Berlioz Devil

Seria ele mesmo? Não podia ser. A primeira reação, de negação. Seria real o que via? A verdade é que ele estava lá. Não queria acreditar no que viam os olhos. Aquela noite fria, o nevoeiro.  Amplamente apoiado na pilastra esquerda do portão, do balaustre do jardim, Louis Hector Berlioz. Não seria apenas fruto da imaginação? Aquela atmosfera talvez. Fizesse com que imagens da mente se projetassem na neblina. Seria a única explicação plausível. Coisas daquele tipo deviam ficar eternamente onde sempre estivera. E jamais deviam voltar de onde se encontravam, no profundo precipício do passado. Espíritos, infelizmente, eles vagavam. A verdade é que ele estava lá.

Num dos pilares do portal do jardim, amplamente apoiado nas patas dianteiras, L. H. Berlioz, um Siamês. A pelagem amarronzada lembrava uma suçuarana. As pontas das orelhas, das patas, do focinho, negros como queimado. Os olhos duas pedras de jade, acesas, angariava todo foco de luminosidade. Olhava, e olhava, na direção da rua. Impávido, nenhum só fio da pestana sequer mexia. Felino de bronze. Teso. Como que esperava alguém, que porventura viria pra entrar naquela casa.  Senhor Cezar Romeu, um dia, fora dono do Siamês, e daquela casa. A casa ainda era a mesma. O gato, no entanto, não era pra estar lá. Simplesmente nem o bichano, nem senhor Cezar Romeu, existiam mais. Quarenta longos anos haviam se passado. Quarenta calendários viraram fumaça desde o que acontecera.

Quatro décadas de retrocesso no tempo, talvez não fossem suficientes, para desenovelar, o tudo que devesse ser desemaranhado. Ora, mas se tínhamos que começar que começássemos pela casa. Ficava no alto da ladeira, para além da Rua Cônego José Bulhões. O balaustre baixo dava a quem olhasse além dele, a visão do portão de entrada do Vapor de Beneficiar Algodão do senhor João Augustinho, no início da Rua Delmiro Gouveia. Defronte, a casa de Seu Nezinho Ricardo, com seu gracioso portal oval na fachada. Atravessando outra rua, a casa de Seu Zezé Fontes, de vasto terraço na frente. A casa onde se punha o gato Siamês, destacava-se por ser construção em estilo neoclássico, mesclado com traços de modernidade. Uma pequena passarela, que com três ou quatro passos se chegava a um hall. Aberto em dois, dos quatros lados, sustentados por vigas de concreto. Cobertura piramidal, de telhas francesas, revestidas em frisos e arremates de beirais duplos. O teto, forrado com madeira pintada de azul claro, donde pendia um gracioso lustre. Posto que a aguardar a noite, pra despejar sua luz tênue, amarelada por sobre os batentes cimentados, a passarela e a relva do jardim. As paredes, em dois tons verdes, claro no interior, e musgo na fachada. Uma janela, que de tão esquecida anuviara as vidraças, encobrindo de tristeza o brilho que um dia tivera.  O pequeno jardim, um dia teria sido alegre com seu pé de Croti-da-Felicidade ( Polyscias guilfoylei) plantado no meio do canteiro, a que ninguém nunca mais dispensara cuidados. Rebelaram-se os galhos, atrevidos indo admoestar a quem passasse na calçada, a querer ganhar a rua. E os olhos da preta velha que cuidara até ver as samambaias escalarem os cordões das caixetas de xaxim, a muito fora dormir. Dormia um sonho perpétuo. O gato que estava lá, porém, este parecia bem acordado. Lá no outro lado do quarteirão. Do lado a que o sol poente antes de ir se deitar se despedia. No final daquele quarteirão, noutra casa de jardim, igualmente bela, morava Pedro Parada.

Cezar Romeu e Pedro Parada eram amigos. No início, quando ainda não passavam de meninos, eram somente Cezar e Pedro. Estudaram o primário, no Grupo Escolar Ormindo Barros, que os colegas do bairro monumento apelidavam de Geoba.  Quase todas tarde ganhavam o areal do Poço do Juá, a jogar bola no campinho, de grama verdinha, por trás da padaria de Seu Benedito.  E voltariam dos banhos do rio das águas salubre e ruim de beber, com azinhavre na pele. Comprariam pães, salame e cajuína e fariam lanche, sentados na calçada, no beco das pedras largas, no oitão da padaria. Antes de chegarem as suas casas, esperariam os cabelos molhados enxugar, No entanto se denunciariam num risco de unhas. As mesmas que lhes torcer-lhes-iam as orelhas. Nas férias do mês de julho, varreriam as redondezas, aprontando, todo tipo de estripulias. Banhos no Riacho do Bode, o lance era tarrafar camarão, escondido do vigia, Zé Rosa. Furtar melancia na roça de Petronilo. Caçar, pegar calopsita e maritacas no sítio Baixio de Ivan Falcão, pra vender dia de sábado na feira do passarinho. O açude do Pai Mané, a barragem da Barra do Tigre, façanhas dignas de boas chibatadas. Por uma semana tendo que dormir cedo, pela apreensão causada às mães. Nem tempo dava de curar as lapadas, e se punham a capitanear novas aventuras, a escalar a serra da Camonga, a Serra do Gugi, com direito a se perderem na serra do Poço.

Ainda nesse tempo Cezar ganhou de presente duma tia, um lindo gatinho Siamês, e como estudava música pôs-lhe o nome de um compositor, do período romântico francês, de quem era admirador. Pedro, por sua vez, criava passarinhos. Nos alpendres de sua casa, gaiolas eram como fruta temporã que dá no pé. Os calendários, de maduros, ceifaram suas folhas, como num rigoroso inverno. E os meninos largaram as calças curtas. Par e passo, foram definindo suas personalidades. Cezar culto e polido, Pedro ignóbil e chucro. Não demoraria e viriam os primeiros arranhões. O jogo de interesse sobrepujando a amizade. A mãe da discórdia, a inveja, entremeou-se aos amigos. Um dia, Pedro viu o Siamês de Cezar escalando os muros de seu quintal, um terrível temor lhe invadiu frente à ameaça que representava as suas aves de estimação. O pavor se transformaria em pura cólera. Não pensou duas vezes, tinha que matar aquele gato idiota! E nunca mais Cezar veria seu estimado Berlioz. 
  
Outra vez os calendários entraram num vertiginoso redemoinho a largarem suas folhas, como num eterno outono. As pequenas cidades do sertão, naquele tempo, assemelhavam-se a burgos medievais. Só existindo duas classes de pessoas, os que mandavam, e os que eram mandados. O senhor Cezar Romeu e o senhor Pedro Parada pertenciam ambos a primeira casta. E não por acaso eram sócios. Donos de próspera empresa no ramo de venda de combustíveis, e derivados do petróleo.  Tão sólida sociedade a ponto de dizerem que eram irmãos, sem terem eles grau nenhum de parentela. Donos de concessionárias de automóveis e implementos agrícolas. Pioneiros na instalação de postos de combustível. Vinham do tempo da comercialização de óleo diesel pra abastecer os motores das várias cidades que nem energia elétrica tinha ainda. Passariam a fornecer gasolina para algumas prefeituras. Como rastro de pólvora corria suas influências política, desfrutavam da amizade de prefeitos e deputados.  A ganância faria com que Pedro arquitetasse um plano. Seu pseudo irmão tinha que morrer. Dum jeito, porém, que culpa nenhuma viesse lhe cair pelo fatídico. Dois bandidos contratados. Chegaram numa moto, simularam um assalto a um dos postos. Cezar se encontrava na lanchonete. O revólver descarregado, o fim.

Alta madrugada. Pedro estava lívido. Vindo duma festa, acabava de chegar a casa. Estaria tendo alucinações? Tinha bebido. Como podia? A entrada da casa, Berlioz.  O gato de estimação de Cezar, o amigo de infância! Como? Não entendia. O mundo rodopiava, alucinadamente... Ele próprio matara aquele maldito gato! Tantos anos haviam se passado. Mas agora estava ali. Tinha certeza disso! Lá estava o desgraçado! Descendo do balaústre do jardim, o Siamês ganhou a rua deserta. Pedro seguiu-o. Sob a luz do poste agigantaram-se em sombra ladeira abaixo. Chegaram à ponte General Tubino. O parapeito baixo, um vento gélido assoprando vindo do Poço dos Homens. Berlioz enfim esperou o homem trôpego, alcoolizado, se aproximar. De repente um salto, a tentar alcançá-lo. Um tropeço, o desequilíbrio. A queda livre. De braços estirados lá se foi Pedro Parada abraçar a morte.  
    

Fabio Campos

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