta, os pulsos unidos por um par de algemas. Abrindo caminho entre os curiosos, foi conduzido ao camburão por um policial. Humilhante ver o pai naquela situação. Queria que fosse um pesadelo do qual pudesse acordar a qualquer momento. Não era.

Pedro fora preso porque uns assaltantes de banco, pego pela polícia o denunciaram, pela venda de armas pra o crime. Enquanto via seu pai sendo conduzido até a viatura, tantas coisas vieram a mente. Pensou que teriam sido as brigas com sua mãe. Ou o haviam denunciado pelo consumo e venda de drogas, ele fumava maconha. Ou uma de suas irmãs, pelos abusos sexuais sofrido. Até então só não havia tentado a ela, talvez a respeitasse. Perdera a conta das vezes que dormira com uma faca debaixo do travesseiro. Ai dele se inventasse de importuná-la.

Raquel resolveu ir embora. O ônibus escolar se afastando do povoado. Se ia, levando uma garota com uma mochila cheia de sonhos, o fone no ouvido a impedia de ouvir o adeus de Fabiano na porta do cemitério. Seu destino: Maceió, morar na casa duma tia no Canaã. O ônibus avançando na poeira, deixando pra trás uma mãe, cinco irmãs, uma escola, uma serra, um riacho. Se lançasse um último olhar, veria uma menina de cabelos loiros segurando uma boneca, acenando da porta de casa.  


Fabio Campos       

O Sinal e A Santa Cruz (Terceira Parte -Fim da Saga)

Enéas perdeu o emprego. Ficou somente alguns dias mais. Não suportando Seu Domício desabafou: “-Ô homem desligado da vida, meu Deus.” Tudo que se mandava fazer. Quando fazia, ou fazia pela metade, ou não fazia. E a resposta era sempre: “-Eu me esqueci...” Maura esperta, ofereceu-se e acabou ganhando a vaga do primo.  Ativa, dedicada. Interessava-lhe aprender as coisas. O mundo vivia disso, de desenhar, moldar, modelar pessoas.

A rua brincava de azul, de um céu do mesmo tom de antes de ontem. Sonolentas, se aquecendo ao sol as casas iam se acordando. Pouco a pouco se dissipando o frio orvalho da madrugada. Enquanto os atores do dia a dia, como se saindo da condição de imagens congeladas, pra situação de filme, como de cinema mudo. Passando cada um, pra seus velhos afazeres. Se encontrando sempre, com os mesmos. Seu Ermínio já abrira a farmácia, Cazuzinha seu assistente, vestido numa bata branca, varria a calçada. Solícito a cumprimentar dona Ismênia que passava com as filhas Isabela e Isadora. As meninas iam pra casa de dona Carmem, pra aulas de flauta doce e canto.  As atenções todas convergiam pra um ponto da cidade, o comércio. Donde emanavam todas as ações e reações. A torre da igreja um lápis de cor laranja gigante desenhando um sol amarelo gelado. Os meninos no passeio, tão carentes de cores. Feito homens feitos, como que esquecidos de serem meninos. Zezé e Tião com um carro de mão, de porta em porta, a vender macaxeira. As sextas-feiras além do tubérculo, peixe. O caminhãozinho de pau, o pião, a pipa, enquanto isso dormia dentro do baú, na gaveta da cômoda, embaixo da cama, sem pressa aguardariam o chegar da tarde pra irem à forra. Zé de Paulo morava no Pedrão, fazia rosário de coco de Ouricuri pra vender no meio da feira. Meio dia quando a fome apertasse, tiraria um tostão do bolso, ia a tolda de Seu Antonio da Garapa comprar pão e suco de anilina.  As estripulias do Mateu, a fazer com que sorrisse um sorriso azul de pão doce. Rosa de Zefinha fazia cocada e tapioca, vendia na porta de casa. O pano branquinho de dar gosto bordado com duas flores vermelhas cobria a boca do pote. Donde repousava um copo de estanho verde.

Osvalinda era amiga das duas moças que moravam na penúltima casa da Rua Nova. Amigas de irem pra igreja todos os domingos. A ponto de despertar a curiosidade por parte das mais velhas: “-Amância vamos botar cuidado nessas meninas.” Osvalinda irmã de Petronilia que todos chamavam de “Lia”.  E dizia a amiga: “-Minha mãe acha você tão bonita.” Seu Tibúrcio barbeiro, pai de Osvalinda e Alcantina, dividia um salão com Seu Thomaz Doroteu.  Manoel Porcino trabalhava no Serviço público, na inspeção sanitária. Antes somente na capital do país Rio de Janeiro, e em São Paulo existia. Getúlio Vargas presidia a nação do Brasil. Sendo um homem de visão, ampliou o setor de saúde pública estendeu pelo país inteiro. As inovadoras descobertas dos médicos sanitaristas, Osvaldo Cruz e Carlos Chagas precisavam chegar aos mais longínquos sertões. O combate a malária no norte, a varíola no sudeste. A doença do “barbeiro” campeava nas humildes casas de taipa no meio da caatinga. A picada fatídica do inseto a ceifar vidas de tantos bravios sertanejos. Missão árdua do agente de saúde, a tentar conter o avanço da doença, tendo que ir de casa em casa. Mal entendido por uns, enxotado, ou recebidos com porta na cara e ameaças de morte por outros. A exercerem fielmente seu serviço, se submetiam a humilhações. A ganharem apelidos, servindo de chacota até em marchinha de carnaval.

“A Carrocinha pegou três “Barbeiros” de uma vez/Se ouvir a tal Buzina/ Corre, corre a três por três/Traz um Balde e a Creolina / “Barbeiro” virou freguês/ do homem da Carrocinha”

Alcantina irmã de Osvalinda tinha o carinhoso apelido de “Tinô”. Berenice amiga de Alcantina era apelidada de “Caçula”, e Deolinda, amiga das duas, tinha apelido de “Lia”. “Florzinha”, filha de dona Faustina dona do “Armarinho das Flores” chamava-se Tercília, tão metida a rica, mal pisava no chão. E por isso não era amiga de ninguém. Ao cair da tarde as amigas se encontravam na casa de Luzinha, irmã de Julieta, escutavam rádio, conversavam sobre os moços que trabalhavam no comércio e na usina. Se iam a igreja, davam de olhar com desdém a roupa uma das outras. E os cochichos comiam soltam. Teve uma vez que Berenice foi só o padre sair do altar, com os corinhas pisando no seu rastro, dirigiu uns impropérios a moça do coral. Coisa de mundiça, gente invejosa. Nem uma reação da parte ofendida. Rostos pasmados de surpresa. Guardou o choro pra casa. Consolava-se a ouvir sua mãe dona Amância: “-Minha filha, Quem tem vergonha não faz vergonha aos outros.” E os insultos nunca revidados, continuariam noutra ocasião, a moça do coral indo à casa de dona “Santinha” costureira, a provar o vestido do casamento precisou passar na janela de “Caçula”. E teve que ouvir.

“Nêga do cabelo duro qual é o pente que te penteia/ Qual é o pente que te penteia/Qual é o pente que te penteia (Ondulado e permanente/ Teu cabelo é de sereia/ Misampli a ferro e fogo/ Não desmancha nem na areia)”

 “Os Anjos do Inferno” haviam criado aquela marchinha pro carnaval, daquele frívolo fevereiro de 1939, amplamente tocada nas rádios. Satirizavam sendo opositores aos “Diabos do Céu”, do qual Pixinguinha fazia parte. A moça descobriu o segredo de uma vizinha, a mãe de uma sua amiga, que traia o marido, justo com o cunhado. Os elogios desmedidos, intencionais para  conquistá-la, e com isso conseguir seu silêncio. Pobre mulher, não sabia o mal que praticava contra si mesma. Havia um sinal para que o encontro amoroso, pudesse se concretizar sem perigo. Encima das estacas próximas da cancela dos fundos, que dava acesso a casa, havia uma porção de potes de barro emborcados. O combinado  era, se caso um dos potes não estivesse numa determinada estaca, o acesso, ao pé de pano estava garantido. Os encontros ocorriam à plena luz do dia. Da janela da cozinha de casa a moça percebeu tudo isso. Era carnaval, o rádio tocava outra marchinha:

“A Paraíba já não é tão boa/ Até Recife anda tão à toa/ O João Duarte ali residente/Matou o presidente, nosso João Pessoa”

Antonio Tenório era amigo de Seu Canuto, que era esposo de dona Adélia, que era mãe de “Santinha” que na verdade se chamava Maria Rita. Eram comerciantes, dos mais ricos da vila. O primeiro sobrado do comércio pertencia a eles. Noutra esquina da mesma rua tinha a loja de Maria Serafina, esposa do senhor Tercílio Firmo, amigo de Seu Alípio, ou seria o contrário? Dizia minha vó que eles vieram de Pernambuco, começaram com a venda de café e bolo, aos mangaieiros, no meio da feira. “-Benza-os Deus! Como prosperaram.” Luzinha, Terezinha e Julieta, três irmãs, também pernambucanas, costuravam pra fora. Vizinhas que eram da casa da mãe da moça do coral, que sabia dos encontros dos amantes, e do sinal. De lá, a mulher percebera que eram vistos doutro quintal.

Seu Antonio e Seu Canuto se encontraram na casa de Sebastiana que por encomenda, torrava café. Conversaram bastante. Conversa vai e conversa vem. Deram de falar sobre o sonho e o suposto, porem não concretizado, atentado contra sua vida. Seu Canuto aconselhou o amigo ir até a Bahia. E procurasse um homem sabido pelo nome de Zé da Cruz. Seria a pessoa certa pra decifrar o sonho que tivera no dia que Manoel morreu no velório. Ia o dia declinando sobre o cheiro de café torrado. Se despediram os amigos:   “-Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo!” “-Para sempre seja louvado!”


Fabio Campos

O Sinal e a Santa Cruz (Parte Dois)

Serra do Gavião, um colosso de lombo verde, sempre que agosto. A casa de Seu Antonio Tenório ficava no resvalo, do sopé. Ao bem da verdade, a casa, não passava de um ponto insignificante, diante daquele esplendor de cena. Um céu ameaçador, profuso, de nuvens carregadas. Angustiosamente carente de luz. E raramente, talvez, inimagináveis fios de relampejo rasgassem o tudo, que se lhe cobria de cinzento.  Cá de baixo, facilmente assustaria qualquer menino. A imaginar ferocíssimo lobo gigante. Cuja cabeça estaria voltada pro poente. A qualquer momento poderia injetar horrendo par de olhos fosforescentes naquela direção. Enquanto de sua boca aberta, viscosa baba a verter dos caninos.

Telhas coloniais de barro vermelho cozido. O pouco de musgo que havia, a dizer que tão velho não seria o casarão. Quatro caídas d’água de alpendres guarnecida. Sapata alta, faltando pouco pra igualar-se em altura, a um homem mediano. A área coberta tinha parapeito de combongós ornado de trepadeiras, acessível por espaçosos degraus.  As paredes entremeadas de janelas e caqueiras ora fixas, ora suspensas. Bancos, cadeiras de vime, de rendinha e cipó entrançado. A dar-se a convite ao descanso, a uma rede de renda do Ceará. Peças do arreio de um cavalo sobejavam nos armadores, e pelos cantos. No terreiro um coqueiral rodeava todo alpendre. O terreiro forrado com imensas folhas maduras, e frutos púrpura de um pé de Castanhola. A raiz, feito jibóia emergira do solo, a não mais ameaçar a fundação da construção. O lado leste da casa era virado pra serra. Ali, era o lugar de pensar, de Seu Antonio. Já ia quase uma semana que o homem, não se arredava de lá. Só saindo dali pra fazer as refeições e recolher-se, quando o gigantesco lobo verde se cobria com um manto negro. Dando a perceber-se somente pelo contraste com o esfumaçamento do céu, pinicado de estrelas se oferecia. Não tirava o olho de lá da serra, o velho Antonio. Como que em transe hipinótica, ou como se de lá subitamente fosse sair a resposta pra sua inquietação: -Quem estaria interessado em matá-lo?  De vez em quando abria um pequeno baú de umburana envernizada, com uma trinca dourada. Todo trabalhado, em pedras semi-preciosas. Donde tirava, empunhava. Mirava e atirava a ermo, com um revólver Taurus, calibre 38.

Seu Domício convidou Enéas pra trabalhar no balcão, da loja de tecido, na Rua do Comércio. Logo no primeiro dia, foi encarregado de levar uma compra feita por Seu Antonio, que nunca mais aparecera. Depois do que passara o homem mal saía de casa. Evitava expor-se desnecessariamente. Aos domingos ia igreja. Tinha fé em Deus que por mais perverso fosse o assassino, talvez não fosse capaz, de atentar contra um homem dentro do templo santo. A serra, naquela tarde ganhou outro admirador. Agora dois a contemplá-la. Macambúzio Enéas disse, mais consigo mesmo que para o amigo: “-O sinal do apocalipse está aí, pra todo mundo ver. Não adianta a gente querer se enganar. Ainda semana passada, a rua ficou sabendo que o negro Bento, que morava no Sítio Caititu, amanheceu injuriado. Tomou vários litros de cachaça. Deu uma surra na mulher. Estuprou a filha de doze anos. Dum tiro de “soca tempero” matou o cavalo. Tacou fogo num silo de milho. Foi até um pé de jaqueira que tinha detrás de casa, e se enforcou. Tudo que fazia, aos gritos ia repetindo: “-Estou cumprindo minha promessa! Está satisfeito?” Seu Antonio continuava pensativo. Revirava e remoia o passado, tentando encontrar onde tinha deixado um inimigo, capaz de quer vê-lo morto.

E outros e mais outros acontecimentos do povo da vila contou Enéas amigo. Duma briga, que envolvera Chico de Ernesto e Júlia Honorato. Chico era metido a seresteiro. Sempre em alto estado de embriaguez, não parava de cantar. Tinha verdadeira devoção por uma das modas de Francisco Alves e Horácio Campos, “A Voz do Violão” que dizia: “Não queiras meu amor saber da mágoa/que sinto quando a relembrar-te estou/ atestam-te os meus olhos rasos d’água/ no espinho de tão negra solidão/ a dor que a tua ausência me causou/ porém nesse abandono interminável/ eu tenho um companheiro inseparável/ na voz do meu plangente violão.” 

O porquê da briga, foi assim, vinha ele cantando no meio da feira. Parou diante de Júlia "Bêba" que além de alcoólatra, era muda e surda. Nada ouvia, porém entendia muito bem os sinais do povo. E percebeu que todos riam. Estavam rindo dela, e era por causa daquele bêbado idiota gesticulando em sua direção. Não deu outra, tacou o maior sopapo nas fuças do ébrio metido a cantor. A briga só terminaria na prisão. Contou duma burra que se assustou com um enxame de abelha que ia passando partiu em disparada derrubou um monte de bancas dos mascates. Cominho, tempero e colorau, foram parar dentro da saca de farinha. Gás óleo, e creolina derramou-se nos atavios, candeeiros de pavios, cangalhas de capim, chapéus de couro cru e chocalhos tudo perdido. 

Não podiam deixar de falar do assassinato do governador João Pessoa à poucos dias ocorrido. A triste notícia Enéas ouviu no rádio de Seu Domício, lá na loja. Jamais esqueceria com que palavras o locutor, da Rádio Cruzeiro S/A: “O senhor presidente da Paraíba que chegou hoje a capital de Pernambuco. Em plena confeitaria Glória, a rua Nova foi assassinado pelo senhor João Duarte Dantas seu desafeto, e chefe político de Teixeira, Estado da Paraíba Embalsamado no Recife e transportado para a capital paraibana de trem. Aguardado por uma multidão, o corpo chegou ao meio-dia do dia 28 de Julho. Ficou exposto à visitação na Catedral Basílica de Nossa Senhora das Neves, até o dia 01 de agosto. Dali foi transportado ao Porto de Cabedelo para ser sepultado no Rio de Janeiro.” De repente ouviu-se estouros, como tiros, Seu Antonio instintivamente sacou o revólver. Os estampidos vinha de muito longe. Deram-se conta que era meio-dia, fogos de artifícios nos céus da vila. Foguetes em louvor da novena de Nossa Senhora Assunção.

Mergulhando no vasto lago do tempo, Seu Antonio foi esbarrar em Águas Belas, a época que ainda rapaz. 30 anos voltados no profundo poço do rei Chronos, rei tempo. Afoito e destemido sempre fora. Perdera a conta das inúmeras brigas e contendas as quais se envolvera junto à peãozada. Pobre que fora no passado, ia pras frentes de serviço de plantio das lavouras de feijão, milho, algodão dos senhores donatários. Nas limpas de lotes de palma, de ricos fazendeiros da região ribeirinha. No corpo ainda guardava cicatrizes, facadas. Também furou bucho dum monte de negro, e tirou sangue de outro tantos arruaceiros. Nos festejos de fim de semana, nos forrós, nas peladas de futebol de várzea. A maioria, brigas banais, motivadas por embriaguez. Sem lembrar-se de uma, que poderia considerar um caso mais sério. Era o mês de dezembro, na Fazenda São José. Comemorava-se a festa de Nossa Senhora Conceição Aparecida. Havia uma moça, muito bonita que atendia pelo nome de Divina Engracia, trabalhava na cozinha da casa grande do coronel Pedrosa, irmão do capitão Bezerra, um dos que buscava com sua volante, acabar com Lampião e sua raça.

Antonio se engraçou por Engracia, que lhe correspondeu o amor. Desse relacionamento, nasceu-lhes um filho. Porem Antonio só viria saber dezesseis anos depois. O rapaz a par dessas informações foi ao encontro do pai, mas não foi aceito, Antonio, então casado, não reconheceu aquela paternidade. A mãe do rapaz teve muito desgosto, portadora de moléstia séria, morreu. 30 anos agora, separavam aquele, dos dias da novena. Antonio continuava olhando pra serra. A noite vinha chegando, por um momento a montanha pareceu dotada de ameaçador par de olhos de lobo. Pasmados os homens viram, a cortina negra da noite ser rasgada por um terrível uivo.

Fabio Campos        

O Sinal e A Santa Cruz (Primeira Parte)

A porta que dava pro terreiro dos fundos se abriu. Lá dentro tudo escuro. Pondo ainda mais luto, na viuvez de marido vivo, de minha vó, que olhava a luz do mundo. E de tanto olhar, viu mais um dia chegando. O primeiro, do mês de agosto. Sequer deu-lhe passagem, mesmo assim ele entrou. Gélida mão do tempo, penteara seu fino cabelo liso. Com tanta força e vontade o fizera que se tornaram brancos como as nuvens que estavam lá. Seus olhos, duas pedras de sal, de lágrimas que nunca caíram pelo seu rosto. E toda a verdade do dia, sem dó nem piedade vinha lhe abraçar. Triste, tristemente frio. O terral fumou o caminho da roça. Fumou a serra, e a roça. Não dava pra ver, mas estava tudo lá. Sempre estariam. As nuvens escondiam tudo. Tudo o que tinha nela, e pra além dela.

A casa da roça era de taipa. Cedo ainda o feijão ia pro fogo, a lenha. Meu avô dali a pouco iria pra barbearia. No gole de café de ver pela janela, a quebra do jejum. A filha primogênita sonolenta surgiu no umbral da porta do quarto. “Sua benção meu pai.” “Deus lhe abençoe.” “-É pra você ir pra roça. Catar algodão mais sua mãe. O tempo promete muita chuva! E se não for catado vai se perder.” Se amanhecia com neblina, era sinal de um dia muito quente, e era. Assim o sertanejo conseguia decifrar ao longo dos tempos, os sinais vindos dos céus. Tudo isso ia passando de geração a geração. E na hora oitava, da primeira metade do dia, se fez com muita luz e calor, abafado. Como se era esperado. Os capuchos de algodão saltavam do pé pro saco feito pipoca. E a moça dos olhos tristes de cristãos, sem costume da lida da roça acabaria adoecendo. Lá da infância voltou a asma, reação alérgica, a poeira vermelha da estrada, o cisco do mato seco. Com água quente de barreiro banhou o rosto, em fogo. Tinha muita sede mas não tinha coragem de beber. O sol ardendo na cabeça. A noite teve alucinações, sonhou com seu primo, que foi pra São Paulo, que um dia prometera vir buscá-la. E o enorme sapo que quase não a deixou passar na estrada, saltando entre as poças d’água, sem o beijo da quebra do desencanto, jamais se transformaria no seu príncipe encantado. Madrinha Moça ao pé da cama enxugava o suor da testa, da sua febre alta, dos delírios. E ouvia toda confidência duma alma cheia de ansiedade, medos, dúvidas. E a beberagem feita com fezes de porco, que era tida como remédio eficaz, a mãe não a obrigou beber. Também achou asqueroso, fétido! Moreninho farmacêutico quando chegou das bandas do Capim, recomendou quatro injeções, que só ia encontrar em Santana. Um motorista dum caminhão Ford que vinha somente dia de feira, dias depois traria a encomenda. Depois de três delas aplicadas, se sentiu curada, e acabaria não tomando a quarta.

Manoel nunca voltaria pra revê-la. As cartas cheirando a pó de arroz, amarradas com fitilho vermelho, traziam num cantinho escrito à nanquim, em esmeradas letras cursivas: “A você que tanto amo, com muito amor...”. De tão triste, e de tanto esperar, desbotaram, as cartas e o amor. E para sempre guardas ficariam numa lata de bombons Sonho de Valsa. O casal na embalagem indiferentes ao que acontecia dançava e dançava. Ao som do bandolim, cujas notas musicais se materializando iam trazendo um gosto cor de rosa. O primo “Casteado” acertou um dia de serviço pra fazer o serviço que a moça não conseguiu terminar. E sentado bem ali, naquele banco que tem o apelido de “Péla Porco” comeu cuscuz com leite, numa tigela de barro de louça que não tinha mais tamanho. Segurava pelo fundo com uma das suas enormes mãos, bem próxima do rosto, enquanto a colher vadiava noutra. Queria saber: “-Por que madrinha Amância botou luto, se padrinho Thomaz estava vivo?” Era uma promessa que tinha feito a “meu” padrinho Ciço Romão Batista. Outra pergunta: Queria saber qual era. Não contaria pra não perder de alcançar a graça. A moça sabia, a promessa era porque tinha receio de estar grávida. Uma gravidez que acabaria se confirmando, e ficaria morta de vergonha. Na idade que estava, grávida! Seria motivo de comentários, e isso era odioso. Nos próximos nove meses não mais sairia de casa pra rua. Seria de casa pra roça, assim mesmo de madrugada. Se a promessa não vingasse, a criança nasceria no finalzinho do mês abril, do ano vindouro.

A criança, uma menina, deu de vir ao mundo. Tanta foi a comoção, e a moça chorou quando viu pela primeira vez a irmãzinha. Aquele novelinho de gente, chorona que só! Os cabelinhos preto, a pele vermelha, ora todo mundo estava vendo, que ia ficar moreninha. E assim foi. Contava com sete anos mais ou menos estava a mesa, a tomar café com leite, num pires. A dar chupões no beiço da louça produzindo barulho característico. Ao tempo que fazia uma munganga, um requebro. De repente caiu de rosto no chão, um caco do pires quebrado provocou um corte enorme próximo ao supercílio direito, o que deixaria imensa cicatriz. Cresceu, esticou-se mais que a irmã, virou moça também. Metiam-se a cantar durante os afazeres doméstico, varrer a casa e forrar as camas o serviço de Maura. O mais pesado, o da cozinha, ficava com a irmã mais velha, que em vão reclamava. Filha caçula sempre fora o xodó dos pais. Um dia, participaria na encenação duma peça, na escola, no papel duma negra empregada. Tantos trejeitos criou pra personagem, a torná-la caricata por conta própria. Muitos risos arrancou duma platéia surpresa. Leônidas um rapazote metido a galanteador, pendeu as asas pra Maura. Os pais do moço, no entanto, não aprovaram o namoro nem bem começado. Temiam que desse em casório cedo. Cuidavam que devia estudar, se formar, trabalhar. Mandaram-no pra Cacimbinhas, pra casa duns parentes, como se fosse o fim do mundo, e era. Chegou Juvêncio vindo de Pão de Açúcar, conquistou o coração da morena, e a menina acabaria nos pés do altar, declarando fidelidade pro resto de sua vida aquele pedreiro, metido a pescador, fichado no Dnocs. Um dos que estava na turma que sentou as pedras de fundação da ponte General Tubino.

João Doroteu, irmão da minha vó, gostava de cantar em velórios. Quando alguém morria nas redondezas, ele era avisado e lá ia cantar no velório. Naquele tempo, velava-se um defunto com cantoria a noite todinha. Sendo os cantores acompanhados por tocadores com seus instrumentos musicais, sanfona, viola, até amanhecer o dia. Quando foi um dia, lá estava João Doroteu velando um morto.  Às seis da manhã, o caixão saiu para o sepultamento. Naquele mesmo dia Seu João se encontrou com o compadre Antonio Tenório, no povoado Pilões, foi um encontro ao acaso, os dois conversavam e ele lhes dizia: “-Esta noite compadre, enquanto velava um defunto, eu tive uma visão: Um sinal. Dizia que num determinado local, bem adiante daqui, num lugar onde há uma Santa cruz na beira da estrada, dois homens estariam de tocaia, lhe preparando uma emboscada. De modo que o melhor que compadre faz é não viajar esta noite. Vamos pernoitar numa pousada que tem aqui, amanhã viajaremos, retornaremos por outro caminho” O compadre concordou.

Quando o dia amanheceu, Antonio Tenório acudiu a chamar o compadre pra viajarem. Achou estranho pois ele não se encontrava mais ali. Pensou, lá com ele mesmo: “-O compadre devia estar apressado, se adiantou. E voltou sozinho pra casa. Mantendo o cuidado de não passar no local onde estaria a tocaia. Assim chegou ao destino, tendo retorno seguro. Qual não foi sua surpresa ao chegar a casa, e ficar sabendo que seu compadre João Doroteu, naquela noite que ele jurava tê-lo encontrado, jamais estivera no povoado Pilões. Enquanto cantava, e rezava, tivera um enfarto e morrera, na casa onde velava um defunto.


Fabio Campos








Berlioz Devil

Seria ele mesmo? Não podia ser. A primeira reação, de negação. Seria real o que via? A verdade é que ele estava lá. Não queria acreditar no que viam os olhos. Aquela noite fria, o nevoeiro.  Amplamente apoiado na pilastra esquerda do portão, do balaustre do jardim, Louis Hector Berlioz. Não seria apenas fruto da imaginação? Aquela atmosfera talvez. Fizesse com que imagens da mente se projetassem na neblina. Seria a única explicação plausível. Coisas daquele tipo deviam ficar eternamente onde sempre estivera. E jamais deviam voltar de onde se encontravam, no profundo precipício do passado. Espíritos, infelizmente, eles vagavam. A verdade é que ele estava lá.

Num dos pilares do portal do jardim, amplamente apoiado nas patas dianteiras, L. H. Berlioz, um Siamês. A pelagem amarronzada lembrava uma suçuarana. As pontas das orelhas, das patas, do focinho, negros como queimado. Os olhos duas pedras de jade, acesas, angariava todo foco de luminosidade. Olhava, e olhava, na direção da rua. Impávido, nenhum só fio da pestana sequer mexia. Felino de bronze. Teso. Como que esperava alguém, que porventura viria pra entrar naquela casa.  Senhor Cezar Romeu, um dia, fora dono do Siamês, e daquela casa. A casa ainda era a mesma. O gato, no entanto, não era pra estar lá. Simplesmente nem o bichano, nem senhor Cezar Romeu, existiam mais. Quarenta longos anos haviam se passado. Quarenta calendários viraram fumaça desde o que acontecera.

Quatro décadas de retrocesso no tempo, talvez não fossem suficientes, para desenovelar, o tudo que devesse ser desemaranhado. Ora, mas se tínhamos que começar que começássemos pela casa. Ficava no alto da ladeira, para além da Rua Cônego José Bulhões. O balaustre baixo dava a quem olhasse além dele, a visão do portão de entrada do Vapor de Beneficiar Algodão do senhor João Augustinho, no início da Rua Delmiro Gouveia. Defronte, a casa de Seu Nezinho Ricardo, com seu gracioso portal oval na fachada. Atravessando outra rua, a casa de Seu Zezé Fontes, de vasto terraço na frente. A casa onde se punha o gato Siamês, destacava-se por ser construção em estilo neoclássico, mesclado com traços de modernidade. Uma pequena passarela, que com três ou quatro passos se chegava a um hall. Aberto em dois, dos quatros lados, sustentados por vigas de concreto. Cobertura piramidal, de telhas francesas, revestidas em frisos e arremates de beirais duplos. O teto, forrado com madeira pintada de azul claro, donde pendia um gracioso lustre. Posto que a aguardar a noite, pra despejar sua luz tênue, amarelada por sobre os batentes cimentados, a passarela e a relva do jardim. As paredes, em dois tons verdes, claro no interior, e musgo na fachada. Uma janela, que de tão esquecida anuviara as vidraças, encobrindo de tristeza o brilho que um dia tivera.  O pequeno jardim, um dia teria sido alegre com seu pé de Croti-da-Felicidade ( Polyscias guilfoylei) plantado no meio do canteiro, a que ninguém nunca mais dispensara cuidados. Rebelaram-se os galhos, atrevidos indo admoestar a quem passasse na calçada, a querer ganhar a rua. E os olhos da preta velha que cuidara até ver as samambaias escalarem os cordões das caixetas de xaxim, a muito fora dormir. Dormia um sonho perpétuo. O gato que estava lá, porém, este parecia bem acordado. Lá no outro lado do quarteirão. Do lado a que o sol poente antes de ir se deitar se despedia. No final daquele quarteirão, noutra casa de jardim, igualmente bela, morava Pedro Parada.

Cezar Romeu e Pedro Parada eram amigos. No início, quando ainda não passavam de meninos, eram somente Cezar e Pedro. Estudaram o primário, no Grupo Escolar Ormindo Barros, que os colegas do bairro monumento apelidavam de Geoba.  Quase todas tarde ganhavam o areal do Poço do Juá, a jogar bola no campinho, de grama verdinha, por trás da padaria de Seu Benedito.  E voltariam dos banhos do rio das águas salubre e ruim de beber, com azinhavre na pele. Comprariam pães, salame e cajuína e fariam lanche, sentados na calçada, no beco das pedras largas, no oitão da padaria. Antes de chegarem as suas casas, esperariam os cabelos molhados enxugar, No entanto se denunciariam num risco de unhas. As mesmas que lhes torcer-lhes-iam as orelhas. Nas férias do mês de julho, varreriam as redondezas, aprontando, todo tipo de estripulias. Banhos no Riacho do Bode, o lance era tarrafar camarão, escondido do vigia, Zé Rosa. Furtar melancia na roça de Petronilo. Caçar, pegar calopsita e maritacas no sítio Baixio de Ivan Falcão, pra vender dia de sábado na feira do passarinho. O açude do Pai Mané, a barragem da Barra do Tigre, façanhas dignas de boas chibatadas. Por uma semana tendo que dormir cedo, pela apreensão causada às mães. Nem tempo dava de curar as lapadas, e se punham a capitanear novas aventuras, a escalar a serra da Camonga, a Serra do Gugi, com direito a se perderem na serra do Poço.

Ainda nesse tempo Cezar ganhou de presente duma tia, um lindo gatinho Siamês, e como estudava música pôs-lhe o nome de um compositor, do período romântico francês, de quem era admirador. Pedro, por sua vez, criava passarinhos. Nos alpendres de sua casa, gaiolas eram como fruta temporã que dá no pé. Os calendários, de maduros, ceifaram suas folhas, como num rigoroso inverno. E os meninos largaram as calças curtas. Par e passo, foram definindo suas personalidades. Cezar culto e polido, Pedro ignóbil e chucro. Não demoraria e viriam os primeiros arranhões. O jogo de interesse sobrepujando a amizade. A mãe da discórdia, a inveja, entremeou-se aos amigos. Um dia, Pedro viu o Siamês de Cezar escalando os muros de seu quintal, um terrível temor lhe invadiu frente à ameaça que representava as suas aves de estimação. O pavor se transformaria em pura cólera. Não pensou duas vezes, tinha que matar aquele gato idiota! E nunca mais Cezar veria seu estimado Berlioz. 
  
Outra vez os calendários entraram num vertiginoso redemoinho a largarem suas folhas, como num eterno outono. As pequenas cidades do sertão, naquele tempo, assemelhavam-se a burgos medievais. Só existindo duas classes de pessoas, os que mandavam, e os que eram mandados. O senhor Cezar Romeu e o senhor Pedro Parada pertenciam ambos a primeira casta. E não por acaso eram sócios. Donos de próspera empresa no ramo de venda de combustíveis, e derivados do petróleo.  Tão sólida sociedade a ponto de dizerem que eram irmãos, sem terem eles grau nenhum de parentela. Donos de concessionárias de automóveis e implementos agrícolas. Pioneiros na instalação de postos de combustível. Vinham do tempo da comercialização de óleo diesel pra abastecer os motores das várias cidades que nem energia elétrica tinha ainda. Passariam a fornecer gasolina para algumas prefeituras. Como rastro de pólvora corria suas influências política, desfrutavam da amizade de prefeitos e deputados.  A ganância faria com que Pedro arquitetasse um plano. Seu pseudo irmão tinha que morrer. Dum jeito, porém, que culpa nenhuma viesse lhe cair pelo fatídico. Dois bandidos contratados. Chegaram numa moto, simularam um assalto a um dos postos. Cezar se encontrava na lanchonete. O revólver descarregado, o fim.

Alta madrugada. Pedro estava lívido. Vindo duma festa, acabava de chegar a casa. Estaria tendo alucinações? Tinha bebido. Como podia? A entrada da casa, Berlioz.  O gato de estimação de Cezar, o amigo de infância! Como? Não entendia. O mundo rodopiava, alucinadamente... Ele próprio matara aquele maldito gato! Tantos anos haviam se passado. Mas agora estava ali. Tinha certeza disso! Lá estava o desgraçado! Descendo do balaústre do jardim, o Siamês ganhou a rua deserta. Pedro seguiu-o. Sob a luz do poste agigantaram-se em sombra ladeira abaixo. Chegaram à ponte General Tubino. O parapeito baixo, um vento gélido assoprando vindo do Poço dos Homens. Berlioz enfim esperou o homem trôpego, alcoolizado, se aproximar. De repente um salto, a tentar alcançá-lo. Um tropeço, o desequilíbrio. A queda livre. De braços estirados lá se foi Pedro Parada abraçar a morte.  
    

Fabio Campos